Lógica unilateral do ataque do Iraque é semelhante à lógica comercial da Alca
Entrevista com Luis Fernando Novoa Garzon. Por Rosângela Gil, de Santos, abril de 2003


  Desde o dia 19 de março, o mundo presencia mais uma cena canhestra patrocinada pelo imperialismo. George W. Bush, o presidente por fraude dos EUA, ataca com armas altamente sofisticadas e de grande poderio tecnológico o Iraque, país que desde 1991 sofre embargo econômico da ONU (Organização das Nações Unidas). ONU que virou "suco" nas mãos dos interesses das megacorporações estadunidenses.

  O sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon, membro da ATTAC de Campinas, em entrevista especial ao boletim eletrônico NPC, fala da nova (des)ordem mundial que se inicia com os ataques americanos e também da Alca, como um processo de discussão amplo e qualificado entre o povo brasileiro e o governo Lula.

  Luis Fernando Novoa Garzon foi entrevistado na noite do dia 31 de março, em Santos, por ocasião do lançamento do abaixo-assinado que reivindica do governo Lula a realização de plebiscito oficial sobre a Alca.

NPC - Qual o risco da militarização do mundo comandada pelos EUA?

Luis Fernando Novoa Garzon - O risco é que quando você estabelece uma militarização, toda noção de direito e de interação social continuada desaparece em função de uma relação de força bruta. O poder de influência dos povos passa a ser determinado pelo poderio bélico. Isso significa uma situação de guerra permanente. Se é o poderio bélico que define as relações humanas, então a forma de comunicação num mundo como esse é a violência permanente.

NPC - Uma verdade e uma mentira sobre o ataque militar dos EUA contra o Iraque.

Luis Fernando - A verdade é que eles (os EUA) mostraram que têm o maior arsenal bélico do planeta em condições altamente avançadas tecnologicamente. Eles desmontaram o regime Saddam Hussein, isso é verdade. Agora é também verdade que eles levantaram a população do Iraque. Uma coisa é o regime Saddam, outra coisa é o povo do Iraque, que heroicamente está resistindo através de milícias. Os EUA sabem desmontar aquilo que eles mesmo construíram, que é o regime de Saddam Hussein. Agora eles não sabem desmontar um povo. É muito mais difícil a alma e o orgulho de um povo do que destruir infra-estruturas. Essas são duas verdades.

  Agora a mentira é a de que os EUA têm controle da situação, que todos os passos estão previstos. Eles querem esconder com isso que, na verdade, eles se encontram num impasse, porque não conseguem ter legimitidade para continuar fazendo as suas operações.

NPC - Como ficam os organismos internacionais, como a ONU e a própria OMC (Organização Mundial do Comércio), com a atitude do governo fraudulento Bush daqui para frente?

Luis Fernando - Essas instituições perdem o sentido, porque a partir de agora elas se tornam meros, aliás nem meros referendadores, elas deixam até de cumprir o papel de referendadores. Elas se tornam instituições que apenas ao final dão legitimidade à decisões de força. Aliás, a ONU sempre fez isso no jogo das superpotências na guerra fria, ou fez isso a partir de 1991 quando os EUA se tornam já a única potência militar naquele momento. Os EUA hoje nem mesma se preocuparam em chamar a ONU para cumprir esse papel. Ela (a ONU) perdeu inclusive o papel de referendadora. Ou seja, não se faz nem mesmo concessão ao discurso do multilateralismo. Então tanto a prática como o discurso são de regimes autoritários. Poderíamos dizer que é uma espécie de regime autoritário sobre o mundo. Por isso que a palavra império não é uma metáfora, ela é uma realidade.

NPC - Além do povo iraquiano, quem mais está sob a mira das armas dos EUA?

Luis Fernando - Todos aqueles que atrapalharem os seus negócios, os seus projetos de dominação universal. Isso quer dizer aqueles que queiram controlar recursos naturais que são importantes, por exemplo: petróleo, poder ser a água, a biodiversidade. Então, países que são muito importantes por possuírem esses recursos e que insistam em ser donos deles. Então esses países estariam certamente na mira. Por isso que o Oriente Médio todo está na mira e também regiões estratégicas como a Amazônia. Além disso países que tenham potencial bélico rivalizador, como a China e a Coréia do Norte.

NPC - Qual a relação que se pode fazer entre o "agir" americano hoje no Iraque e a Alca -- Área de Livre Comércio das Américas?

Luis Fernando -  A mesma lógica unilateral que preside os ataques contra o Iraque, ou seja, a falta de reconhecimento do povo iraquiano e a imposição sobre ele de todos os planos militares, sem que haja qualquer discussão além das bombas, é muito semelhante com a lógica comercial que os EUA estão aplicando na América Latina.

  A Alca é uma espécie de oficialização de toda a tradição de imposição unilateral que os EUA adotaram com relação a América Latina, só que de uma forma racional, planejada e sintetizada. É mais do que o velho imperialismo. A Alca se transforma numa espécie de planejamento antecipado da monopolização da periferia. Não há nenhum tipo de pedido ou de convocação, é uma espécie de anúncio. Você anuncia aquilo que você vai fazer e, de certa forma, já está fazendo. É o reconhecimento de sua prática imperial num estágio avançado. A Alca tem um tom muito violento. Os Estados Unidos entraram na Alca para ganhar em todos os mercados, em todos os setores. É a lógica da guerra. É a lógica de ganhar ou perder. Vida ou morte. A guerra é política por outros meios. E a Alca é apenas uma guerra por outros meios.

NPC - Então a luta contra a Alca é ainda mais atual para o povo brasileiro e para os povos da América Latina?

Luis Fernando - O Brasil tem um papel insubstituível nessa luta. Se não for o Brasil não será ninguém. Somos a última esperança. Pode não ser agradável ter "missões messiânicas", mas não há no quadro internacional e na América Latina outro país com condições de liderar um bloco alternativo.

NPC - Qual é o equilíbrio que deve ser alcançado entre o povo brasileiro e o governo Lula na discussão da Alca?

Luis Fernando - O povo brasileiro precisa aprofundar a discussão sobre a Alca e o governo precisa fazer parte e aceitar essa discussão como legítima, porque se trata de um projeto que se relaciona com o futuro do País: Que tipo de desenvolvimento nós vamos ter e quais são as articulações desse desenvolvimento com o território nacional?; Qual é o projeto de identidade nacional que se quer construir para o Brasil? Isso significa que a discussão da Alca precisa ser ampliada e qualificada. E é essa proposta que estamos fazendo do plebiscito oficial sobre a Alca. Nós estamos fazendo um abaixo-assinado, onde a população brasileira vai fazer esse desafio ao governo. Se é o novo Brasil que estamos construindo, se foi para isso que houve essa eleição, a gente quer aproveitar esse momento decisivo, que é o da discussão da Alca, para fazer essa discussão de uma forma competente, sem cronograma imposto de fora, mas a partir das necessidades do povo brasileiro. Um chamado para que o governo cumpra e execute a missão que lhe foi confiada. Ou seja, de conduzir um processo de discussão sobre o novo Brasil que nós precisamos.
 

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