entrevista
A mídia e a mulher

Por Rosângela Gil, de Santos, março de 2005

No mês em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher, muitas foram as programações  para debater a questão. Muitas foram as homenagens também. Algumas receberam flores. Outras, presentinhos como batom ou até estojos de sombra. Fomos lembradas. Mas como?  Pois é, é aí que a "porca torce o rabo", como diz o sábio dito popular. Fomos lembradas como mulheres bonitas, profissionais, liberais, pra frente. Mulheres sem problemas. Mulheres resolvidas, porque o mercado assim o quer.

Só isso? Não. Mais de 20 mil mulheres, com certeza, tomaram a avenida Paulista, em São Paulo, no dia 8 de março de 2005. Os jornais não puderam esconder tanto as imagens. Alguns preferiram dizer que eramos 15 mil. Deram pequenas notas. Mas esconderam o principal: o motivo de nossa ida às ruas. Com certeza não era para mostrarmos satisfação ou reconciliação com o mundo que nos explora. Lançamos a Carta das Mulheres para a Humanidade, ressaltando cinco princípios: solidariedade, igualdade, justiça, paz e liberdade.

Em Santos, litoral do Estado de São Paulo, algumas tentativas de dar um caráter além do batom foram feitas. Uma delas foi o debate "A Mídia e a Mulher", realizado no Sesc, no dia 11 de março, com a filósofa e professora da USP, Olgária Chain Feres Matos. Que pena, éramos apenas 20 ou 25 mulheres. E alguns cinco ou sete homens.

O Boletim NPC conversou com a filósofa antes do debate. Foi uma hora de entrevista. O tema, logicamente, era "A mídia e a mulher", mas falar de mulher e não se falar do mundo, não se fala a verdade. Falar de mulher e não falar do homem, também pouco se está falando. Falar de mulher e não falar de mercado, de exploração, de neoliberalismo, não se está falando tudo. Nesta entrevista não há linearidade, não há começo, meio, fim. Pode-se começar do fim ou do meio. Ou do começo. Não importa. O que importa é que falamos de mulher para falarmos do mundo.
 

Boletim NPC - Qual é o olhar da mídia para as mulheres?

Olgária Matos – O olhar da mídia para as mulheres é o olhar da mídia feito “para” as mulheres. Não é “para as mulheres” no sentido que elas são ativas na constituição da sua imagem pública, cuja emissão será derivada das várias mídias, predominantemente pela mídia televisiva. Esse olhar que é produzido para as mulheres, e não pelas mulheres, ele se dirige ao olhar masculino, em primeiro lugar, mas é um olhar masculino também ele coisificado.

O que eu entendo por coisificado: significa que você tem estereótipos criados sobre o feminino, e no caso sobre a mulher, e o olhar também já está preparado, porque ele está previamente preparado a ver o que ele vai ver. Então, é como se houvesse uma identificação entre saber e ver. Então, o que eu sei da mulher é aquilo que eu vejo sobre a mulher ou da mulher. Então, há toda uma construção da figura da mulher onde a idéia do feminino não aparece. Eu quero estabelecer uma dissociação, um pouco arriscada talvez, mas acho que vale a pena para nós pensarmos sobre isso, entre a mulher, o homem, o feminino e o masculino.

Quando nós falamos em mulher e homem nós damos predominantemente uma ênfase no aspecto biológico, e enquanto que quando falamos em masculino e feminino é mais no aspecto simbólico da presença dos valores, tradicionalmente ligados, no Ocidente, entre a figura da mulher e a do homem. Por isso eu preferiria até nem falar em homem e mulher, mas em masculino e feminino. Porque eu acredito que todas essas palavras remetem a experiências afetivas, emocionais, cognitivas, sociais, antropológicas, etc, que se consagram nessas expressões. 

Boletim NPC - Quem cria esse olhar?

Olgária Matos – Esse olhar é produtor de uma certa imagem, mas ele também é produzido por uma expectativa já criada sobre esse olhar. Então é difícil você dizer quem cria e o ponto da qual parte a emissão dessa imagem. Eu acho que há um acordo tácito, praticamente. É claro que o espectador ou ouvinte é passivo com relação aquilo que é transmitido a ele. Mas eu também acredito que as pessoas não são só passivas nem aceitam passivamente as coisas, elas também querem aquilo que é dado a elas ver. E o que é dado a elas ver, na questão do feminino, não no feminino, mas a mulher, e a mulher aí entendido  não o biológico, mas o estereótipo de comportamentos dependendo das conveniências de mercado, do que quer se vender via publicidade, via novelas, via entrevistas, sobre o que se pretende com o fazer aparecer a voz da mulher.

