Outro
jornalismo é possível?
(Marco Weissheimer
-
Agência Carta Maior)
Nestes tempos, em que "todos
somos democráticos", não seria nada mal começar a democratizar o
processo de construção textual do discurso jornalístico, abrindo sua caixa
preta para o público.
Qual a qualidade do jornalismo que
estamos fazendo? Essa reflexão se dirige, é importante que se diga logo de saída,
a todos os graus do espectro ideológico – com perdão pela expressão. E, de
um modo muito particular, dirige-se àqueles profissionais que tentam fazer algo
que vamos chamar aqui de "jornalismo crítico" (com todas as limitações
e simplificações que essa expressão acarreta). E é por ter uma certa (e
arriscada) pretensão de universalidade que ele – o texto – não vai
recorrer a exemplos, as “muletas da faculdade de julgar”, segundo a formulação
do filósofo alemão Immanuel Kant. A leitura diária daquilo que conhecemos
como "notícia" é uma oportunidade para refletir sobre a própria
natureza do jornalismo, sobre o que ele se tornou enquanto gênero discursivo
que pretende informar e formar a opinião da população. Não há aqui a
pretensão de apresentar nenhuma novidade exatamente; tampouco de levantar
receitas mágicas para os problemas enfrentados. É mais um convite à reflexão,
uma proposta de olhar para o próprio umbigo.
Uma das primeiras coisas que chamam
a atenção, na enxurrada de textos à nossa disposição diariamente, é a ausência
de idéias razoavelmente estruturadas e de argumentos explicitamente formulados.
Para além dos conceitos e preconceitos que “inspiram” os textos (e sua edição),
há uma permanente tendência em apresentar uma cadeia – mais ou menos aleatória
– de “fatos” e depoimentos com uma pretensão de “descrever” o que está
acontecendo. As aspas justificam-se aí, pois o que é apresentado como
“fato” não passa de uma construção conceitual (muitas vezes tortuosa) do
próprio autor (e/ou editor) do texto. Há um certo padrão onde, aparentemente,
não existe nenhum: tantas pessoas participaram de tal evento, fulano de tal
disse isso, sicrano disse aquilo, uma faixa dizia aquilo outro, a palavra tal
foi empregada tantas vezes, etc. O título que sintetiza essa diversidade
pretende apresentar a “essência” do que está sendo descrito. Palavras e
frases se sucedem sem que a “intenção” do autor do texto seja expressa
claramente como uma idéia central que estrutura o discurso. A palavra “intenção”
está sendo utilizada aqui, no sentido de construção conceitual, como se
tentará explicitar mais adiante.
Há algo oculto no texto?
Esse déficit de transparência não
implica, porém, afirmar que o texto “esconde” a realidade. Para o leitor
“atento” (palavra utilizada aqui no sentido de desperto, acordado, não
entorpecido), não há nada oculto no discurso. A intenção está entranhada
nas próprias palavras, na forma pela qual elas são articuladas, nos recursos
gráficos de que a notícia dispõe, na escolha das frases, na escolha ou na
construção dos fatos, na enunciação da notícia, na forma e no conteúdo da
reportagem escrita ou transmitida. Mas, como a figura do leitor atento
representa uma esmagadora minoria, pode-se falar de um espaço de ocultamento em
um âmbito mais geral do discurso jornalístico.
Talvez um dos elementos
estruturantes desse tipo de discurso possa ser encontrado em um mito caro à
formação jornalística, a saber, o de que o jornalista limita-se a
“reportar” o que vê e ouve, separando a “descrição” da “opinião”.
O bom texto jornalístico, ensinam os manuais de redação, limita-se a
“reportar”, a “descrever” o “fato”, como se isso fosse possível sem
a presença prévia de conceitos (e preconceitos) estruturadores da narrativa.
Tudo se passa como se a mais simples escolha de uma palavra para “descrever um
fato” fosse abençoada com a marca da inocência. O problema é que, no
limite, jamais há uma “descrição” de um “fato”, mas sempre uma
construção, e que, em nome de uma desejável transparência na relação entre
autor e leitor, essa construção deveria ser apresentada de forma mais clara.
O déficit democrático no
discurso
Há um, digamos, déficit democrático
na relação autor-leitor na medida em que esse processo de construção de
fatos mascara-se sob uma pretensão de objetividade e imparcialidade. Assim,
para verdadeiramente “ler” um texto precisamos dispor de algumas informações
prévias sobre o seu próprio processo de construção. No modelo atual, o
argumento e a idéia de cada texto (quando há) devem ser pescados em um pequeno
mar de intuições apresentadas de modo mais ou menos aleatório. A obsessão
com a apresentação de quadros, gráficos e tabelas só dificulta a vida do
pescador. No lugar de idéias, números; no lugar de argumentos, estatísticas.
Não que números e estatísticas não possam fazer parte de idéias e
argumentos, mas o que geralmente ocorre é que são apresentados “no lugar
de”, com uma pretensão de fornecer um argumento irrefutável. Por que se
tratam, tais apresentações, de argumentos irrefutáveis?
Uma das manifestações mais
problemáticas desse tipo de construção discursiva consiste em apresentar uma
frase dita por alguém, extirpada do seu contexto de enunciação, como sendo o
elemento mais importante para entender o sentido da fala como um todo. Falas de
30 minutos são oferecidas ao leitor em uma bandeja de duas ou três linhas. Os
critérios que orientaram a escolha dessas linhas jamais são explicitados para
o leitor. As distorções de significado não param por aí. Boatos, especulações
e intrigas são alçados à condição de “fatos” e, paradoxalmente, muitas
vezes acabam mesmo “produzindo” um fato onde não havia nenhum.
Indigência cultural e teórica
Some-se a isso a indigência
cultural e teórica que costuma acompanhar boa parte dos autores dos textos que
lemos hoje na imprensa e obtém-se um verdadeiro circo dos horrores semântico.
Essa indigência implica, muitas vezes, que a construção do texto seja
dirigida “desde fora” do autor, ou seja, ele carrega consigo e transporta
para o texto idéias que não são, verdadeiramente, aquisições (construções)
suas. Encontrar a idéia central nesse tipo de texto pode ser uma tarefa árdua
e penosa. Muitas vezes, ela está no que não é dito explicitamente, exigindo,
por essa razão, não uma, mas várias leituras (várias aqui tanto no sentido
quantitativo quanto qualitativo).
Talvez se esteja, aqui, exigindo do
jornalismo e dos jornalistas algo que seja estranho a sua própria natureza. Mas
não parece totalmente absurdo pensar a necessidade de um outro tipo de texto,
onde as idéias e argumentos que o estruturam sejam apresentadas de um modo mais
transparente, onde a apresentação de falas e eventos não seja marcada por uma
aleatoriedade que desvia o olhar da rede de intenções, conceitos e
preconceitos que cercam o autor. Aplicando essa pretensão a esse próprio
texto, a idéia central expressa aqui aparece na forma de um questionamento:
outro jornalismo é possível? Um jornalismo onde a relação entre “fatos”
e conceitos seja apresentada de modo mais transparente, de preferência sob a
forma argumentativa? Uma regra de ouro para esse “novo” texto (que, na
verdade, não tem nada de novo, mas que caminha celeremente para a extinção)
seria admitir, logo de saída, que a aparentemente inocente descrição de um
“fato” é, desde sempre, uma construção conceitual.