A série especial do JN foi ao ar entre os dias 28 de abril e 02 de maio. Conseguiu falar sobre os impostos no país sem mencionar a dependência externa, a herança tucana e o pesado jogo de interesses que a questão esconde.
“Poucos
temas neste país conseguem essa unanimidade: o Brasil precisa de uma reforma
tributária.” Esta é a conclusão do primeiro programa da série especial do Jornal
Nacional sobre os impostos no Brasil. Realmente, trata-se de um tema
bastante discutido. Mas discutido nos termos que a mídia coloca. A série do
Jornal Nacional é um bom exemplo disso.
No programa do dia 29 a mesma afirmação voltou a aparecer. “Sindicalistas e empresários têm reivindicações próprias, mas que se unem num mesmo ideal: um sistema de impostos progressivo, quem pode mais, paga mais. Um princípio de justiça social.” De novo a idéia de unanimidade. Mas a estrutura tributária do país não nasceu pura e simplesmente da ineficiência dos governantes. Ela reflete um jogo de interesses e poder. E nesse jogo, os patrões são os donos do baralho, da mesa do jogo, do cassino e mudam as regras à menor ameaça de derrota. Mas vamos a alguns aspectos da série.
Essa
série do Jornal
Nacional até que surpreende fazendo algumas afirmações bastante corretas.
É o caso da reportagem com um gerente de vendas. Ele “vive só com a mulher,
e de acordo com tributaristas, de tudo que ganha, 30% desaparecem na forma de
impostos.” A esposa comenta acertadamente: "Pagar imposto e ver revertido
em alguma coisa, na saúde, na educação você pagaria até com gosto”.
Pergunta
nunca feita: para onde vão os recursos dos impostos?
Sensato,
sem dúvida. Mas porque é que o programa não pergunta para onde vão os
recursos que deveriam ser revertidos para a saúde e a educação? Provavelmente
porque a resposta ficaria fora da estética do Jornal
Nacional. Falar que verbas que deveriam ir para hospitais e escolas vão
parar no bolso de grandes banqueiros credores do governo fica feio.
Melhor
é dizer que “A carga tributária do Brasil é uma das mais altas do mundo. É
estimada em 36,5% do PIB”. E colocar um especialista chamado Celso Martone
para dizer que a tal carga “cresceu muito em dez, oito anos e hoje está num nível
que inibe o crescimento do país”. Só não ficou explicado que os dez ou oito
anos a que ele se referiu coincidem exatamente com a dinastia dos Fernandos, fiéis
seguidores das receitas neoliberais. O segundo Fernando com a vantagem de ser
muito mais competente no desempenho da rasteira função.
Aí
é só arrematar dizendo que "a conseqüência mais séria disso é o
desemprego. É a falta de condições de gerar novos empregos". Espertas
palavras de um empresário que muito provavelmente apoiou o modelo de
desindustrialização de Fernando Henrique e agora achou no peso dos impostos as
razões para a tragédia do desemprego.
O
terceiro programa da série mostra novamente um Jornal
Nacional diferente. Falando coisas que prestam. É o caso da reportagem
sobre a família de uma professora, que “paga, por exemplo, no preço do
macarrão, 26% de impostos embutidos. No frango, outros 20%, segundo cálculos
de consultores independentes.” Uma afirmação correta e que fica melhor ainda
com a seguinte afirmação do tributarista Álvaro Taiar Júnior: “Há uma
injustiça aqui. Porque classes de renda mais baixa consomem basicamente 100% de
sua renda e, portanto, pagam esses impostos sobre o consumo, impostos
escondidos, sobre 100% de sua renda”. Só deixou de mostrar o outro lado.
Deixar mais claro que as famílias mais ricas, aquelas dos donos de fábricas e
fazendas vivem a situação inversa. Gastam pouco de seu orçamento com a
sobrevivência e ainda repassam o que pagam ao preço das mercadorias que
vendem. Dizer que essa é a lógica capitalista. Uma lógica injusta por
natureza.
Ao
invés disso, o programa prefere falar de outra injustiça. Aquela apontada por
empresários: “muitos impostos são cobrados sobre as vendas, sobre o
faturamento da empresa. Paga-se mesmo quando há prejuízo. O ideal seria cobrar
com base no lucro.” Do ponto de vista da micro e pequena empresa, podemos até
concordar com esse raciocínio. Afinal, é este último segmento empresarial que
mais sofre com as incertezas da economia. É só ver o elevado índice de
mortalidade de pequenas empresas. Mas falar em prejuízo nos casos de grandes
empresas é brincadeira. Não dá para generalizar.