Então eu acredito que o que comanda predominantemente, com exceções raras, é o mercado. Não é aquilo que vai dar mais espectadores, mais ouvintes, portanto é aquilo que não pode contrariar expectativas daqueles que estão assistindo aquela programação. Então não pode ser um programa que faz pensar. Você pode ver, a inflação da imagem da mulher na televisão, nas mídias publicitárias, nos painéis eletrônicos expostos em toda a parte, você tem sempre uma figura da mulher que é ou a mulher ativa, empreendedora, interventiva ou é a mulher muito eficaz na sua casa com todo equipamento eletrônico e moderno.

De qualquer maneira é a mulher competente. Se cria a mulher competente seja dentro da casa ou na profissão. Nos dois casos nós temos uma idéia de competência que é vinculada através da presença da mulher. E essa questão de competência não é questionada, porque, num primeiro momento, o que parece é a propaganda ou a presença em primeiro plano da mulher, mas não é a mulher em si que está ligada àquela emissão necessariamente; são outros valores que são transmitidos através da presença da mulher na televisão, nas entrevistas e nas publicidades. 

Boletim NPC - Quais são as distorções simbólicas mais freqüentes nos meios de comunicação em relação a mulher?

Olgária Matos – As distorções mais visíveis são as da nudez. Você tem a exploração do corpo feminino que não é nem o corpo da mulher, agora ele é o corpo fetichizado da juventude. É o corpo eternamente jovem e é um corpo modelado. Ele é modelado no sentido de que ele é disciplinado para se apresentar segundo padrões impostos em larga medida pelo que se entende como modernidade. Você pensa, por exemplo, no carnaval. O que você vê na nudez da mulher no carnaval? Você, na verdade, não vê mais o corpo, porque obviamente a nudez é uma forma de vestimenta. O que é que você quer mostrar com a nudez?

Assim como o corpo quando ele tem um invólucro, uma vestimenta, ele também está querendo mostrar alguma coisa que ele está escondendo. Então quando você mostra absolutamente tudo você está escondendo nada? Não, você está escondendo alguma coisa, porque o que está sendo mostrado é o que? É o corpo musculoso ou  então é o corpo siliconado. Então é um corpo totalmente artificializado, com isso eu não quero dizer que exista um corpo natural em estado puro, todo corpo já é artificial. Mas há um certo padrão de artificialidade, de artificialismo que vem ao encontro do que o mercado consumidor de imagens e aqueles que são os financiadores desses mercados necessitam para ampliar os seus negócios.

Boletim NPC - A mulher está sozinha nesse processo de distorção e abuso?

Olgária Matos – É claro que a mulher é um dos elos mais frágeis da sociedade, no sentido de que ela tem uma fragilidade, não só, por exemplo, no mercado de trabalho, a gente sabe que a mulher ganha menos para a mesma função que o homem, como ela é mais vítima de violências doméstica, sexuais ou morais, tudo isso nós sabemos, mas também a mulher tem uma posição ambígua na sociedade porque ela acabou concedendo a sua liberação e a sua emancipação em termos masculinos e não femininos. Então, a agressividade no mundo do trabalho, a sua presença no mundo político, a sua maneira de se comportar como figura pública acabam mimetizando muito mais padrões masculinos do que possa manifestar valores propriamente femininos.

E quando digo valores propriamente femininos, eu digo que já há uma distorção prévia que é a separação rígida entre o masculino e o feminino. Por essa razão o filósofo contemporâneo da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, dizia que a sociedade no futuro deverá reconciliar o masculino e o feminino e a sociedade do futuro deverá ser andrógena, porque tanto a mulher poderá desenvolver seus aspectos ditos masculinos, na forma do simbólico, como dos valores que estão no imaginário coletivo da sensibilidade, da receptividade, da não violência. Esses valores simbólicos, então, não são de pouca valia para nós pensarmos uma sociedade democrática. E a figura da mulher como a emissária principal  da democracia.

Boletim NPC - A imagem da mulher na mídia se cria a partir de interesses apenas comerciais e mercadológicos ou tem algo mais nesse jogo?

Olgária Matos – Eu acho que além desses valores mercadológicos há também profundos apelos do desejo. Eu acredito que não se trata de um desejo produzido pelo nosso mundo afetivo, sentimental, porque ele está muito mesclado com os apelos que a sociedade do consumo traz consigo, mas eu acredito que a necessidade de certas cenas onde a mulher represente determinadas personagens ou que ela mesma se apresente na sua fragilidade ou na sua agressividade responde a necessidades profundas do desejo.

Quando eu digo desejo eu não digo prazer, porque o prazer está mais vinculado a um objeto palpável, enquanto que o desejo é mais inefável. O desejo é menos definido. Então existe uma expectativa tanto masculina como feminina de uma presentificação da mulher ou do feminino que responda a desejos, e portanto a faltas e carências que pelo imaginário ou provavelmente em algum momento ou experiência de realidade, e que possa preencher esse vazio e essa precariedade da condição humana.

Boletim NPC - Desejos que serão satisfeitos?

