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Mdia
GPS favela: Como uma reportagem aparentemente despretensiosa da TV Globo releva toda a força da comunicação de classe

Por Cristian Góes*

 

Bom dia! Assim começa mais um programa na TV Globo para todo País, na manhã do dia 18 de novembro de 2009, quarta-feira. Dos sorrisos dos apresentadores do Bom Dia Brasil as suas expressões de horror na leitura da primeira chamada são gastos dois segundos. “GPS pirata coloca em risco segurança de motoristas”. É a manchete lida com ênfase. Bom, vem aí mais uma reportagem banal e sem grandes utilidades. Mas o que aparentemente seria uma notícia despretensiosa sobre a comercialização de um GPS fora do circuito legalizado, foi um exemplo cristalino da ação da mídia na criminalização da pobreza.

GPS é a sigla de Global Positioning System, isto é, sistema de posicionamento global. É um aparelhozinho portátil que tem a função básica de identificar a localização de áreas, praças, ruas, lugares numa cidade.


Voltando a reportagem. Para começar, o repórter diz: “
O preço mais baixo em relação aos outros aparelhos da loja fez a professora Rafaela Lopes escolher um GPS. Mas o barato saiu caro. O aparelho a levou a seguir um caminho errado. Rafaela foi parar dentro de uma favela”. Ou seja, a professora poderia ter ido parar em qualquer lugar do mundo, talvez não fosse nada errado, mas o errado foi parar numa favela.

 

E o pior não é apenas isso. Na sequência da reportagem, a professora, quase em pânico fala: “Graças a Deus não aconteceu de ser assaltada, mas foi muito próximo. Nada paga estresse, o perigo que eu passei”. Veja só a associação do errado com a favela, com o assalto, com o estresse, com o perigo. E não ficou só nisso. A professora revela com todas as letras outra indignação, além de ter ido parar favela que não tem gente, só criminosos: “Ele (o GPS) diz que vai avisar radar e avisa no lugar errado. Levei multa. Acabou saindo muito caro". Veja só esse absurdo!


Além do caminho “errado” ser o da favela, onde “a vítima” seria assaltada, onde mora o perigo, o equipamento não serviu para seu objetivo mais explicito: possibilitar andar em altas velocidades no trânsito, fraudar à legislação, alertando para a existência de radares para que motorista se enquadre na velocidade permitida e não seja apenado com multa. Onde está o crime, o perigo?

Mas quem pensa que a reportagem veiculada no Bom Dia Brasil se deu por satisfeita, engana-se. Logo depois do depoimento de horror da professora, o repórter faz questão de lembrar: “Em novembro do ano passado, três noruegueses passaram pela mesma situação. Eles saíram de carro de Búzios, na Região dos Lagos e queriam chegar à Copacabana. O GPS acabou levando os turistas para o conjunto de favelas da Maré. Eles foram atacados a tiros por traficantes. Um deles ficou ferido”.

Viu só?  Sem qualquer outra informação que sustente as afirmações, sem qualquer outra apuração, a reportagem retoma um caso de um ano atrás para reforçar a tese associativa de favela com criminalidade. Para a mídia, até o GPS “pirata” serve para formar o consenso, para criar a “opinião pública”, para justificar ações violentas do Estado na favela. Para a grande mídia, lá não mora gente, apenas criminosos que precisam ser exterminados.

 

Caminhando para o fim da reportagem, o repórter ainda informa: “o taxista Reinaldo Moçale usou um GPS com programa de mapas pirata e também foi parar à noite numa área perigosa da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Alguém duvida que essa “área perigosa” a que se refere é uma favela? E o taxista citado complementa o quadro: “É quase uma traição. Não é só o risco da minha vida. É a vida do passageiro também”. Alguém já ouviu alguma referência entre Copacabana, Ipanema e áreas perigosas onde se corre risco de morte?

Essa é mais uma ação da mídia do capital, da grande mídia que produz cotidianamente um jornalismo de classe contra a classe dos operários, dos trabalhadores, da juventude da periferia, contra a dignidade das mulheres, dos negros, das minorias. É essa a mídia que a toda hora despeja conteúdos como esses, aparentemente triviais, inocentes, despretensiosos, mas, na essência, carregados de preconceitos de classe.


A reportagem termina no estúdio do Bom Dia Brasil com os apresentadores lembrando que “comprar ou comercializar produtos piratas é crime”.



* É jornalista no INSS/DF, com especialização em Gestão Pública (FGV/Esaf). Ex-secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Sergipe. É colaborador do NPC e de várias publicações. (cristiangoes@infonet.com.br)


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