TV facilita individualismo e dificulta grandes mobilizações

(Sérgio Domingues) 

Antigamente, íamos buscar votos nas fábricas, bancos, ruas e praças. Hoje, aguardamos ansiosos o horário político na TV. O que mudou? Traímos a causa? Não, necessariamente. A classe dominante fragmentou a classe trabalhadora e a grande mídia bloqueou o caminho da mobilização.

Lei Falcão: só fotos 3 x 4

Em 1982 ocorreram as primeiras eleições diretas para um cargo executivo desde o golpe militar de 1964. Eram as eleições para governador. O horário eleitoral obrigatório na TV ainda estava sob a chamada Lei Falcão, que proibia qualquer outra informação sobre os candidatos a não ser uma foto 3 x 4, o número do candidato e uma breve biografia.

Naquela época nós do PT não dávamos muita bola para isso. Era ridículo e antidemocrático, lógico. Mas tínhamos certeza de que nossos votos viriam da presença da militância nas ruas e nas lutas. Nos comícios de massa e nas portas de fábricas, de bancos, nas escolas, faculdades e feiras-livres etc.

Depois da frustração das Diretas, mais liberdade na propaganda

E até certo ponto era verdade. A militância ia pra rua com garra e arrancava votos na discussão e na organização. Ficamos longe de conseguir todos os votos com que contávamos. Por isso, a luta por mais liberdade de propaganda e agitação foi ganhando mais espaço. E a mesma pressão que arrancou eleições para outros níveis de governo, apressou o final da ditadura com as Diretas Já, também conseguiu derrubar a Lei Falcão. Nas eleições seguintes, em 1985, após o movimento das Diretas e sob um governo civil, a propaganda eleitoral já não era mais aquele desfile de fotografias e números, sob a voz abafada de um locutor oficial.

A lei passou a permitir a apresentação de propostas e maior liberdade de produção. E o PT foi um dos que melhor aproveitou essa nova liberdade. Apesar da falta de verbas e do tempo curto, os programas petistas ganhavam em criatividade. Basta lembrar, por exemplo, do Zé do Muro, personagem que ficou famoso na campanha municipal de São Paulo daquele mesmo ano.

Mas tudo isso foi afastando a necessidade de disputar o voto no cotidiano das pessoas. Hoje, todos aguardam o início da propaganda na TV para avaliar como ficarão as candidaturas nas pesquisas. Pior que isso, a TV e a pesquisa se tornaram nossos dois maiores referenciais nas eleições. Ao invés de irmos para as ruas atrás de votos, para fazer a disputa corpo-a-corpo, para fazer nossas candidaturas subirem nas pesquisas de opinião, passamos a aguardar ansiosamente que o programa político melhore, as pesquisas mostrem a subida de nossos candidatos, e, claro, que a grande imprensa não abuse demais de mentiras ou distorções sobre a oposição.

Edição do debate Lula x Collor: exemplo tristemente inesquecível

Um exemplo tristemente inesquecível dessa dependência em relação à TV foi o debate entre Collor e Lula, às vésperas da eleição presidencial de 1989. Lula não se saiu muito bem no confronto, mas o maior problema não foi esse. Afinal, o programa foi ao ar tarde da noite. Provavelmente só assistiram os petistas mais engajados e aqueles que já tinham opinião formada sobre uma e outra candidatura. O que deu caráter quase decisivo ao debate foi sua edição no dia seguinte no Jornal Nacional. Outro desastroso exemplo foi o depoimento de uma ex-namorada de Lula, comprada pela quadrilha collorida. Também amplamente repercutida na grande imprensa.

De lá para cá, só piorou. As redes de televisão e retransmissoras estão sob controle dos grandes grupos econômicos do país e fazem e falam o que bem entendem, sem qualquer controle público. Esse quadro mostra que temos uma verdadeira ditadura da grande mídia no Brasil, cujo personagem principal é a transmissão pela televisão.

O abandono das origens: explicação insuficiente

Diante disso, muitos alegam que a CUT, o PT e os outros partidos de trabalhadores abandonaram suas origens. Que eles deveriam voltar a ocupar as praças e ruas, voltar às portas de fábricas, bancos, etc etc. Tudo isso, realmente, tem que voltar a ser feito. É inegável que a luta pelo voto e por espaços no parlamento, em governos municipais e estaduais, pela presidência da república acabou por restringir nossa intervenção. E não é à toa. O parlamento, os governos, a disputa eleitoral, fazem parte de um jogo dominado pelos poderosos. Eles fazem as regras e as mudam quando há o perigo de prejuízo a seus interesses. E se isso acontece no campo da legislação, imaginem quando se trata de usar a grande mídia, que não conta com qualquer regulamentação mais efetiva. É sopa no mel para a classe dominante.

