Entrevistas
Entrevista com Venício Lima sobre os perigos de se confundir liberdade de imprensa com liberdade de expressão
Em tese, estabelecer as diferenças entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa não seria uma tarefa das mais difíceis. No entanto, interesses econômicos de grandes grupos midiáticos conduzem o debate de forma deliberada para a confusão entre os dois termos, tidos como sinônimos quando não o são. Esse tema e todas suas implicações norteiam o livro lançado por Venício A. de Lima, Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia (Publisher Brasil). Na entrevista a seguir, o autor conversa sobre a obra e também fala sobre o desafio da democratização da comunicação no Brasil.
Por Renato Rovai Revista Fórum
Fórum
– Neste seu último livro, o senhor trata de liberdade de imprensa e
liberdade de expressão. Nele, aborda a construção histórica desses dois
conceitos a partir das teses liberais. O senhor poderia nos explicar
por que fez essa opção? Venício A. de Lima – Porque
a discussão está tão atrasada entre nós que não há necessidade de se
recorrer a críticas externas ao liberalismo. Nem mesmo o reconhecimento
que se faz há décadas, por exemplo, nos Estados Unidos, de que não
existe um “mercado livre de ideias” e que a agenda pública e a formação
da opinião são, majoritariamente, controladas pelos grandes grupos
privados de mídia, é admitido aqui.
Fórum – O senhor
poderia explicar as diferenças entre liberdade de imprensa e de
expressão e como uma contribui na construção da outra? Venício
– Basicamente, a liberdade de expressão (speech) é um direito
fundamental do indivíduo, enquanto a liberdade de imprensa (press), no
mundo contemporâneo, é referida às empresas de mídia. Historicamente
falava-se na liberdade individual de imprimir (print) e essa liberdade
foi aos poucos se transformando na liberdade da imprensa. Acontece que
quando o conceito surgiu não havia nada parecido com as empresas de
mídia que existem hoje, que, de fato, limitam a liberdade de expressão
pública da imensa maioria da população.
Fórum – Na
sua opinião, por que os meios de comunicação no Brasil fazem tanta
questão de confundir a liberdade das empresas do setor com a liberdade
de expressão de toda a sociedade? Venício – É simples.
Não há ninguém que seja contra a liberdade de expressão, um direito
humano fundamental. Ao tratarem uma liberdade fundamental como
equivalente à sua própria liberdade empresarial, os grupos privados de
mídia criam uma confusão deliberada que somente favorece aos seus
próprios interesses. Mas há um outro lado nessa questão, que é supor
que a maioria da população continuará sendo enganada para sempre. Não
creio que isso seja possível.
Fórum – Fala-se muito
de iniciativas do poder público, que supostamente criariam obstáculos à
liberdade de expressão, entre elas a proposta da criação do CNJ e da
Ancinav. Qual deveria ser o papel do Estado para que a mais ampla
liberdade de imprensa fosse garantida? Venício – O
Estado deve intervir para garantir a liberdade de expressão de pessoas
ou grupos que não têm seu direito respeitado. Tem sido assim em outros
países como, por exemplo, nos Estados Unidos. Há um excelente livro do
jurista de Princeton, Owen Fiss, A Ironia da Liberdade de Expressão, no
qual ele mostra não só a jurisprudência que a Suprema Corte americana
criou sobre o tema, como as várias ocasiões em que o Estado interferiu
para garantir a liberdade de expressão de minorias raciais, de gênero e
de outros grupos.
