Nasce semanário Brasil de Fato e sonha em chegar a diário

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Vito Giannotti, em 31/01/2003

Em clima de festa é lançado um futuro jornal de esquerda. Seu programa é o mesmo do Fórum Social: criar um outro Brasil. Um Brasil dos que durante 500 anos nunca foram ouvidos. Um Brasil popular, solidário, justo. Enfim um Brasil socialista.

Porto Alegre: são 20:30 no auditório Araújo Viana, no meio do belíssimo Parque da Redenção. Mais de cinco ou seis mil participantes do 3º. Fórum Social Mundial se espremem nas cadeiras e corredores deste amplo espaço de muitas lutas.

O clima é um misto de festa, ato, manifestação. Nunca ninguém viu o nascimento de um jornal de esquerda neste clima. Também pudera, a maioria deles nasceu debaixo de forte repressão e por iniciativa heróica de meia dúzia de militantes!

 Logo no começo os locutores anunciam a presença da delegação de Cuba. O clima do ato/festa fica claro quando os locutores, logo após falar a palavra Cuba, puxam o coro conhecido: "Pátria Libre". Mais de cinco mil pessoas começam a levantar seus punhos ao continuar o coro: "Venceremos".

O Conselho Político do Brasil de Fato é chamado para o palco. São quase oitenta pessoas representando a maior variedade de vivência, experiência e história do povo brasileiro: dirigentes de partidos de esquerda, bispos, intelectuais, jornalistas, ativistas, artistas de muitos estados do país. A maioria veio para a festa-lançamento. Outros que não estavam na listagem inicial são incorporados ao Conselho na hora.

Em seguida são chamados membros do Conselho Editorial: Alípio Freire, César Benjamin, Hamilton de Souza, Kenarik Boujikian, Luis E. Greenhald, Luis Bassegio. M. Luiza Mendonça, Milton Viário, Neuri Rossetto, Plínio de Arruda Sampaio Jr e Ricardo Gebrim.

Após a apresentação, inicial os locutores chamam alternadamente os componentes da mesa do evento. Os aplausos são entusiastas para cada nome anunciado. Plínio de Arruda Sampaio é o primeiro. Em seguida é chamado o ministro Olívio Dutra. O auditório inteiro grita repetidamente: "Olívio, Olívio". A locutora chama a "mãe latino-americana" Hebe de Bonafini. Ela, representando todas as mães de desaparecidos latino-americanos vítimas das ditaduras militares dos últimas  décadas do século XX, levanta seu punho e leva o plenário ao mesmo gesto. Começa o gesto de se levantar e aplaudir calorosamente: o chamado é o escritor Eduardo Galeano. Em seguida o gesto se repete ao chamado do nome de um dos orgulhos mundiais do Brasil: o fotógrafo dos povos, Sebastião Salgado. Ao anúncio do nome da médica cubana Aleida Guevara, a filha do Che, mesa, palco e plenário se levantavam e o nome do revolucionário-símbolo da América do Sul, de Cuba e da revolução é gritado por uns a plenos pulmões, por outros com a voz embargada. Muitos começam a chorar. Uns, ao nome do Che, outros ao ver o mar de bandeiras do plenário, ou tanta gente batendo palmas feliz.

Mas o que é mesmo que está-se a fazer? A emoção é tanta que quase se esquece o motivo central da noitada.Os fotógrafos formam uma barreira de centenas de máquinas para não perder nenhum lance deste show/ato/cerimônia/festa/manifestação/lançamento. Sim, é o lançamento de um jornal. O Brasil de Fato. E os locutores chamam o editor-chefe: José Arbex Jr. Palmas e lágrimas de alegria por ter chegado até o fim deste primeiro ato.

Os locutores falam agora do novo jornal. Um jornal que continua a linha do tempo iniciada em 1922 com o Partido Comunista e seguida pela imprensa alternativa da década de 70. Citam Opinião, Movimento, Pasquim, Versus, Em Tempo. Brasil de fato se insere, hoje, na linha de outras publicações alternativas, como Caros Amigos e várias outras.

