O Jornal Nacional não é nacional. Nem o Brasil

(Sérgio Domingues) 

Para o JN, ser brasileiro é ter uma identidade cultural. Mas o Brasil está dividido entre uns poucos privilegiados e muitos explorados. A unidade nacional tem sido mantida pela violência e pela ideologia. Desde os anos 60, a Globo cuida da parte ideológica.

Uma série de reportagens do Jornal Nacional foi ao ar nos dias 5 a 7 de fevereiro de 2004. O tema é “Identidade Brasil”. O apresentador é Maurício Kubrusly. Um bom profissional. Tinha um programa legal na rádio Excelsior nos anos 80. Hoje, é mais um bobo-alegre da Globo.

A teoria é a de que nossa identidade é cultural. E o que é cultura? "Todos nós recebemos cultura todos os dias na nossa casa e às vezes nem percebemos. É aquela que você recebe de pai para filho, da avó, aquela que ensina a rezar, comer direito, ser obediente, tudo isso faz parte da cultura". É o que explica Neide Rodrigues Gomes, do Conselho Museu do Folclore, ao programa.

Ela está certa. Mas isso não diferencia a cultura brasileira. Ensinamentos de pai pra filho, preces religiosas, formas consideradas corretas de comer e se comportar. Tudo isso acontece em todas os países e regiões do mundo. Só mudam as formas. E como!

Até a língua está dividida socialmente

Claro que as celebridades globais não podem faltar. É o caso da atriz Carolina Ferraz. "O que faz a cultura de um povo é a língua que ele fala, o que ele come, o que ele veste, a música que ele escuta", diz ela.

Óbvio que falar a mesma língua é importante. Mas, se fosse assim, Argentina, Colômbia, Venezuela e o resto da América Espanhola deveriam formar um país só. Além disso, até a língua não é a mesma em todo lugar. Por exemplo, um executivo da av. Paulista dificilmente entende o que fala um “mano” do Jardim Ângela ou Itaim Paulista. E vice-versa. Língua é uma coisa viva e flexível. Em todos os sentidos.

Quanto ao que a gente veste, come e a música que ouve. Bem, isso depende. Depende da grana no bolso. Num mundo globalizado, os pobres vestem roupas mais parecidas com as dos pobres de outros países do que com aquelas que seus compatriotas ricos usam. A música anda cada vez mais igual. E a indústria alimentícia cria mais rações do que alimentos. Mais nutritivas e seguras para os já nutridos. Mais artificiais e perigosas para os sempre famintos.

É uma conversa complicada, portanto. Mas em um dado momento, Kubrusly solta a frase-chave: “Nada supera os melhores jogadores do mundo, a seleção pentacampeã. É o momento em que o sentimento de ‘fazer parte de uma nação’ se torna mais forte e evidente no Brasil”. Opa!

Noventa milhões em ação. Pra frente Brasil. Salve a seleção...

Quem é mais velho lembra da musiquinha da Copa de 70. “Noventa milhões em ação. Pra frente Brasil. Salve a seleção...” A Globo transmitia ao vivo o tri-campeonato, enquanto dezenas de militantes de esquerda eram torturados nos porões da ditadura militar. E daí? Os 90 milhões estavam unidos. Todos em ação. Viva a o Brasil. “Ame-o ou deixe-o”, diziam os militares com a toda a ajuda da Globo.

Era a união nacional sob a ditadura. Os generais a impunham a ferro e fogo. A Globo, não. Ela ajudava a esconder a tortura, mas sua função era a dominação cultural. Principalmente, com o Jornal Nacional e as novelas. Esta foi a grande tarefa da Globo sob os governos militares. Uniformizar os hábitos. Criar valores. Principalmente, aqueles ligados ao respeito à ordem, à moral, aos bons costumes e os hábitos de consumo, claro.

Espera aí. Vamos com calma. A unidade nacional não foi criada pelos militares do golpe de 64. Certo. Não foi pelos mesmos militares. Foi pelos militares que proclamaram a independência e criaram a República. Depois, pelos militares que deram o golpe junto com Getúlio em 1930. Aí, parte desses mesmos militares derrubou Getúlio em 1945. Foi um inquérito militar que levou Vargas ao suicídio em 54. E,  finalmente, foram os fardados que tiraram João Goulart do poder.

O que une os de cima é a repressão aos debaixo

Então, o que caracteriza a unidade nacional são os golpes militares? Não exatamente. O que caracteriza a unidade nacional é a repressão aos debaixo. O problema é que reprimir é tarefa do exército. Não é à toa que o patrono do exército brasileiro é Duque de Caxias. Um especialista em esmagar revoltas populares ou aqueles que apenas discordavam do governo central. Para dar um exemplo do primeiro tipo, ele esmagou a Balaiada no Maranhão. Um exemplo do segundo caso, é a vitória sobre a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul.

