O
debate entre os candidatos José Serra e Lula foi entristecedor. Vale explorar
as razões de tal impressão, pois creio remeter a questões bastante profundas
dos caminhos e descaminhos de nossos processos políticos contemporâneos.
O
formato escolhido, uma arena circular e gélida, em cor azul, daria o tom ao
longo de todo o tempo. Apresentações podem ser formatadas de várias maneiras
e, caso estejamos realmente querendo ver e ouvir cada um dos debatedores, ela
pode ser constituída em semi-círculo. Já bem sabiam disso os gregos, ao
fazerem seus anfiteatros. Ficaram, portanto, os presidenciáveis a girar em círculos,
um ao redor do outro. Se o que se quis foi dar uma sensação de arena, local de
combate de posições, não o conseguiram. Conseguiram mostrar dois homens
fragilizados num tablado aparentemente sem diretiva e que não auxiliava a
definir posição, exceto aquela que pairava como se fosse ordem natural, dos
“desenhistas” de um cenário frio. As câmaras, postadas acima, os reduziam
ainda mais a uma espécie de caricatura, quando os enquadravam de corpo inteiro,
à distância.
Não
é preciso ser especialista em cenário ou em semiótica para ver que quiseram
mostrar algo sofisticado, algo com o famoso “padrão global”. Esta sofisticação,
entretanto, se reduzia a uma aparência, incapaz de ser sequer elegante. A elegância
reside em fazer simples e direto, procurando a correlação entre função e
objetivo, e este se queria, supõe-se, pedagógico. Ora, responder a alguém da
platéia implicava estar de costas para a outra metade do público, o próprio
cenário definindo uma anti-pedagogia. Responder ao entrevistador significava
deixar de lado o público. Não estou supondo que isso tenha sido feito de propósito.
Não o creio. Lastimo que o hábito de pensar pedagógicamente se tenha perdido
e que, no afã de buscar soluções visuais de impacto, se perca a relação
social mais rica e promissora, e se encontre apenas o vácuo. Lastimo que o
conhecimento, que deveria lastrear os formuladores de cenário, se reduza hoje a
uma aparência…
Entretanto,
não se trata apenas de um ornato de fachada, há algo mais profundo sob ela -
fez-se uma adequação visual de uma efetiva arena romana, o circo. No mundo
romano, os soldados estavam postados para impor a luta entre os gladiadores. O
cenário montado na TV repetia o mesmo constrangimento, mas sob o império de um
poder ausente e impessoal, que os impelia a isso. O circo agora oculta sua
estratégia e seu poder sob as cores e luzes de um cenário sem humanidade.
Em
seguida, a estratégia do debate. Aqui, a coisa se torna ainda mais séria.
Prosseguimos na direção de uma analfabetização política do eleitorado!!! Um
debate entre presidenciáveis supõe a exposição de diretrizes sócio-políticas
as mais amplas e vastas, aquelas que, por se constituírem numa visão de mundo,
permitem aos eleitores e à sociedade identificarem as possibilidades de
concretização de políticas e não a exposição de promessas pontuais, as
quais sabemos todos que não correspondem á vida real. Não havia tempo para
isso, gasto nos comerciais.
O
padrão escolhido foi o de perguntas-“drops”. O que significa isso?
Pastilhas de informações, não sintetizadas mas encolhidas, sem argumentação
e sem contextualização, nos foram oferecidas, em dois minutos de respostas e 1
minuto de réplicas e tréplicas. A televisão, quando poderia expor e educar,
propôs, mais uma vez, a redução e o empobrecimento. Isso significa que, da
mesma forma que uma parcela da imprensa escrita, considera-se o eleitorado como
se fosse incapaz de pensar e refletir por si mesmo e, portanto, incapaz de ouvir
um argumento completo, uma exposição política consistente, uma verdadeira
defesa de um projeto social. Tal qual as revistas ditas “populares”, supõe-se
que a população não quer ler, não quer acompanhar o raciocínio que fica,
assim, reservado àqueles que não são “populares”.
Aqui
sim o conjunto proposto mostra toda a sua gravidade, pois essa é uma verdadeira
analfabetização política. Ela vem se exercendo de forma regular e insidiosa
através da imprensa e da mídia em geral, que crescentemente adota a fórmula
banalizante do “marketing”. Para este, quanto menos o consumidor pensar,
melhor será para a venda do produto. Uma frase de efeito ou uma imagem de
impacto vendem mais do que uma reflexão consistente, isso o sabemos todos. Mas
o que queremos num suposto debate político? Vender candidatos? Ou construir um
futuro de participação política onde projetos de futuro se defrontem, onde
seu conhecimento se socialize por todos os meios e mídias possíveis?
Porque
uma analfabetização do eleitorado? Há algum tempo estamos todos sendo
analfabetizados através dos meios impressos, através do mesmo processo de
eliminação dos argumentos sob a exposição de pequenos títulos.
