Na
semana de 12 a 16 de agosto, o Jornal Nacional levou ao ar uma série de
reportagens que segundo o próprio jornal “retratam a economia brasileira nos
últimos dez anos - sempre com base nos números do IBGE. Com essa radiografia
das contas brasileiras, diz Fátima Bernardes, nós queremos ajudá-lo a
entender e avaliar as propostas dos candidatos.” Vamos destrinchar alguns
desses valiosos exemplos de pilantragem jornalística, que ao contrário do que
diz a solícita apresentadora-atriz, ajuda mesmo só ao governo.
Tinha que começar pela inflação. Muleta remendada de FHC
Pois
bem. Tentando preservar seu costumeiro verniz de isenção e objetividade o JN
levou o primeiro programa ao ar em 12 de agosto, com o tema “Controle da inflação”.
A inflação é a única e remendada muleta do governo FHC há duas eleições.
O JN só poderia começar por este tema.
Para
deixar bem claro do que se está falando. Para refrescar a memória daqueles que
ousaram esquecer os tempos da inflação estratosférica só porque hoje não têm
emprego, nem salário para ficar se preocupando com aumento de preços, a
reportagem traz um comovente depoimento. Entra em cena a dona-de-casa Gilda.
“Eu, por exemplo, tinha vontade de chutar aquelas máquinas. Era 'pec', 'pec',
'pec' o dia inteiro", diz, referindo-se às maquinas de remarcação de preços.
“Num
único mês a inflação passou de 80%. O contra-ataque vinha em forma de planos
econômicos”. Reforça o repórter Tonico Ferreira. “O Brasil terminou a década
de 80 com uma inflação de mais de 1.500% ao ano. E em 1993 quase chegou a
2.500%. O Plano Real é até agora a única experiência bem sucedida.” Claro,
que a maravilha bem sucedida chamada Plano Real tem lá seus defeitos, diz a
reportagem. Afinal, “passados oito anos, os preços continuam variando pouco,
mas o desemprego é alto. Surge a pergunta, será que o remédio foi muito
forte?”
Interessante
que nenhuma das reportagens programadas para a semana discute o desemprego.
Depois de mostrar a maravilhas do Plano Real, a única abordagem dessa praga que
o governo FHC só fez multiplicar é uma delicada pergunta singela: será que o
remédio foi muito forte?
Trata-se
claramente de uma defesa da política econômica do atual governo e uma ameaça
a qualquer candidato que coloque em risco o tão decantado controle de preços.
Um controle que nem é tão rígido assim, já que há pouco tempo foi lançada
a nota de 2 reais, que serve como uma confissão oficial de que a inflação
duplicou. O programa usa os números do IBGE para tecer loas ao Plano Real.
Afinal é um órgão governamental. Se quer ser tão isento, o JN deveria
consultar também os números do DIEESE, que constatou um aumento médio de preços
de 126% de julho de 1994 a junho de 2002. Perguntinha não tão singela como a
anterior: quem de nós teve seu salário dobrado nos últimos 8 anos? Aposto que
daqueles que vivem de vender sua força de trabalho, ninguém. Outra pergunta,
esta ainda mais delicada: quantos de nós estão simplesmente sem salário fixo,
sem emprego fixo. Muitos. Milhões. Mas a esses o JN esqueceu.
A
Dívida Pública. Um probleminha de família.
No
programa que foi ao ar em 13 de agosto, o tema foi a dívida pública. E lá vem
novamente o repórter explicando bem didaticamente: “Quando todos nós,
eleitores, decidimos quem vai ocupar a Presidência da República, nós
escolhemos também a forma como o orçamento do país vai ser administrado.” Aí,
entra em cena o famoso exemplo utilizado por tudo quanto é economista capacho
do capital. O famoso exemplo da família. Acompanhem:
“Dívida
e Orçamento parecem assuntos complicados - mas não são tão difíceis de
entender. É mais ou menos o que uma família faz para controlar as contas da
casa. (...) Foi com o controle rigoroso dos gastos que Helena e Pedro, um casal
de Curitiba, construiu tudo o que tem e criou quatro filhos.
‘Eu
sou a ministra da Fazenda. Eu já tenho assim uma base do que a gente vai gastar
com alimentação, transporte, educação. Então só saio disso
eventualmente’, explica a corretora de imóveis Helena Savi.
“Ela
tem razão. O que o ministro da Fazenda, faz em Brasília, é bem parecido.”
Não
tão parecido assim, caros telespectadores. Afinal, na família nossa de cada
dia, podemos até ter nossas brigas e rusgas, mas não é costume matar de fome
os mais fracos para assegurar o luxo dos mais fortes. Normalmente, pais não
deixam os filhos sem alimento porque querem fazer uma viagem para o nordeste. E
é isso que os vários ministros e ministras da Fazenda vêm fazendo para seus
governos até hoje. É isso que esses governos (com a menção vergonhosa de
FHC) fazem para beneficiar os mais ricos. Outro exemplo bem didático. Uma família
em condições de normais de sanidade mental não venderia uma geladeira que
vale R$ 600,00 por R$ 30,00, pagos em cheques pré-datados sem fundos. E foi
isso que o governo FHC fez ao vender a CSN e outros utensílios valiosos do povo
brasileiro por moeda podre.