Na verdade, na reconstrução histórica faltou falar dos anarquistas do começo do século XX, com seus inúmeros jornais operários e da imprensa sindical atual, continuadora da imprensa alternativa da década de 70. Mas na hora da festa quase ninguém notou o furo histórico. Os locutores começam a anunciar o perfil dos idealizadores e impulsionadores do Brasil de Fato: em primeiro lugar o MST. Logo em seguida são anunciados os outros movimentos: Via Campesina, Pastorais Sociais, Movimentos Populares, Sindicatos combativos e correntes de esquerda organizada. Enfim, todos os que querem marchar "rumo ao socialismo". Os locutores continuam, então, dando a posição oficial: "Um jornal que quer ser plural nas idéias, mas profundamente comprometido com os interesses do povo brasileiro. O jornal quer ser um veículo que estimula as lutas sociais. Quer incentivar o engajamento político dos leitores. Que promove valores humanistas e fazer a disputa de idéias com a mídia e a sociedade."

"Brasil de Fato, hoje vai começar semanal, com uma tiragem de 100 mil, mas tem vocação diária e quer ter alcance nacional."

O editorial do número zero que está sendo lançado, lido em forma de jogral, continua: "Brasil de Fato" será pautado na realidade nacional e internacional. Falará de problemas e fatos conjunturais e estruturais históricos. Tudo do ponto de vista dos trabalhadores.

O novo jornal, que nasce aqui, não pretende substituir as publicações de partidos e movimentos sociais. Ao contrário pretende apoiá-los e divulgá-los.

Destina-se a militantes políticos, a estudantes, professores e participantes de movimentos sociais."

Ao término da apresentação-teatro as bandeiras se agitam quase sincronizadas. As mais visíveis são: do MST, da Via Campesina, da Argentina, Palestina, Uruguai, Venezuela, Cuba, Paraguai e Brasil. Che reinava entre umas e outras. Muitas outras apareciam: Movimentos de Mulheres, dos Sem Teto, e muito mais. Poucos observaram que faltou a bandeira vermelha da CUT. Mas havia tanto, tanto vermelho naquele auditório que não dava para se perceber nada.

Chegou a hora das saudações/discursos/felicitações dos integrantes da mesa. Da síntese das suas palavras fica claro o que estava nascendo. Um jornal, sim. Mas pairava uma esperança no ar que explodia em gritos, aplausos, punhos levantados e lágrimas não disfarçadas. Era um parto muito maior do que só o Brasil de Fato. Era o parto da retomada da utopia, do sonho de revolução, de punhos de novo levantados.

Vejamos as principais idéias lançadas pelos convidados especiais.

Plínio de Arruda Sampaio:

 "Nós somos uma revolução que retoma sua marcha"

- Brasil de Fato é para se contrapor ao Brasil de mentira que está sendo editado pelos grandes jornais, pelas rádios, pelas televisões. O nosso jornal já nasce brigando. Quem faz um jornal chama uma briga. O jornal é uma arma. Um instrumento.

- O Brasil de Fato é nossa afirmação do que temos como projeto. Temos uma alternativa para o Brasil. Nós vamos disputar com a grande imprensa.

- Por que não fazermos uma rede mundial de jornais socialistas?

-          Presidente Lula, tenha coragem! Vamos fazer um Brasil socialista."

Olívio Dutra:

"- Neste local, em 1979 minha categoria bancária, combatia contra a classe dos banqueiros, numa luta política pela liberdade e contra a ditadura. Havia tantas pessoas como hoje aqui, organizando os piquetes."

'A lembrança dos piquetes, os aplausos são frenéticos e o grevista Olívio Dutra continua: "Ficamos 14 dias presos e a categoria não se dobrou. Foi este processo todo que nos trouxe aqui hoje.

- Não há de faltar coragem ao companheiro Lula e ao seu governo, de garantir uma apropriação pública e solidária do Brasil pelo seu povo.

- O Brasil de Fato vai fazer sua parte. Nós respiramos o ar de mudança. Vai quebrar o monopólio da comunicação no nosso país.