Depois,
duas informações interessantes apareceram no programa. Uma, a de que “nos
Estados Unidos, os tributos sobre o consumo respondem por 16% da arrecadação e
o Imposto de Renda de pessoa física, 41%. No Brasil, é o inverso. Os impostos
sobre consumo representam 45% do total recolhido e o imposto de renda 14%.” A
outra, “O governo também quer mexer em três impostos responsáveis por
apenas 0,4% da arrecadação. O de herança e o de venda de imóveis terão alíquotas
mais altas para os mais ricos. O imposto territorial rural passa da União para
os estados.” O problema é que uma deveria completar a outra de forma lógica.
Isto é, se no Brasil a taxação sobre o consumo é muito maior do que a que
incide sobre a pessoa física, quem está se beneficiando é quem tem mais
patrimônio. Daí, o governo corretamente querer elevar os impostos sobre heranças
e venda de imóveis. Mas isso não é dito de forma clara.
A
CMPF não pega todo mundo. O grande capital se safa.
Por
fim, o programa do dia 1o de maio resolveu falar da CPMF e do Cofins. Diz a
reportagem: “São pelo menos 14 cobranças de CPMF embutidas no preço [da
mercadoria]. Assim, com um cheque de cada vez, a CPMF arrecadou R$ 22 bilhões
no ano passado. O imposto do cheque foi criado há dez anos. Era para ser provisório,
mas está aí até hoje, e pega todo mundo.” Em relação à Cofins, o
programa diz que ela “abocanha 3% do faturamento das empresas, mesmo quando
elas não têm lucro. A contribuição, antes chamada de Finsocial, surgiu há
20 anos com uma alíquota de 0,5%. Hoje é seis vezes maior.” E conclui:
“Juntas, Cofins e CPMF arrecadaram R$ 74 bilhões no ano passado, 15,5% da
receita total.”
Tudo isso dito de forma a esmagar o telespectador com números e siglas. O que a reportagem não diz é que o grande problema da CPMF não é ser provisório existindo permanentemente. O grande problema da CPMF é que ela foi criada para levantar recursos para a saúde pública. Mas cerca de 80% da CPMF não chega aos cofres da saúde. Quanto à Cofins, ela também teria que servir como fonte de receitas para a seguridade social. Mas a seguridade também fica esperando em vão esses recursos chegarem. E eles não chegam a seu destino porque o governo Fernando Henrique aprovou uma aberração chamada Desvinculação das Receitas da União (DRU). A DRU foi criada para desobedecer a Constituição de 1988. É que a Constituição determinou que certas receitas não poderiam ser desviadas de seus objetivos. Por exemplo, o que fosse arrecadado para a saúde teria que ser destinado à saúde. O mesmo acontecendo com a educação, a seguridade etc. Mas, a DRU simplesmente permite que até 20% dessas receitas sejam desviadas para gastos do governo. Desde então, recursos da educação, saúde, previdência, estão ajudando a pagar os juros das dívidas interna e externa. É o famoso superávit primário. E é por isso que as contas da previdência não batem e a saúde está na ala dos desenganados. Enquanto isso acontece, os servidores públicos pagam o pato pelo falso rombo da previdência e a população morre nas filas dos hospitais e laboratórios. Portanto, a CPMF não “pega todo mundo”. Alguns se safam e estes são os que se beneficiam do desvio da arrecadação da CPMF e da Cofins: os credores do governo, ou seja, o grande capital.
Falar
tudo isso, no entanto, além de dar trabalho, não cabe no figurino do Jornal
Nacional. O JN, admitamos, anda com cara de solidariedade. Coisas da era
Lula. Mas, continua afirmando de um lado e omitindo de outro para direcionar as
mentes hipnotizadas da maioria de seus telespectadores. Afastar a discussão
para longe das contradições de capitalismo e mantê-la presa ao discurso
liberal. Aquele que joga a culpa no peso do Estado e em seus impostos
esmagadores e inúteis.
Seria
pedir demais que o Jornal
Nacional explicasse que impostos são resultado da existência do Estado. E
que o Estado é conseqüência de sociedades desiguais. Sociedades baseadas na
divisão e na exploração de classe. Que, enquanto não conseguirmos acabar com
a divisão e a exploração de classe, temos que fazer justiça social
arrancando dos ricos e poderosos. Devolvendo aos pobres e despossuídos aquilo
que lhes foi tirado através da exploração de sua força de trabalho nas fábricas,
fazendas, supermercados, lanchonetes. Devolver na forma de serviços básicos,
como transporte, moradia, educação, saúde e aposentadoria.