É
por isso que os economistas capachos gostam do exemplo do orçamento familiar.
Ele não leva em conta as classes sociais. A exploração de muitos por poucos.
A dominação na base do convencimento, da mentira, do engano, mas também da
força física, se nada disso der resultado.
Mas
calma. O JN não vai ser tão grosseiro a ponto de falar sobre dívida pública
e esconder o escandaloso crescimento dela durante o reinado de Fernando
Henrique. Depois de explicar economia usando nossas famílias como exemplo, eles
admitem:
“O
problema não é novo, mas se agravou na última década. A dívida interna
pulou de R$ 61 bilhões, em 1994, para R$ 624 bilhões no fim do ano passado.
O
Japão, por exemplo, tem uma dívida interna bem maior do que a do Brasil. Mas
como é considerado país mais confiável, tem melhor condição de negociação
e paga juros muito baixos.”
Como
o Japão consegue tamanha façanha, pergunta-se o telespectador? Calma, não
precisa esquentar os miolos. O repórter responde:
“O
Brasil pode chegar lá. Só que antes, precisa dar mostras de que é capaz de
economizar pelo menos para controlar o crescimento da dívida. Não existe outro
jeito, não existe mágica.”
Entendeu?
Todos os sacrifícios exigidos com menos empregos, salários baixos, menos
direitos na previdência, entrega de estatais. Nada disso bastou. Ainda
precisamos mostrar que somos capazes “de economizar pelo menos para controlar
o crescimento da dívida.” Apertem os cintos, filhos e filhas. O orçamento
vai cortar ainda mais despesas. Não existe mágica. É fechar a boca. Não
comer mais. Morrer de fome. Eis a solução para o próximo governo.
Depois
de toda essa lição de economia digna de um programa da Ana Maria Braga, o
toque final.
“Para
o governo, a dívida foi administrada da melhor maneira possível, ajudou o país
e está sob controle. A oposição discorda: acha que houve desperdício e má
administração. A conta, para ela, cresceu demais. Esse é um dos temas
centrais da campanha. O eleitor tem que estar de olho no horário político e
cobrar explicações.”
Vejam
só. Falaram em oposição. A oposição discorda, diz a reportagem. Acha que
houve desperdício e má administração. O programa mostrou entrevistas com
donas-de-casa. Falou com especialistas. Ilustrou com gráficos e números
garrafais. Aí, no finalzinho do programa deu uma colher-de-chá para a oposição.
Simples assim. 4 minutos de reportagem tratando a dívida externa como um
simples descuido de um pai meio gastador e 4 segundos para dizer que a oposição
não concorda. É ou não é um brilhante exemplo de manipulação?
Vencer
a pobreza, tudo bem. Mas desde que não mexa com os ricos
O
programa começa em Itapipoca, no Ceará. Lá, diz o repórter, o IDH, está
abaixo de 0, 50, quando o índice médio no Brasil é de 0,75. O tal IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano) foi criado pela ONU e mede renda da família,
escolaridade e expectativa de vida.
Depois
de mostrar todas as mazelas da pequena cidade, a reportagem chama atenção para
o fato de que os moradores dependem de programas sociais do (maravilhoso)
governo FHC. Entre eles, a bolsa-renda, com maravilhosos R$ 60,00 mensais, para
agricultores em época de seca e a bolsa-escola, com esplendorosos R$ 45,00 por
filho na escola.
Quanto
às causas de tanta miséria, a reportagem nem se preocupa em tentar explicar
miséria. É como se ela fosse eterna e sem explicação. Por isso, a reportagem
não discute as causas. Vai direto dos fatos para os pretensos remédios. Aí,
entra a Constituição. “A constituição de 88, diz o programa, (...)
estendeu a um número muito maior de pessoas o direito a benefícios sociais. Os
gastos obrigatórios nessa área aumentaram e hoje correspondem a 70% do orçamento.
Dos outros 30%, 17% vão para o pagamento do funcionalismo na ativa. Sobram
apenas 13% para novos investimentos: escolas, estradas, hidrelétricas.”
Ou
seja, não tem dinheiro que dê para tanta miséria. E os servidores públicos
ainda levam uma pauladinha de raspão. Eles abocanham 17% dos gastos das áreas
sociais, diz o repórter. Como se gastos com servidores pudessem ser
contabilizados como gastos sociais e não como despesas correntes do governo.
Enquanto
isso, algumas atitudes desconfortáveis do governo são esquecidos. Por exemplo,
em fevereiro de 2000, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, fez uma emenda na
proposta de criação do fundo de combate à pobreza para proibir o uso do
dinheiro obtido com a privatização em outro fim que não seja o pagamento de dívida
da União. Este é só um exemplo do tipo de prioridade que o combate à pobreza
recebe deste governo.
O
mais interessante é que um programa que discute a pobreza, não olha o outro
lado. Não mostra o luxo e o desperdício de que a minoria rica do país goza.
Nem poderia, porque aí ficaria mais claro que a origem da pobreza é a injustiça
social.