Fórum – Decisões do STF, como a
relativa à Lei da Imprensa, mostram que parte do Judiciário ainda vê a
liberdade de imprensa como uma espécie de projeção da liberdade de
expressão. O quanto isso prejudica a possibilidade de democratização
dos meios de comunicação? Venício – É surpreendente como
alguns ministros do STF ainda insistem em ignorar que uma das
disposições que a própria Constituição brasileira manda observar é “os
meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser
objeto de monopólio ou oligopólio” (§ 5º do artigo 220). Sem um mercado
de mídia policêntrico, isto é, onde exista pluralidade e diversidade,
não há como equacionar liberdade de imprensa com liberdade de
expressão. Nas condições atuais, a liberdade de expressão só é de fato
exercida por aqueles que controlam os grupos de mídia. Fórum
– O senhor vem discutindo há muito tempo o direito à comunicação e a
democratização dos meios, poderia elencar países e modelos que poderiam
ser referências para uma reforma nessa área no Brasil? Venício
– Precisamos ter, pelo menos, um marco regulatório geral,
tecnologicamente atualizado, que inclua a proibição da propriedade
cruzada no setor e uma agência reguladora autônoma, com poderes para
disciplinar as concessões do serviço público de radiodifusão. Isso
seria o mínimo. Há esforços importantes de regulação em países europeus
como a Espanha, a Alemanha e Portugal. Gosto muito da recente lei dos
meios aprovada na Argentina, que certamente poderia servir de
referência para nós. Fórum – Mesmo esse não sendo um
tema deste seu novo livro, qual é a sua opinião acerca das
possibilidades da internet? Além disso, o senhor avalia que ela poderia
reposicionar o debate acerca da liberdade de expressão e da liberdade
de imprensa, levando em consideração que numa sociedade com banda larga
para todos o "direito de imprimir", ou seja, de se comunicar, poderia
ser muito mais amplo do que é hoje? Venício – Não pode haver
qualquer dúvida sobre a importância crescente da internet. Em dezembro
de 2009 já éramos 66,3 milhões de usuários e a classe C é a que mais
cresce entre eles. Apesar disso, creio que existe certo exagero sobre
suas consequências na sociedade brasileira de hoje. Num futuro não
muito distante, com a universalização do acesso aos computadores e à
banda larga, com certeza teremos que repensar o debate “liberdade de
expressão contra liberdade de imprensa” porque haverá muito mais
possibilidade de exercício da liberdade de expressão, independentemente
das restrições de acesso à grande mídia. Aliás, ainda não sabemos nem
se e nem como a grande mídia sobreviverá no futuro.
Fórum
– Como o senhor avalia esses quase oito anos de governo Lula em relação
à democratização das comunicações? O senhor acha que o governo agiu no
limite do possível ou poderia ter avançado mais nessa questão? Venício
– Não há dúvida de que avançamos com a criação da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC) e, certamente, com a convocação e realização da 1ª
Conferência Nacional de Comunicação. Mas isso é muito pouco. Se
considerarmos, por exemplo, o que outros governos têm conseguido
realizar no campo da regulação democrática da mídia na América Latina e
o recuo do governo Lula em questões fundamentais como o modelo da TV
Digital, a transformação da Ancine em Ancinav, o decreto de criação das
RTVIs, a ausência de proposta de um marco regulatório geral e, mais
recentemente, as propostas relativas ao direito à comunicação contidas
no PNDH3, sinceramente, não há o que comemorar.
Fórum
– Por fim, num contexto histórico, como o senhor avalia o atual momento
do país em relação à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão? Venício
– Os grupos de mídia e suas entidades representativas insistem sempre
que existem “ameaças” autoritárias vindas do Estado. Aliás, eles
consideram qualquer decisão judicial relativa à mídia como sendo
censura. Isso faz parte de sua estratégia de combate. Mas a liberdade
de imprensa é total. Não se pode falar o mesmo, todavia, em relação à
liberdade de expressão. Quantos grupos, minorias e opiniões não
conseguem se expressar publicamente? Não há pluralidade e diversidade
na nossa mídia e estamos longe de conceitos como direito de antena e
direito de resposta difuso, ou simplesmente direito de resposta, cuja
regulamentação foi abolida depoi s que o STF considerou
inconstitucional toda a Lei de Imprensa. Temos um longo caminho a
percorrer até a plena consolidação de um direito à comunicação no nosso
país.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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