Veja falando de sexo, nem Viagra dá jeito

(Sérgio Domingues)

A reportagem de capa da edição de Veja de 23 de julho é de deixar os cabelos em pé. E só os cabelos. Pelo menos para quem não concorda com leituras vulgares de Darwin e sabe que os seres humanos não são meros escravos de seus instintos.

O título já diz tudo: “Sexo: como nossos ancestrais”. O objetivo da reportagem é divulgar teses sobre uma pretensa novidade. “Agora, diz a matéria feita por Isabela Boscov e Marcelo Marthe, há uma nova revolução em curso na ciência. Ela prega que, se estamos aqui, é porque cada um de nós é fruto de uma seqüência ininterrupta, que já dura milhões de anos, de relacionamentos bem-sucedidos entre homens e mulheres.” A nova revolução em curso nada mais é do que o neodarwinismo, teoria que já está por aí há uns cento e poucos anos. Mas não vamos tratar dessa leitura distorcida da teoria de Darwin aqui. Não há competência suficiente neste autor para tanto. Vamos apenas nos referir ao que afirma a matéria publicada na revista semanal mais conservadora do país.

Os autores da peça jornalística começam afirmando que  “homens e mulheres, afinal de contas, passaram apenas 1% de sua trajetória evolutiva sob os efeitos da civilização. Durante os outros 99%, estiveram à mercê dos seus instintos ....” O período a que se refere a matéria é aquele que antecede não a civilização propriamente dita, mas a sociedade de classes. Antes desta existir não era dos efeitos de um conceito carregado de problemas como “civilização” que os seres humanos estavam livres. Mas da dominação com base na propriedade de meios de produção. A utilização de ferramentas de trabalho, de armas para caçar, de rudimentares instrumentos para pintar e esculpir imagens e formas. Nada disso tinha a ver com submissão a instintos. Ao contrário, significavam uma emancipação em relação a estes. Além disso, esse período é aquele em que não há a menor evidência de guerras e dominação generalizadas. Até porque as forças produtivas não haviam se desenvolvido o suficiente para permitir que grupos de pessoas se apropriassem de excedentes e se livrassem do trabalho manual feito em grupo para ficar na posição de administradores. Quando isso aconteceu é que aquilo que a reportagem chama de civilização apareceu e estabeleceu a dominação dos que planejavam sobre os que executavam. Mas o pior é que dizer que tais sociedades vivam à mercê dos instintos significa afirmar o mesmo sobre as poucas sociedades desse tipo que ainda restam no planeta. Estou me referindo às sociedades indígenas, cuja capacidade de conviver socialmente e seu respeito à natureza deixam nossas megalópoles sujas, violentas e injustas no chinelo.

O objetivo da matéria na verdade é inverter a relação entre ser humano e biologia. Colocar esta última acima das pessoas. Mostrá-las como escravas de seus instintos e determinações biológicas. Essa tem sido a tática pseudo-cientifica de todo pensamento conservador. É a base do racismo contra negros, do anti-semitismo, da naturalização da homossexualidade para tratá-la como doença, só para citar alguns casos.

Querem ver? A reportagem diz: “O cérebro humano é, na verdade, uma máquina de cortejar. Mais: ele é o maior e o melhor ornamento sexual da espécie humana, assim como a cauda o é para o pavão e os chifres, para o cervo.” Pois é, ao invés de o cérebro humano tal como passou a funcionar no Homo Sapiens ser uma conquista da cultura, do trabalho, da ação humana sobre a natureza, ao contrário de ser produto e produtor de sua emancipação em relação a ciclos de reprodução sexual, de rituais de sedução fixados por leis naturais, o cérebro é apenas um equipamento sofisticado a serviço da reprodução.

Assim, diz a matéria, “na maioria das espécies, o desejo sexual é uma estratégia para propagar os genes. Entre homens e mulheres, não. Entre nós, o desejo sexual é uma estratégia para obter prazer sexual – e esse prazer é que é a estratégia dos genes para se autopropagar.” Esta última afirmação não deixa de ser exatamente a mesma que foi feita em relação aos outros animais, apenas com uma fase intermediária. A do prazer sexual. Assim é que a arte, a música, o refinamento da linguagem, a moral ou a política. Tudo isso que os biólogos consideram nas palavras da revista “excesso de bagagem” foi definido como táticas de seleção sexual e conquista. Esta seria a conclusão de um tal Geoffrey Miller. Estudioso norte-americano de psicologia evolutiva, a nós (ou a mim, pelo menos) apresentado pela Veja.