 

Mas tudo isso não invalida a opção pela disputa institucional. Sem ela, não há como chegar a grande parcelas da população e denunciar a exploração. Além disso, quem critica o abandono das ações mais diretas geralmente entende que não isso não acontece apenas por falta de vontade política de nossas direções. Como se as condições de dominação não tivessem mudado nos últimos 20 e poucos anos.

Anos 1980: grandes mobilizações. A classe dominante sentiu o perigo

Em primeiro lugar, as lutas pelas chamadas liberdades democráticas foram muito importantes para derrotar a ditadura militar. E quando essas liberdades vieram (o voto direto, a organização sindical nos locais de trabalho, o fim da censura oficial) a classe dominante tentou vendê-las como o máximo. Como se nada mais precisasse ser conquistado. Muita gente acreditou. Mas a maioria queria mais. Queriam melhores condições de vida e foram à luta. A década de 1980 foi um dos períodos de maior número de greves da história do país.

A classe dominante sentiu o perigo. Começou a agir. Para começar, atacou a classe operária, grande protagonista das lutas do final da década de 1970 até os anos 90. A partir do governo Collor, começou o desmonte da indústria brasileira e o desemprego diminuiu drasticamente o número de trabalhadores nas grandes indústrias e submeteu aqueles que ficaram nas fábricas à chantagem da demissão. E isso não aconteceu só na classe operária. Mesmo um setor de serviços como os bancários, responsável por grandes greves nos anos 80, perdeu mais 350 mil postos de trabalho nos últimos 20 anos. Com isso perdemos os lugares onde organizávamos grandes contingentes de trabalhadores para lotar estádios, praças, ruas etc.

 

Fora Collor. Últimas grandes mobilizações

Mesmo assim, os efeitos do neoliberalismo do governo collorido ainda não haviam surtido seus efeitos mais profundos. Por isso, fomos às ruas e conquistamos o impeachment. A queda de Collor colocou as esperanças do povo no PT e seus aliados. Havia a certeza de que não poderia haver novas aventuras. Só um governo dos trabalhadores começaria a dar um jeito no país. Mas, a classe dominante tinha uma carta na manga. Era a estabilidade monetária. O Plano Real foi escrito em Washington mas, aplicado aqui, surtiu o efeito desejado. O fim da inflação era uma necessidade dos grandes grupos econômicos internacionais. Eles queriam mercados novos para fazer seus investimentos. Como esses investimentos eram em dólares, seria preciso acabar com a farra das moedas nacionais dos países pobres, que viviam inflacionadas. Era preciso um mercado estável para que o dólar entrasse e dominasse.

Mais uma vez o jogo virava a favor da classe dominante, agora com um Fernando muito mais esperto à frente. Com FHC e o Plano Real, a classe trabalhadora via seus empregos sumirem rapidamente. Os antigos metalúrgicos, bancários, químicos, vidraceiros etc começaram a virar donos de pequenos estabelecimentos, camelôs, autônomos, “biqueiros” etc. A classe que se reconhecia unida, trabalhando para grandes patrões, ficava cada vez mais fragmentada pelo mercado informal, campo fértil para o “cada um por si”, para o mais puro individualismo.

Plano Real, Copa do Mundo e TV: “cada um por si” começa a prevalecer

Junte-se a isso as facilidades que o Plano Real deu para as compras a crédito e temos um quadro que não favorece os eventos de massa. Que leva a que cada um cuide de seu mundinho.

Uma das indústrias mais favorecidas pelas facilidades das compras a prazo foi a eletro-eletrônica. Principalmente, a de aparelhos de televisão. Até hoje, padarias e botecos têm TVs instaladas, adquiridas para a Copa Mundial de 1994, no auge do Plano Real.

Portanto, por um lado boa parte dos trabalhadores parou de se encontrar socialmente em seus locais de trabalho. Começaram a disputar uns com os outros no precário e selvagem mercado de serviços. Por outro lado, a TV aprofundou seu caráter de intermediadora das relações entre as pessoas. E com essa poderosa aliada, a ideologia dominante ganhou ainda mais força para se impor aos dominados.

Mudança começa por assumir a democratização da grande mídia como bandeira prioritária

Assim, não se trata apenas de querer voltar à velha e boa fórmula das mobilizações de massa. É preciso verificar o quanto isso é possível. É claro que muita gente se acomodou nessa situação usando as dificuldades como pretexto para desistir da luta. Mas do ponto de vista da comunicação e da propaganda das idéias socialistas, as dificuldades se tornaram muito maiores. E disputar com a TV, atualmente, é covardia.

 

Por isso, é preciso que cada sindicato, partido de trabalhadores, entidade popular, coloque em sua pauta de reivindicações e em sua agenda de discussão e mobilização a democratização dos grandes meios de comunicação. Rádios e TVs comunitárias são importantes e devem ser construídas desde já. Mas sem o combate ao monopólio legal da grande mídia, serão uma gota num oceano.

Voltar