No Pasarán!
Entrevista com Irmã Dolores. Por Rosângela Gil, de Santos, 21 de fevereiro de 2004


   Ela nasceu em Gijón há 77 anos, cidade que já existia há dois mil anos antes de Cristo com o nome de Gijia. A sua cidade natal fica ao norte da Espanha, no principado de Astúrias. Mas ela não mora na Espanha desde 1967. Maria Dolores Muñiz Junquera, ou simplesmente Irmã Dolores, como é conhecida, está no Brasil há  37 anos, fazendo o que mais gosta: trabalhando com os pobres e os excluídos. Não passa pela sua cabeça voltar para o seu país. Ela quer ficar aqui mesmo, no Brasil.

  Essa fortaleza de pouco mais de 40 quilos vive numa das regiões mais pobres da Baixada Santista, no litoral paulista. O Quarentenário é um bairro que fica na região continental da primeira cidade do Brasil, São Vicente.

  Irmã Dolores é incansável. Não pára um minuto. Ela optou em morar no mesmo local dos excluídos que defende. Quando não está na Escola Profissionalizante que tem o seu nome e oferece 13 cursos aos moradores do Quarentenário, ela pode estar na Igreja, na escola de ensino fundamental, na creche ou na Casa de Parto, que entrou em atividade há pouco mais de três meses. A sua jornada começa depois às 7 horas da manhã e se estende até onde a luta necessitar.

  Irmã Dolores, com doçura, mas muita firmeza, diz que uma das "chagas" deste mundo é o neoliberalismo. Faz discuros inflamados e se emociona muito quando o assunto é a exclusão social. Por onde passa, todos têm atenção às suas palavras. Silêncio, a irmã está falando. E é o que ela faz agora para os leitores do Brasil de Fato. Ela fala. Ela denuncia. Ela se agita repetindo a frase de uma conterrânea sua, também Dolores, mas Ibárruri, "La Pasionaria", que viveu um dos momentos mais difíceis da Espanha, a guerra civil na década de 30. As Dolores dizem: "no pasarán!"

Por que a opção pela vida religiosa?

Irmã Dolores -  Porque desde menina eu sempre quis lutar e trabalhar pelos pobres. Eu achava que as religiosas eram aquelas pessoas que consagravam a vida inteira à luta por uma causa. Só que eu sempre falava que a minha causa teria de ser os pobres, que se fosse para ficar num convento e trabalhar com outras pessoas, por exemplo em colégios de classe média, então eu iria embora. A minha opção era trabalhar para os pobres.

Dá para servir a Deus sem estar ao lado dos injustiçados? Quem são os injustiçados?

Irmã Dolores - Penso que não dá para servir a Deus dos cristãos, talvez a outros deuses, se não estamos ao lado do oprimido e do injustiçado. Primeiro de tudo porque a Bíblia diz que só conhece a Deus quem pratica a justiça e porque o filho de Deus se fez homem e se fez pobre para abraçar a causa dos pobres e injustiçados.

Pobre é aquele que não tem o necessário para viver uma vida digna. O pobre é aquele que vive uma vida constrangida, bem apertada. Ele é o injustiçado do sistema.

A miséria, a fome e outras injustiças sociais são problemas para serem superados aqui e agora, ou devemos esperar o reino dos céus?

Irmã Dolores - Precisam ser superados aqui e agora. Seria um comodismo muito grande não entender a doutrina de Cristo e pensar que a solução será para o futuro. O reino de Deus é o reino da verdade, da justiça, mas Cristo falou: "o reino de Deus está no meio de vocês". Qualquer lugar onde se luta pela verdade e pela justiça estamos estabelecendo o reino de Deus. Na outra vida será esse reino já em plenitude, mas ele deve se iniciar aqui e agora.

Do que o povo brasileiro precisa hoje: de fé ou política?

Irmã Dolores - A fé verdadeira é uma fé política. Não se pode separar a fé da política. Se eu tenho fé, se eu acredito no Deus da justiça e quero, como Cristo, dar até a vida pelos irmãos, eu vou estar lutando pela justiça. Eu vou estar ao lado do pobre, do menor, do oprimido, do injustiçado. É a minha própria fé que me leva a lutar pela justiça. Não há fé verdadeira se não lutarmos pela justiça.

E o que é a justiça?

Irmã Dolores - A justiça se faz quando todos têm o suficiente para viver com dignidade. Todos tenham moradia digna e não morem em barraco, muito menos num mangue ou embaixo de uma ponte. Tenham atendimento de saúde de qualidade e quantidade suficiente. Tenham trabalho com salário digno. O suficiente para poderem se alimentar, se vestir e para terem uma boa educaçãor. E lazer também.

O neoliberalismo é um sistema que cria justiça ou injustiça?

Irmã Dolores - O sistema neoliberal é o capitalismo selvagem. É a coisa mais injusta que a gente possa conceber. É um sistema onde o que tem valor é o lucro, e a vida humana não vale nada. Escutei um sociólogo neoliberal falar que para o Brasil chegar ao primeiro mundo não tinha como não criar desemprego, fome e outros "acidentes de percurso".

Por que a senhora escolheu o Brasil para desenvolve o seu trabalho como religiosa?

Irmã Dolores - Realmente eu não escolhi o Brasil. Eu queria ir para um país bem pobre. E na Espanha, quando se fala em países pobres, se pensa mais na África. Talvez porque esteja mais perto de nós (espanhóis). Pensamos também um pouco na Ásia porque São Francisco Xavier, o santo que missionou na Ásia e morreu olhando para a China, era espanhol. Mas a Congregação (ver qual é a da irmã) manda você para o lugar onde está mais necessitado de religiosas. Então, acho que dentro do terceiro mundo, naquele momento (final da década de 1960), o Brasil precisava mais.

Quando a religião é o ópio do povo?

Irmã Dolores - A religião é o ópio do povo quando ela não se situa no lugar social do pobre, quando converte a religião em emoções. Hoje vemos muita gente dizendo que segue uma religião mas que não quer nada com política. Como se a única coisa que tem a fazer é rezar. E reza e canta. E reza e canta, mas não coloca a mão na luta. Não coloca a vida a serviço do irmão. A religão se converte em ópio quando espera que as coisas se resolvam apenas com reza e cantos. Então, de alguma maneira, ela não luta, se conforma com aquele modo de viver. Por isso se aliena. Aquela religião que diz que Cristo sofreu, então também temos de sofrer, mas depois vamos ter o céu, é uma religião completamente alienante. 

   Cristo sofreu porque lutou pelo pobre. Cristo morreu lutando pela justiça. Foi condenado pelo poder civil e pelo poder religioso. Cristo foi um autêntico revolucionário de seu tempo.

Para quem ou para o quê a senhora diz o grito de guerra da também espanhola e guerreira Dolores Ibarruren (primeira presidente mulher do Partido Comunista Espanhol, na década de 30).: "no pasarán"?

Irmã Dolores - Eu diria "no pasarán" para os neoliberais, para os capitalistas, para a gente que só sonha com o lucro. Apesar de tudo o que está acontecendo, eles "no pasarán" porque Deus é maior. E porque Deus nunca deixará que a verdade e a justiça sejam pisadas completamente. Eu diria para os neoliberais, vocês "no pasarán". Vocês podem ter até a riqueza, mas vocês nunca dominarão o mundo.
 

Núcleo Piratininga de ComunicaçãoVoltar