Portanto,
como a matéria não fala em governo, em ricos, FMI, empresários, a dedução
mais óbvia é a de que os pobres são pobres porque querem ou tiveram o azar de
nascer assim. E o próximo governo só tem que tentar manter os programas
sociais. Nada de tentar resolver o problema.
O
preço da corrupção (ou quanto custa para esquecer FHC e seus escândalos)
O
quarto programa da série começa perguntando: “Quanto o Brasil perde a cada
ano com a corrupção?” Para responder (ou fingir que vai fazê-lo), a
reportagem foi a Jucurutu, no Rio Grande do Norte, Tabuleiro dos Martins, em
Maceió e Itapipoca, no interior do Ceará. Vai a essas cidades para mostrar
obras paradas por denúncias de superfaturamento.
Vejam
bem. Com um tema como a corrupção, o JN vai até o interior do Nordeste para
fazer suas matérias. E os escândalos do governo FHC? E o SIVAM, o PROER,
caixa-dois de campanhas, privatização da Telebrás e Vale do Rio Doce, emenda
da reeleição, grampos telefônicos, TRT, base de Alcântara ... ufa! Tudo isso
não é tema para um programa sobre corrupção?
E
que tal então começar a reportagem dizendo que uma das primeiras medidas do
governo FHC, em 1995, foi extinguir a Comissão Especial de Investigação, que
tinha com o objetivo combater a corrupção?
Que
tal lembrar que em 2001, para impedir a instalação da CPI da Corrupção, FHC
criou a Controladoria-Geral da União, órgão que se especializou em abafar denúncias.
Que tal mostrar quantos processos e denúncias o procurador geral da República
engavetou para proteger o governo FHC?
Não,
nada disso! Um programa sobre corrupção tem que falar de cidades pequenas,
dominadas por políticos antiquados. As denúncias contra os bacanas de Brasília,
ou de São Paulo, Rio, Belo Horizonte não passam de invencionice da oposição,
do PT, CUT, PSTU, PCdoB etc etc.
Reforma urgente. Na crise da previdência, o JN coloca aposentado contra aposentado
Finalmente
chegamos ao último programa. Claro que a Previdência não podia ficar de fora.
Não satisfeita com o corte de direitos previdenciários promovido pelo atual
governo, a Globo quer ainda mais mutilações na previdência pública.
Para
chegar a isso, a reportagem escolhe novamente uma cidadezinha do interior de
Minas Gerais. É Rio Vermelho, que segundo o jornal, “é um exemplo extremo do
desequilíbrio entre receitas e despesas da previdência. Nesta cidade, ela
recolhe por mês apenas R$ 25 mil em contribuições e paga R$ 400 mil em benefícios,
16 vezes mais”.
Depois
de mostrar como os benefícios pagos aos aposentados e pensionistas ajudam na
economia da cidade, a reportagem compara a pequena Rio Vermelho com a cidade de
Santos, litoral de São Paulo.
Eis
o que diz a reportagem: “A aposentadoria que garante a sobrevivência em
cidades como Rio Vermelho, deixa irritados aposentados das grandes cidades, onde
a vida é mais difícil e mais cara. Em Santos, litoral de São Paulo, cidade
com muitos aposentados e com 15% de sua população acima de 60 anos, o valor da
aposentadoria é considerado muito pequeno”.
Ou
seja, o problema da aposentadoria baixa em uma cidade grande são as
aposentadorias pagas nas cidades pequenas. Nem passou pela cabeça do
editor-chefe do JN discutir como é que uma cidade fica tão pobre que depende
dos benefícios miseráveis do INSS. Quer dizer, passar, passou. Mas ao JN não
interessa abordar o tema a partir dessa perspectiva.
E
o que é engraçado (não fosse pura pilantragem, mesmo) é que na época da
Reforma da Previdência, a Globo se esmerava em mostrar filas e filas nas portas
do INSS para convencer a população da necessidade de acabar com as
“privilegiadas” aposentadorias do trabalhador brasileiro. Agora, como nem o
corte de direitos deu um jeito nas contas da previdência. Agora, que o trabalho
informal tomou conta do mercado de trabalho e retirou ainda mais receita do
INSS. Agora, não interessa mostrar as condições em que o povo é atendido. Só
interessa mostrar uma pretensa injustiça que opõe os pobres aposentados de Rio
Vermelho
e os chateados (e também pobres) aposentados de Santos.
E o próximo governo que tome medidas para acabar com isso. Que tal cortar mais direitos, hein? É o que a matéria deixa entender.
Aprendendo a torcer fatos, omitir, inventar conflitos falsos para esconder os verdadeiros
Essa série de reportagens foi realmente muito instrutiva. Ensina como fazer jornalismo torcendo os fatos, omitindo, inventando conflitos falsos para esconder os verdadeiros. E o pior é que é feito tudo de forma tão “profissional”, bonita, clara, que a população toma aquilo como verdade, acaba desculpando o governo FHC e ainda fica esperando que candidatos da oposição, principalmente Lula, sigam aquela agenda mostrada pelo JN. Pra que Voz do Brasil? O Jornal Nacional é muito mais eficiente.