- Nós temos a tarefa enorme pela frente, de enfrentar o monopólio da mídia, das comunicações.

- Cada um de nós tem que ser o construtor, o alimento deste Brasil de Fato. Nós agora estamos com esta ferramenta afiada na mão. Estamos dando o primeiro passo de uma longa marcha pela transformação."

Ao final, longo coro da platéia: "Brasil de Fato - o povo organizado".

Antes de dar seqüência à nova oradora, a locução anuncia e saúda inúmeros movimentos sociais, ONGs, Associações, deputados do PT, entre os quais o líder do PT no senado Eduardo Suplicy.

O plenário chegou a um dos pontos mais altos de delírio, o anúncio da palavra para Hebe de Bonafini. O rápido levantar-se de todos era uma homenagem às centenas de milhares de vítimas das ditaduras, que os Estados Unidos impuseram aos países latino-americanos, a partir do golpe militar no Brasil em 1964.

 Hebe de Bonafini :

"- É triste nascer para a vida num mundo tão perverso onde há tanta presença do inimigo.

- A revolução avança na América Latina. Avança em muitos países, lenta porém segura. O socialismo avança.

- Um filho que nasce hoje, nasce em liberdade. Nasce neste país que tem esperança.

- Quero dizer ao Lula que tenha coragem. Mas só com coragem não se garante o poder. É necessário um país mobilizado.

- Quero saudar Chaves que vem para acompanhar o Fórum.

- Nosso inimigo nunca se imaginaria que nós estaríamos aqui em milhares e milhares discutindo como fazer a revolução.

- Viva a revolução."

Os músicos cantam e tocam, com acompanhamento calmo e pensativo de milhares de vozes, a música de Violeta Parra: "Gracias a la vida".

É a música que foi cantarolada, ouvida com os tambores de Mercedes Sousa, durante os tristes anos 70 e 80 no Brasil, Uruguai, Chile, Argentina, Paraguai. Era a época de extermínio da esquerda pela Operação Condor. Os da platéia que tem cabelos brancos e grisalhos lembram bem.

Ao final do hino "Gracias a la vida", o anfiteatro ecoa com o grito que sempre foi repetido no Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru, Brasil... "O povo unido - jamais será vencido".

Frente ao espetáculo daquela platéia, Sebastião Salgado, pega sua máquina mágica e não resiste. Se levanta e tira várias fotos daquele mar agitado de gente. Mas rapidamente retoma seu lugar na mesa: é sua vez de ir à tribuna falar.

Sebastião Salgado:

-Hoje um jornal de esquerda, um jornal alternativo é muito importante.

Os jornais hoje falam muito da agricultura industrial, do agrobusiness, da agricultura de exportação. Fala-se pouco da agricultura familiar. Da necessidade de divisão da terra.

É preciso que se fale disso.

- Nos meus 30 anos de fotógrafo eu vi uma enorme injustiça no mundo. Vi genocídios na África que tem uma razão puramente econômica.

- É importante uma imprensa alternativa. Com ela precisamos fazer um debate de que tipo de sociedade necessitamos."

Os aplausos e a alegria após a fala de Sebastião Salgado são proporcionais ao carinho que todos nutrem por quem mostrou ao mundo as fotos da fome e da miséria e também da esperança de saídas do povo brasileiro e de outros povos da terra. Povos, Terras, Exodus!

Após Salgado, outro artista. Artista da palavra, da história, com seu olhar de condor, saúda a platéia: Eduardo Galeano. Provavelmente mais da metade dos presentes tinham lido seu livros: As Veias Abertas da América-Latina. De pé todos bateram palmas.

Eduardo Galeano:

"- Gracias a la vida, obrigado pela vida! Obrigado por estar aqui em Porto Alegre, que nestes dias do 3º Fórum, se transformou na capital do mundo. Nesta festa do arco-íris da humanidade que é o Fórum Social Mundial.

- Este sistema rouba a nossa água. Rouba nossa terra. Rouba a palavra. Nos rouba sim., esta é a palavra certa.