Mas não fica nisso. A reportagem é extensa. Tem espaço para muito mais preciosidades. Por exemplo, “alguns estudos vêm revelando: que os homens considerados bonitos costumam ter sêmen mais saudável do que o de seus colegas esteticamente menos favorecidos.” Não é que queira advogar em causa própria, mas uma tal afirmação exigiria que pelo menos os tais estudos fossem citados. E que neles encontrássemos uma definição consistente do que é ser um “homem bonito”, coisa difícil.

Mais outras pérolas são apresentadas. Como é que se explica a preferência masculina por cinturas finas? Lá vai: a cintura fina é “um acúmulo de gordura na medida certa nessa região do corpo –em que circunferência de cintura equivale a 70% da dos quadris –indicador ancestral de saúde e fertilidade.” Parece que os autores da matéria nunca ouviram falar de estatuetas da pré-história, ou nas pinturas do renascentista Rubens, que mostram musas que poderiam desfilar em qualquer ala das baianas de nosso carnaval.

E a preferência feminina por maxilares quadrados? A tal queixada angulosa é explicada assim: a energia gasta para tornar um queixo forte é enorme, por isso mesmo é um sinal de que o macho pode desperdiçá-la (!!). Se pode desperdiçá-la, é porque tem muita energia lá de onde ele tirou essa (!!)”.  Sinal de que é um macho fértil e forte para proteger a prole. E o papel de protetor natural para o homem é assumido sem mais, nem menos. A reportagem ignora estudos que dizem que pelo menos em 33% do tempo em que a humanidade não contava com os “progressos” da civilização baseada na dominação de classe, a mulher é que administrava a sociedade. É o famoso matriarcado. E, como não sou leviano, vou citar o estudo de onde tirei esse dado. Trata-se de Female Power and Male Dominance (Cambridge 1981), de P. Sanday, citado por Sheila McGregor em seu ótimo artigo Rape, pornography and capitalism  (1989), publicada em International Socialism 2:45, 1989.

Acontece que não ocorre aos empenhados jornalistas que padrões de beleza são determinados cultural e ideologicamente. E que tanto um nível como outro estão fortemente ligados em sociedades de dominação de classe. Pois, aquilo que os poderosos pensam, fazem e aparentam ser tem que ser lei para os dominados. Do contrário, o poder não se sustenta.

O problema é que isso não combina com a linha editorial da publicação semanal. O que interessa é continuar a apresentar o comportamento humano como resultado dos instintos, pura e simplesmente. Para isso, não hesitam em afirmar disparates como este, ao se referirem ao período de ovulação da mulher: “...há mesmo provas de que elas olham muito mais para os lados durante o período fértil”. Daí, a explicação para o fato de que “os homens reagem mostrando-se muito mais atenciosos nessa fase do mês do que em qualquer outra.” Aonde eles foram para achar as tais provas, não se sabe. O que eles sabem e nos contam é que as mulheres ficam loucas para pular a cerca quando estão em período fértil e os homens ficam cautelosos e amáveis.

Mas isso é detalhe. O principal é ignorar o verdadeiro massacre feito pela grande mídia para impor padrões físicos e estéticos a bilhões de pessoas no planeta. Dentre os quais, uma pequeníssima minoria tem dinheiro para desperdiçar em academias, clínicas de cirurgia plástica, produtos cosméticos etc. O restante afunda na frustração de um corpo, de um rosto, cabelo ou roupas inadequados aos padrões dominantes. O principal é tratar as pessoas como máquinas de copular e procriar, ignorando a riqueza cultural que os seres humanos construíram, apesar da exploração e da opressão do tal período “civilizado”. Ignorando o patrimônio que significa o direito a afirmar sexualidades das mais diversas formas e que estão longe de qualquer determinação biológica reprodutiva.

Veja reafirma seu papel reacionário e sua submissão aos mais baixos instintos da dominação burguesa.

Julho de 2003

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