Maria de Lourdes do Carmo Santos não gosta do seu nome de santa.
"De santa eu não tenho nada", declara. Está enganada. Confunde santidade com passividade, com abaixar a cabeça. Esquece-se de que a história dos santos está repleta de exemplos de pessoas que foram sacrificadas justamente por não dizer sempre sim. Por terem o vício de brigar pelo que acreditam. É o seu caso. Seus colegas camelôs da sete de setembro a conhecem como Maria do Carmo. No sindicato que atualmente preside e na sede da CUT, ela é, simplesmente, Maria.
Conheça, nesta entrevista, a história e as idéias da mulher, que nos últimos meses, com 29 anos e um par de olhos verdes, lidera os ambulantes do Rio de Janeiro. Ela é mineira, desquitada e tem três filhos.
Conquista - Camelô é profissão?
Maria - A lei federal nº6586/78 diz que camelô é profissão. Nós queremos
que essa lei seja cumprida.
C - O que vocês esperam da Prefeitura?
Maria - Queremos assentamentos nas ruas e feiras. Queremos que os camelôs
sejam cadastrados. Hoje são dois mil camelôs no Rio de Janeiro. Estamos
reivindicando o assentamento em alguns locais. Nós não queremos que
a Guarda saia da rua. Ela é importante para organizar. Nós queremos
o fim da violência da Guarda.
C - Quando você chegou ao Rio? Conta um pouco dos seus primeiros
tempos na cidade.
Maria - Tinha 11 anos. Eu trabalhava numa casa de família e só ia para casa
de 15 em 15 dias. Minha mãe era faxineira no mesmo apartamento e em
outros apartamentos do prédio. Ela voltava para casa todos os dias.
Eu chorava porque queria ir com a minha mãe.
C - O que você fazia?
Maria - Arroz, salada, temperava o feijão e, cuidava da menina que tinha nove anos.
Era quase a mesma idade. Passava um pouco de roupa e mantinha a casa limpa
até a minha mãe chegar para fazer a faxina. Acordava cedo e ficava acordada até
tarde para poder botar o jantar da minha patroa.
C- Você teve outros trabalhos?
Maria - Fui balconista de farmácia, frentista de posto de gasolina e corretora
de Plano de Saúde.
C- Você gostava desses empregos?
Maria - No posto, eu gostava muito porque usava uniforme, um macacão grosso,
verde, da BR. Na maioria dos postos, as mulheres têm que trabalhar quase
pelada. É horrível.
C - E como você virou camelô?
Maria - Meu sonho era ser enfermeira, ter um emprego legal. Não deu. Sou
ambulante. Minha primeira mercadoria foi papel de presente. Pedi dinheiro
emprestado. Já ganhei R$ 300,00 em um dia vendendo o cinto da Bionda.
C - Camelô ganha bem?
Maria - Tem gente que consegue até pagar a faculdade. Mas perde muito rápido.
Se a Guarda Municipal pegar a mercadoria, tem que pagar uma multa
de R$ 1.800,00 para recuperar. Quase ninguém recupera. Muitas vezes
os guardas pegam as nossas mercadorias e distribuem entre si. Chegou uma
denúncia no Sindicato ontem que eles estavam fazendo isso na 7 de setembro.
Na terça-feira (dia 14/10) eu estava na Prefeitura e vi quando o rapaz do depósito
se recusou a receber mercadoria apreendida pela Guarda porque o lacre havia
sido violado.
C - Você gosta de ser camelô?
Maria - Gosto. É como se eu tivesse duas famílias. Uma em casa e outra na rua.
Todo mundo se ajuda, se visita, faz vaquinha se um colega perde a mercadoria,
ou se vai preso e tem que pagar advogado. Se não fosse a violência da Guarda
era bom. Ruim é que a gente trabalha todo dia. Nos domingos e feriados
a gente vai atrás das feiras e dos shopping-centers. E não tem férias, 13º salário.
Se fica doente, a gente não pode trabalhar. Quinze dias depois que meu filho
nasceu eu já estava na rua. Foi quando eu apanhei da Guarda Municipal.
C - Como foi sentir na carne
Maria - Foi no início de abril deste ano. O meu filho, o Cauê, estava com 15 dias.
Precisava ir para a rua vender para sustentar meus filhos. Rolou uma briga,
os guardas vieram em cima de nós. Eu corri, mas não agüentei. Tive que parar
porque a minha operação doeu. Eles desceram a Rua da Quitanda correndo.
Quando chegou na Ouvidor, ao lado do Itaú, eles me pegaram e bateram muito
em mim. Essa marca que tenho no rosto, foi um deles que fez. Eu fui socorrida
por um PM. Depois que o sangue esfriou, eu pensei nos meus filhos. Estava
frágil, tinha acabado de sair de uma gravidez. Eu fui esculachada pelos
guardas porque estava trabalhando. Fiquei toda machucada, toda roxa,
mas no outro dia eu voltei para a rua.
C - Não teve medo?
Maria - Não tenho medo. A necessidade é maior. Se eu parar, vou fazer o que?
Voltei disposta a caçar uma solução para os problemas da gente. Tenho um
colega, o Ratinho, que está cego. O Russo, guarda municipal, bateu nele.
Uma outra ambulante, da 13 de maio, estava grávida e perdeu o filho porque
levou um susto quando os guardas chegaram. Tem um guarda, o Jerônimo,
que disse que quando me pegar, não vai quebrar só a minha cara não.
Disse que vai quebrar as minhas pernas. Tem muita gente machucada.
C - E como foi essa caçada por uma solução?
Maria - Procurei o PT e lá um senhor entrou em contato com a CUT. Nunca tinha
ouvido falar da CUT. O Darby (vice-presidente da CUT/RJ) me ligou e aí
fizemos toda a movimentação.
C - O que você sente quando chegam os guardas, vontade de correr?
Maria - Não sinto vontade de correr. A gente está trabalhando. Estamos na rua
porque não tem emprego. O que eles querem? Que a gente fique igual às
mulheres que botam as crianças para pedir no Largo de São Francisco?
Camelô era para ser aplaudido porque é uma alternativa para o desemprego.
Se a gente pudesse escolher seria enfermeiro, contador, advogado.