Lisbela
e os prisioneiros do tédio
(Sérgio Domingues)
O filme de Guel Arraes tem a marca de seu gênio televisivo. Mas o presente texto não vai tratar das inegáveis habilidades do diretor. O que chama a atenção no filme é o papel que a indústria do entretenimento cumpre na vida atual.
O filme de Guel Arraes
tem a marca de seu gênio televisivo. Controla a narrativa com talento usando os
elementos que o tornaram famoso na tevê. Cortes rápidos, intercalação de
histórias, diálogos inteligentes e o maravilhoso humor nordestino. Humor de um
povo submetido a condições tão precárias que fazer piada com Deus e Jesus
lhe é perdoado, pois parecem ser estes a fazer piada daquele.
Mas, o que chama a atenção
no filme é o papel que a indústria do entretenimento cumpre na vida atual.
Pela ambientação, cenários e figurinos, a história se passa em algum momento
antes da ditadura da tevê na vida do dia-a-dia. Mas há um seu ancestral na
forma dos filmes seriados que enchiam as salas de cinema quase todos os dias por
volta dos anos 1960. Lisbela (Débora Falabella) é uma fã do gênero. Está tão
acostumada a acompanhar os episódios, que adivinha o andamento das histórias
pela seqüência lógica da narrativa. Por exemplo, “Se o mocinho se
desentendeu com a mocinha, em certo momento algo vai acontecer para provar que
ambos nasceram um para o outro. Depois de derrotar o vilão, o mocinho fica
finalmente com a mocinha etc etc”. De tal forma que Lisbela está sempre um
passo a frente do que a narrativa vai mostrar. No entanto, ela jamais deixa de
ir ao cinema, pois é lá que faz suas viagens pelo mundo das emoções e
aventuras. Quando a luz apaga, diz ela, parece-lhe que não está mais naquela
sala e nem continua sendo ela mesma.
Ora, podemos dizer que o
que serve para Lisbela, serve para os milhões que acompanham as novelas
diariamente ou assistem aos filmões norte-americanos do tipo blockbuster.
Finais previsíveis e atraentes
Basta ter assistido a
mais de 10 horas de novelas ou filmes para começar a dominar as fórmulas da
narração, antecipar desdobramentos e finais felizes. É o caso, por exemplo,
do mocinho ou mocinha pendurada pelas pontas dos dedos na beira de um precipício.
Sabemos todos que a personagem vai se salvar no último momento. Mas, assim
mesmo, continuamos a assistir até que o final previsível nos cause o também
previsível alívio porque tudo acabou bem.
Essa repetição de fórmulas
que continua atraindo público somente pode ser explicada porque a vida que
levamos é tediosa e previsível ao mesmo tempo. Tediosa, ao não apresentar
perspectivas de mudanças. Previsível, ao assegurar-nos de que o desemprego e a
doença podem nos levar a um final nada feliz. A grande maioria das pessoas têm
um emprego que não as satisfaz profissional ou financeiramente. Cumprem horários
cansativos, enfrentam um trânsito enlouquecedor, tentam acompanhar o ritmo de
uma sociedade consumista sem dinheiro para tanto. Por outro lado, não têm a mínima
idéia de como será o amanhã caso fique sem emprego ou adoeça. Tudo isso é
produto da sociedade capitalista, em que alguns poucos podem se dar ao luxo de
planejar o futuro, trabalhar no que gostam, gastar sem preocupações, contar
com boa assistência médica e passar as férias em praias ou estações de
esqui, conforme o estado de ânimo.
Como este não é o caso
da grande maioria, deparar-se com histórias com começo, meio e fim, temperadas
com fortes emoções acaba sendo uma forma de viver por tabela. A tabela, no
caso, são os modernos meios de entretenimento, principalmente a TV e o cinema.
Pequenas frustrações escondem a grande frustração
Esta função dos meios
de entretenimento poderia ser até positiva. Mas não passa de uma forma de
manter as pessoas conformadas a suas pequenas frustrações e cegas para a
grande frustração que é trabalhar sem prazer, por longas horas e pressionado
por exigências sociais como a moda, o carro do ano, e educação dos filhos, o
lazer mais chique etc.
Vivemos numa sociedade
cada vez mais proletarizada. Cada vez mais pessoas vendem sua força de trabalho
e trabalham em condições que não estão sob seu controle. Isso é verdade
tanto para camelôs que trabalham em barracas que não são suas, como para operários,
advogados de empresas, professores, médicos do serviço público etc. Neste
tipo de sociedade, a grande mídia tornou-se uma válvula de escape. Uma forma
de viver no além de sua vida sem morrer. São janelas que se abrem em nossas
prisões de tédio para mostrar um mundo arejado e vivo apenas para nos manter
abafados e solitários.
O filme de Arraes dá uns
toques sobre isso. Leléu (Selton Mello) é o malandro por quem Lisbela se
apaixona. Para alguém que como ela vive das fantasias do cinema, Leléu é própria
encarnação dessas fantasias. Ele vive andando de cidade em cidade. Mudando de
nome e profissão, passando-se por ator, vidente, vendedor de afrodisíacos e
empresário de circo. Coisa que todo espectador de novela ou filme está
acostumado a ver acontecer com seus atores favoritos.
Jogo de espelhos entre público e mídia
Além disso, o diretor
faz um jogo em que público e mídia olham-se como num espelho. É o caso do
momento em que Leléu e Lisbela trocam o primeiro beijo. Claro que isso acontece
dentro do cinema. E o casal do filme que está sendo exibido simplesmente volta
seus olhos para a platéia para ver a cena, mas acaba olhando para nós, que
estamos assistindo ao filme.
O final feliz também
recebe esse tratamento. É óbvio que o casal fica junto no final, mas dispensa
o característico beijo de encerramento para encarar a câmera e se dedicar a
imaginar a alegria que sentirão os vários casais na platéia diante de um
desfecho tão bonito. E quando os créditos começam a passar pela tela, o fundo
da cena é uma platéia deixando o cinema aos poucos, sem pressa, como se
estivesse a retardar a saída do mundo mágico da sala escura. Ficamos todos
meio hipnotizados. Agora somos nós, na platéia, que olhamos para a platéia no
filme. Esperamos o letreiro desaparecer e o último espectador mostrado no filme
deixar a sala. Também saímos devagar... como se estivéssemos a retardar a saída
do mundo mágico da sala escura. A resistência em sair é a vontade de ficar no
espelho. Evitar o momento de enfrentar a realidade.