Marigoni: A Venezuela que se
inventa
Entrevista com Gilberto Marigoni. Por Rosângela Gil, de Santos, fevereiro de 2004
Gilberto Maringoni, que escreve para a revista Reportagem, participou de uma das mesas de debates do 9º Curso Anual de Comunicação do NPC, em novembro último, no Rio de Janeiro. Ele também é conhecido pelas suas famosas charges publicadas em vários veículos, como na Agência Carta Maior. Boletim NPC - O livro "A Venezuela que se inventa" começa quando? Gilberto Maringoni - O meu livro toma como ponto de partida o golpe de abril de 2002. Na Venezuela tudo gira em torno do petróleo, principal produto da pauta de exportações e motor da economia nacional . Não se pode escrever e falar sobre a Venezuela sem tomar em conta esse pilar. O centro da economia venezuelana é o petróleo. Isso, ao mesmo tempo que é uma característica positiva para o país, é um limitador também, ao inibir o desenvolvimento de outras atividades produtivas . As tensões que acometem o governo Chávez tem também como centro o petróleo. O novo do governo Chávez é que ele quer transformar o petróleo numa riqueza pública. E isso a elite econômica não quer permitir. Daí o golpismo. Boletim NPC - Qual é a Venezuela que se inventa? Gilberto Maringoni - O título do livro vem de uma frase de um personagem histórico do País, Simon Rodríguez (1789-1854). Ele disse logo após a independência da Venezuela: "Onde buscaremos modelos? A América é original. Original hão de ser suas instituições e seu governo. E originais os meios de se fundarem umas e outro. Ou inventamos ou erramos". O processo político venezuelano guarda semelhança com essa frase porque foge à regra do "desenho" da esquerda nos vários países. O Chávez se "alimenta" de um vendaval popular na América Latina e tenta dar consequência a ele. Eu acho que nem o Chávez tem muito claro onde vai desembocar esse processo, que ele chama de revolução bolivariana. Mais do que discutir se é uma revolução ou não, a gente tem de prestar atenção aos aspectos positivos de ele (Chávez) aumentar os orçamentos nas áreas sociais; de incentivar a organização popular; de procurar fazer com que a riqueza petroleira seja de toda a população e não de uma pequena elite como historicamente foi; de transformar as estruturas produtivas, econômicas e sociais para fazer o país mais justo. Agora uma característica está clara: esse roteiro se abre para o campo popular, se abre para a esquerda e para a democratização da sociedade. Isso é o positivo de Chávez. Boletim NPC - Qual foi o papel dos meios de comunicação no golpe da Venezuela? Gilberto Maringoni - Os meios de comunicação tomaram o papel dos partidos políticos. Hoje, por conta de uma série de fatores, a Venezuela não tem partidos organizados e enraizados na sociedade. Nem o Chávez tem. Por isso, as forças econômicas e os grandes grupos tiveram de entrar em cena política com cara própria. Nem tem mais aquele negócio de ter o representante no Parlamento. Os meios de comunicação e os empresários tiveram de vir dar o golpe diretamente. Não é à toa que foi um empresário que tentou tomar o poder. Os meios de comunicação fizeram o que fazem em qualquer país. Só que na Venezuela num grau muito mais elevado porque o confronto com a classe dominante é muito mais acirrado do que no Brasil ou em qualquer outro lugar. Qual é o partido dos meios de comunicação, do capital financeiro, dos grandes grupos econômicos? Hoje não existem; são eles mesmos, sem mediações! Por isso atropelam a democracia e suas instituições. E aí eles não têm meias palavras. Eles querem derrubar o presidente e falam abertamente que o presidente não pode continuar porque vai levar o país ao caos, porque é pró-cubano, porque tem cabelo crespo, porque é mulato, porque é índio. Os meios de comunicação venezuelanos não têm "papas" na língua. Boletim NPC - Como é que se insere a luta do povo venezuelano contra as elites nas lutas da América Latina? Gilberto Maringoni - Primeiro vamos ver o seguinte. O processo político venezuelano não conta com uma organização social tão desenvolvida como a do Brasil; mas tem características próprias. O que eles estão fazendo é o que