Economiza-se, assim, o tempo do pensamento. Se essa analfabetização cultural
é dolorosa, quando se trata de opções políticas da seriedade que essas eleições
implicam, a situação é mais dramática. Drops não são capazes de expor os
horizontes que cada candidato precisa descortinar; drops não levam em consideração
as bases sociais de cada candidato; drops ocultam com quem e para quem cada
candidato deverá obrigatoriamente contar, para realizar seu governo. Drops
obscurecem, sob uma falsa suposição de sapiência e especialização, o mais
fundamental dessa disputa: o rumo geral da política a seguir, os alvos prioritários
de cada governo, suas bases sociais de sustentação.
Chegamos,
enfim, a um ponto positivo do debate: tais pastilhas de perguntas foram
realizadas pelo público. Novidade importante e valiosa. A seleção do público,
entretanto, por sua suposta “neutralidade” ou “indecisão” não faz
nenhum sentido. Não havia rigor estatístico, pois as intenções de votos não
estavam majoritariamente pendendo para a indecisão, nem os resultados
eleitorais do primeiro turno — o que é mais consistente, metodologicamente
— apontavam nesse sentido. Não havia sistematicidade científica, pois a não
representatividade do público frente aos resultados do primeiro turno reduzia a
acuidade das questões e, portanto, do conjunto do debate. Não havia, mais uma
vez, clareza pedagógica, pois se o que se queria era esclarecer posições
através do embate entre os candidatos, o teor das perguntas deveria ser mais
“mordaz” do que simplesmente fruto de uma indecisão.
Os
indecisos deveriam estar representados, evidentemente. Mas numa certa proporção,
e não como “modelo” do público, o que é evidentemente um falseamento da
situação real. Falseamento, inclusive, das questões candentes - juntamente
com seus pressupostos, e não apenas lastreadas numa suposta indecisão - que
afligem o conjunto de nossa população, tanto se considerada de forma isolada,
quanto, sobretudo, quando pensada em termos de suas formas organizativas. Estas,
aliás, desapareceram das perguntas, como se os lobbies e os movimentos sociais,
cujo peso é profundamente desigual no cenário político brasileiro,
inexistissem. Falar de classes sociais já seria exigir demais de um formato
como esse, sem dúvida. Assim, sequer mencionarei o assunto.
Um
cenário como o que foi desenhado e uma estratégia de perguntas tal como a
apresentada teriam tudo para favorecer aqueles com um certo tipo de prática de
sala de aula. Raciocínio direto e curto, tempo contado, especialização ao invés
de reflexão mais ampla e suposição de uma suposta objetividade imediata em
detrimento da complexidade das relações sociais. Professores talhados para
“treinar”, em moldes de transferência de módulos e conteúdos recortados,
e não para pensar em conjunto com a turma. Estratégia mais contábil (relação
tempo/benefício) do que de exposição clara e esclarecedora das questões
cruciais que atravessam o conhecimento de cada tema que tratamos e que, no nosso
caso, atravessam dramaticamente essas eleições. Vale lembrar algumas dessas
questões: o papel das grandes massas populares ao longo da história
brasileira; o debate sobre a opção feita nos últimos anos por uma globalização
acrítica, onde uma proposta de “complementariedade” ou “interdependência”
esqueceu-se da assimetria de poder no plano internacional (ou do imperialismo,
para usar termos mais claros); a questão da redução da dimensão pública no
âmbito do Estado brasileiro, onde cada pequena conquista histórica dos
trabalhadores brasileiros foi impiedosamente destroçada em nome de pretensas
virtudes mercantis; o horizonte sobre o qual nossas vidas deve dirigir-se, se
humanidade ou mercado. Em suma, questões que são fundamentais… de fato.
Não
é escopo desse texto analisar a performance
de cada candidato. Apenas para não passar em branco: se o cenário favorecia o
perfil professoral de José Serra, este dele tanto abusou que conseguiu mostrar,
pela caricatura, o quanto, tanto o formato quanto ele próprio, se centram no
egocentrismo como ponto de partida e de chegada da política. Ele parecia tudo
haver decidido, suposto, feito e realizado. O que ainda estava querendo fazer
ali? Se havia tudo antecipado, tudo realizado, tudo adivinhado, deveria já ter
resolvido o problema de sua própria eleição…
Dada
sua qualificação “doutoral”, esperava-se que fosse capaz de ir além das
repetições óbvia
Quanto
à Lula, apesar de estar mais à vontade, isto é, de não estar ainda
totalmente impregnado dessa falsa pedagogia — e foi estimulou sua revolta
contra a forma pela qual haviam decidido o teor de sua resposta quando
mencionava, exatamente, Paulo Freire — parecia querer demonstrar que poderia
“aprender” a se ajustar àquele formato proposto. Não é isso o que
precisamos! Isso já temos até mesmo em excesso.
O
negociador que precisamos não é o que sabe ajustar o “pacto” entre forças
desiguais. Este seria apenas um árbitro neutro (se isso fosse possível!) entre
relações sociais profundamente desiguais, como as que imperam em nossa
sociedade. A importância de Lula é sua significação histórica (e não suas
“obsessões”, ainda que sejam legítimas), é o fato de poder se posicionar
do lado das massas populares brasileiras e de lutar por elas e com elas. Não
por um pacto “abstrato”, mas por uma mudança significativa em prol das
maiorias.