Antes disso, o Quilombo dos Palmares existiu durante cerca de 100 anos entre os séculos 16 e 17. Era uma ameaça à unidade nacional que os brancos construíram com base na escravidão. O bandeirante Domingos Jorge Velho saiu de São Paulo e foi até Alagoas para acabar com o povo de Zumbi. Antes disso, o carniceiro paulista já havia massacrado muitos indígenas. Eram os pimenteiras, cariris, icós, sucurus, carabaças e coremas em Pernambuco, Bahia, Paraíba, Ceará e Piauí. Isso é que é gostar de viajar pelo Brasil. E de matar seus nativos.

Na hora da independência, as elites se entenderam porque ninguém questionou a escravidão seriamente. Quando veio a república, os poderosos tinham resolvido o problema da escravidão seis meses antes. Mas, a abolição deixou os negros sem opção de trabalho na cidade e sem terra pra plantar. Até hoje a população negra paga o preço de ter sido condenada à mendicância e à marginalidade.

A revolução de 30 não fez a reforma agrária. É por isso que os direitos trabalhistas chegaram mal e porcamente apenas aos trabalhadores das cidades. Os trabalhadores rurais tiveram que esperar uns 40 anos para ver seus direitos reconhecidos. No papel. E a reforma agrária? Estamos esperando até hoje. Essa é a essência da unidade nacional do Brasil. Unidade contra os de baixo. Contra os negros, índios, trabalhadores rurais, e todos os descontentes com sua própria fome e falta de liberdade.

Essa habilidade em manter a grande maioria do povo na miséria e na obediência transformou o Brasil num país arregaçado pela desigualdade. Somos vice-campeões em injustiça social e em cirurgias plásticas. Temos a segunda maior frota particular de helicópteros do mundo e 40 mil trabalhadores escravizados. Não é só que tem um Brasil rico e outro pobre. Tem uma São Paulo bilionária e outra miserável. Um Rio de Janeiro bonito e agradável e outro violento e triste. Qual é a unidade nacional que dá jeito nisso?

Unidade nacional começa com um mínimo de direitos para todos

Um amigo, Lincoln Secco, me deu uma pista [1]. Unidade nacional não é só língua, hábitos, costumes, a seleção nacional de futebol. Tem que começar por garantir um mínimo de direitos para todos. É a tal cidadania. Casa, educação, transporte, trabalho, lazer e, claro, as benditas três refeições por dia. E desse ponto de vista não há um Brasil só. Ao contrário, tem um pequeno, rico, privilegiado, saudável, bonito. E outro grande, miserável, sem direitos, doente e feio.

Como é que com toda essa desigualdade social, o Brasil ainda não explodiu? A reportagem do Jornal Nacional tem a resposta. Ela diz que a identidade brasileira se dá pela cultura. Mas o que ela chama de cultura é a padronização que os grandes meios-de-comunicação criaram da imagem do brasileiro de si mesmo. E a Globo é o grande monopólio entre esses meios-de-comunicação.

Por exemplo, perguntada sobre o que é cultura, uma jovem diz ao repórter: "Televisão, eu gosto mais de televisão". Kubrusly aproveita a deixa e descreve, animado, a “fábrica de emoções” que é a Rede Globo. “No ano passado, diz ele, [a Globo] produziu 2.650 horas de programas. Este total equivale a mais de mil filmes de longa metragem”. Uma fábrica, certamente. Mas uma fábrica de ideologia, de conformismo, de sonhos vazios e realidades de cabeça pra baixo.

A Globo é um pilar de uma unidade nacional construída sobre a desigualdade social. O Jornal Nacional é o seu porta-voz mais respeitado. Mas um brasileiro do sertão, da favela, do cortiço. Um brasileiro que é peão na fábrica, no escritório ou na fazenda. Esse brasileiro, nada tem a ver com seu conterrâneo, que é empreiteiro, banqueiro, industrial e agro-empresário. É a esses últimos brasileiros que o JN serve. Então, não é nacional.

Fevereiro de 2004

[1] Lincoln Secco é doutor em História pela USP, autor de Gramsci e o Brasil, Recepção e Difusão de suas Idéias, Cortez Editora, e organizador junto com Carlos Santiago de Um Olhar que Persiste, Ensaios Críticos sobre o Capitalismo e o Socialismo, Editora Anita Ltda. Também é membro do Núcleo de Estudos d’O Capital (PT-SP). Voltar ao texto

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