classicamente se chamava de uma revolução a partir do alto. Eles tentam a partir da conquista do governo federal impulsionar as transformações sociais. Essas transformações têm a ver com a própria insatisfação do povo venezuelano, mas contam com um ambiente político na América Latina mais favorável do que há 10 anos, porque quebrou-se o "encanto" com o modelo neoliberal. Aquele que iria trazer capitais, desenvolvimento e levaria a América Latina ao primeiro mundo. A gente está se defrontando com a nossa própria realidade, uma realidade de miséria e de exploração imperial. A Venezuela se insere nesse quadro. É a mesma rebelião que tomou conta do povo boliviano que derrubou um governo. Do povo equatoriano que fez uma rebelião em 2000. Do povo peruano que impediu a privatização do seu sistema elétrico no sul do país. Do povo argentino que se rebelou e derrubou um presidente. E até do povo brasileiro que elegeu um ex-operário para a Presidência da República. Enfim, a história está se abrindo outra vez para a América Latina, bem diferente dos anos 90 quando se pensava que a história tinha se fechado e viveríamos eternamente nesse ciclo neoliberal. Boletim NPC - Por que os povos da América Latina não conhecem melhor a sua própria história? Gilberto Maringoni - Conhecer a história é uma ferramente fundamental para você forjar o futuro. Alguém já disse que a melhor maneira de você mudar o futuro é conhecer o passado e saber porque você está assim hoje no presente. Nós, brasileiros, conhecemos pouco a nossa história, menos ainda da América Latina. Não é a barreira da língua entre brasileiros e hispânicos que nos impõe isso. As informações de outros países da América Latina não vêm diretamente desses países. Elas (as informações) vêm geralmente filtradas. No caso do jornalismo, pelas agências de notícias americanas e européias. No caso do cinema, por exemplo, os filmes latino-americanos que fazem sucesso aqui são distribuídos pela Miramax, pelas grandes distribuidoras americanas. A gente sabe falar de um ou outro filme mexicano, cubano ou argentino. Mas a grande produção cultural e artística a gente não conhece. Na música a gente conhece o que vem filtrado pelas grandes gravadoras. Na literatura, conhecemos o que faz sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Existe uma riqueza cultural e política que precisamos conhecer. E só vamos conhecer quando conseguirmos montar um sistema de comunicação, de telecomunicação, conjunto. Eu estou citando exemplos aparentemente aleatórios, mas eles mostram que a nossa comunicação é muito maior com o centro do sistema capitalista, com o centro do império, do que com nossos semelhantes aqui da América Latina. Ninguém pensa em imigrar para a Bolívia, mas pensa em ir embora para a Espanha. Conhecer melhor a realidade boliviana faria com que a gente não ficasse tão surpreso com o impressionante levante popular que derrubou um presidente, em 2003. A gente sempre fala do atraso político latino-americano, que a gente elege caudilho, que a gente elege figuras despreparadas. O que dizer, então, de um Estado que tem o quinto maior PIB (Produto Interno Bruto) do mundo, que é a Califórnia, eleger o "exterminador do futuro" para o seu governo? O que dizer dos EUA que "elegem" um presidente no meio de uma grande fraude e aceitam essa fraude? Então, a gente tem de erguer a cabeça e ver o seguinte: jeca são vocês do centro do império. Nós estamos nos levantando. Boletim NPC - Fazendo um paralelo com o título do seu livro: qual é a América Latina que precisamos inventar? Gilberto Maringoni - A gente tem de inventar a partir do que temos. Precisamos conhecer toda a América Latina e Caribenha. A história da América Latina é impressionante. O Haiti foi o primeiro país do mundo que fez uma república negra, no início do século XIX, com o negro Toussaint de L´Ouverture. Um escravo que expulsou o brancos do país e fez um república. Isso é história excepcional. Você tem centros
de focos e tensão com o neoliberalismo na Ásia, na África,
mas o único lugar onde isso está se transformando em força
política é na América Latina.
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