- Muitos companheiros se equivocam quando dizem que são a voz dos que não tem voz. Todos temos voz. Todos temos algo a dizer.

O sentido da imprensa independente é ser a voz dos que nunca foram escutados.

- Longa e intensa vida ao Brasil de Fato.

Após Galeano o conjunto canta "La zamba del Che", acompanhado por milhares de vozes.

O locutor entra no fim da canção: "A fonte de conduta para guiar nossos passos é Ernesto Che Guevara. Precisamos muito da pedagogia do exemplo. Nós somos os filhos do legado deste grande revolucionário".

A locutora passa a palavra 'a filha de Che.

Aleida Guevara.

"- Vi meu pai pela última vez quando tinha quatro anos e meio e ele estava de partida para o Congo. Vivi do seu exemplo. Tenho saudade dele.

- Sua morte não foi em vão. Nossos povos hoje tem seu exemplo de luta.

- Nasci em Cuba, já bloqueada pelos EUA. Seu único pecado é dizer que se pode viver de outra maneira. Mas hoje nossa ilha não está ilhada. Está junto com todos os povos do Rio Bravo à Patagônia.

- Hoje nasce o jornal Brasil de Fato. Só quando formos um povo culto seremos um povo livre.

- A tarefa de um jornal é a tarefa de ser crítico sempre.

- O MST é um dos mais belos e puros movimentos do nosso continente.

- Na primeira vez que vim ao Brasil me senti muito triste. Como é possível que tenha gente que morre de fome num país tão grande?

Temos duas alternativas: ou morrer de fome ou morrer tentando construir um mundo melhor.

- Temos o dever de cumprir esta nova vida, este novo mundo que começa a surgir no vosso país.

-Che Guevara, hoje, estaria junto conosco, levando coragem e amor para continuar a construir uma América Livre e Soberana".

A esta altura ninguém mais lembrava do que estava sendo lançado. Aleida termina com as palavras do pai: "Hasta la victoria, siempre". Todos de pé, com o famoso punho levantado gritam a plenos pulmões "Che vive - a luta segue". Depois da filha do Che um momento para relaxar. O maior milongueiro do vizinho Uruguai, Daniel Vignetti, traz aos presentes um abraço do seu país e dos célebres heróis latino-americanos: José Artigas, Aqugusto Sandino, Simon Bolivar e de toda a América andina dos Incas aos Astecas, do líder tupamaro Raul Sendic.

O clima é mudado por uma espécie de jogral que o criador do Teatro do Oprimido Augusto Boal  propõe aos presentes .

Sua afirmação central foi:

- O Brasil de Fato reflete o desejo de autodefesa do povo brasileiro contra o lixo autoritário que é vendido diariamente pela mídia. Autodefesa contra o lixo que nos é vendido pela Rede Globo, pelo SBT, Bandeirantes e todas as outras. Este é um desafio de todos nós. E nós o de encará-lo!"

A última voz oficial da noite foi a do editor-chefe: José Arbex. Muito pouco faltava dizer. Arbex faz uma rapidíssima saudação. Em síntese: "Até agora foi fácil. O trabalho começa agora." A esperança e o otimismo transparecem das suas rápidas palavras e vencem o cansaço tremendo que o acompanhou nos meses da montagem da arquitetura do Brasil de Fato.

O que ele tinha a dizer está alí, materializado no esforço de se criar, provavelmente até o final de 2003, o primeiro diário de esquerda, no Brasil, neste difícil século XXI. Valeu o esforço Arbex!  Valeu João Pedro Stedile, Letícia, Nilton, Emir, Cesinha, Plínio e todos vocês do Brasil de Fato!

As últimas palavras do Arbex se misturavam com as palmas finais e os acordes do conjunto, que com um fecho de ouro encerra este ato-festa-show-manifestação-lançamento ao som de A Internacional. A simbologia deste hino final representa a continuidade de uma linha do tempo que vem de 150 anos atrás e segue na busca do mesmo ideal.

Agora com uma nova e boa ferramenta à mão: o jornal Brasil de Fato.

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