Olgária Matos – Na verdade, o desejo não é da ordem da realização. Nós podemos nos aproximar do desejo, mas uma vez realizado o desejo, o imaginário cria novas necessidades e novos desejos. Então, não se trata de uma aquisição definitiva de um desejo, porque vão se abrindo novas necessidades e os desejos também vão se multiplicando na nossa sociedade. Porque digo na nossa sociedade, se nós pensarmos, por exemplo, no mundo grego, clássico, o ideal do mundo clássico era a moderação, era a prudência. Não havia uma valorização das paixões. A modernidade, a nossa contemporaneidade, valoriza a paixão, portanto valoriza a desmesura, o excesso, valoriza o excedente.

Boletim NPC - Que significa o consumo,  criar a necessidade de adqüirir, consumir, a estar no mercado...

Olgária Matos – A estar no mercado ou se sentir recompensado por desejos que podem aparecer como novos, mas que na verdade são novidades. Qual a diferença entre o novo e a novidade? O novo é uma invenção. O novo é uma invenção que tem suas raízes e relação com toda a sua própria história, mas que aparece àquele que o vê, ou melhor, mal chega a aparecer porque ele (o novo) é capturado pela novidade. A novidade é um elemento diferencial para repetir a mesma coisa e a mesma monotomia do que já se teve uma vez e volta a se ter. Mas se apresenta como uma novidade para que o consumo convença as pessoas a adqüirir algo que elas já têm e que elas não necessitam.

Boletim NPC - A figura da mulher é de passividade na mídia?

Olgária Matos – Eu não vejo a mulher como um ser passivo, nem o homem como um ser ativo. Eu vejo o homem como um ser alienado, que no atual momento da acumulação do capital, para sua reposição, acréscimo, acúmulo, etc, cria ou excesso de trabalho para poucos ou trabalho nenhum para muitos. Então, o homem é um ser alienado, quer dizer, ele não é senhor dos usos nem do sentido da sua vida nem do seu tempo. É igual às mulheres que vão para o mundo do trabalho. Você tem uma sobrecarga de trabalho para poucos e uma ausência total de possibilidade de pensar a própria vida.

Nos dois casos a alienação é comum seja para quem está no mundo formal do trabalho, seja para quem tem de ser empresário de si próprio, seja para quem está desempregado e não vê sentido mais nos usos do tempo. Não sabe o que fazer com a monotomia desse tempo. Isso acho que vale para o homem e para a mulher. Eu acho que o homem é um ser alienado e a mulher também. Alienado nesse sentido, tanto o homem como a mulher vivem num estado de heteronomia, quer dizer, as decisões são tomadas fora de um campo de ação afetivo dos interessados.

Boletim NPC - Existe uma domesticação, por parte da mídia, da imagem da mulher?

Olgária Matos – Eu acho que a mídia pode se valer de uma tentativa de fazer da mulher um ser menos pensante no sentido de menos calculista que o homem. Ela é menos premeditada em termos de carreira, passos que deverão ser dados para chegar a tal posição, então a mulher pode parecer muito mais desregrada, porque ela é mais passional, então ela não consegue ser exatamente calculista porque entram outros elementos que desagregam ou desestabilizam projetos de poder como um homem determinado em princípio desenvolveria.

Agora eu não saberia responder ao certo se essa imagem (da mídia) corresponde a estereótipos por isso ela não tem força persuasiva. Essas imagens correspondem a uma necessidade de consumo de imagens que é passível para homens e mulheres. Você fica olhando uma seqüência seja em novelas, nos telejornais, na publicidade, acabam as imagens todas se equivalendo porque você tem uma inflação de imagens que nos impede de imaginar e pensar. Por isso eu acredito que existam estereótipos tanto da mulher como do feminino, mulher empreendedora ou mulher totalmente vitimada por uma figura de um homem despótico. Há uma dispersão do sentido das coisas no mundo contemporâneo.

  O momento que nós vivemos é muito triste e interessante porque vai exigir formas de intervenção, de transformação e de criação de um homem e mulher que se contraponham ao que foi criado. Eu me reporto a 1968, nessa época as lutas feminino e masculino se misturavam, e a idéia era criar um homem novo. Novos valores. Nova qualidade de vida. Razões para se estar juntos. Novos sentidos para as ações coletivas. Agora nós temos um homem novo, mas quem criou foi o neoliberalismo. O homem novo é competitivo, incapaz de amizade, desleal, que batalha individualmente por seus interesses, que tem medo de perder os seus cargos. É uma sociedade totalmente dissocializada, porque os fatores de coesão social não estão mais dados. Eu acho que um dos exemplos típicos e dramáticos disso é o filme “As invasões bárbaras”. Em 1968 se procurava um tipo de intervenção coletiva num espaço recíproco, compartilhado, onde a ação fosse irmã do sonho.