Gugu e PCC: urubus e latifúndios

(Sérgio Domingues)

Em 7 de setembro passado, o programa Domingo Legal, de Gugu Liberatto, levou ao ar uma entrevista com supostos membros da organização criminosa chamada Primeiro Comando da Capital (PCC). Na ocasião, os entrevistados fizeram ameaças a algumas personalidades. Entre elas, os apresentadores José Luiz Datena e Marcelo Rezende. O que já era polêmico ficou ainda pior quando se descobriu que a entrevista foi forjada pela equipe do SBT e a exibição do Domingo Legal de 22 de setembro foi suspensa por ordem judicial.

Enquanto tudo isso acontecia, Datena e Rezende desfilavam suas respectivas indignações em seus programas. O primeiro chamou a entrevista de palhaçada. O segundo, entrevistou por telefone alguém que, segundo ele, seria um verdadeiro líder do PCC. Este garantiu que os “convidados” de Gugu Liberatto nada tinham a ver com sua organização.

Um episódio como esse levanta várias questões. Em primeiro lugar, mesmo que a entrevista não tivesse sido forjada, já mereceria o repúdio generalizado de quem se preocupa com a situação de aumento da violência que vivemos. Em segundo lugar, a armação que envolveu a entrevista juntou a apelação sensacionalista com a pura e simples fraude.

As queixas de Datena e Rezende preocupam-se apenas com este segundo aspecto, pois ambos usam a mesma lógica sensacionalista de Liberatto. Não consta que tanto um como outro tenham se envolvido em situações forjadas, mas a forma com abordam a notícia coloca a todos no mesmo saco: o da notícia como entretenimento, como provocadora de emoções fortes para obter audiência elevada.

Marcelo Rezende, por exemplo, ao explicar por que teria deixado de apresentar o programa Linha Direta, na Globo, alegou que "gostava do programa quando podia entrevistar os suspeitos na delegacia. Depois disso, disse ele, minha atuação ficou restrita à apresentação. Acabei perdendo o interesse" (http://www.terra.com.br, em 23/06/2002). Ou seja, Rezende só se sentia realizado quando podia mostrar em rede nacional alguém cujo único delito até o momento da entrevista era o de ser suspeito.

Datena, por sua vez, faz verdadeiros malabarismos em busca de tragédias para rechear seu programa todos os finais de tarde. Além de vibrar com tardes chuvosas que lhe proporcionarão cenas de enchentes e desmoronamentos, também se deleita em mostrar perseguições policiais por dentro de favelas. De preferência, com cenas de policiais invadindo barracos miseráveis e rostos de pessoas pobres ferozmente iluminados pelas luzes das câmaras, enquanto são submetidas a interrogatórios humilhantes. Tal como faz Rezende, Datena transforma um suspeito em culpado em poucos minutos e sob o testemunho de milhões de telespectadores. Ou seja, em nome da caça pela audiência, pessoas são caçadas. Quase sempre, pessoas pobres.

Portanto, o que deveria estar sendo discutido é o caráter de programas como esses. Lembrar novamente que as transmissoras de TV e rádio são concessões públicas. Que a lei que regulamenta tais concessões é de 1967 e passou incólume pelo fim da ditadura militar, pela nova Constituição e, diferente dos capítulos das questões sociais, jamais sofreu a mais leve ameaça de uma reforma constitucional. A decisão da Justiça foi um sinal de que está mais do que na hora de instituir o controle público da programação de rádio e TV.

Mas o problema não é apenas a apropriação privada de uma concessão pública. O problema é que a apropriação privada é feita por uma pequena minoria rica e amiga do poder. São latifundiários do espaço aéreo onde circulam as ondas transmissoras das redes de TV e rádio. Afinal, dados de uma pesquisa feita Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação concluiu, em abril de 2002 mostram que apenas seis grupos de comunicação controlam a TV brasileira - Globo, SBT, Record, Bandeirantes, CNT e Rede TV. É muito poder para poucas pessoas decidirem o que cada um assiste em sua residência.

Além disso, há uma concentração dentro da concentração. Estamos falando da Globo. A emissora do finado Roberto Marinho conta com uma audiência de 54%, contra 23% do SBT na média de 2001. Alguém poderia chegar à esdrúxula conclusão de que o monopólio acaba afastando a Globo das baixarias que reinam nas concorrentes. Apesar de programas como Faustão e da Linha Direta, é fato que a Globo faz um uso menor de apelações. Mas o poderio da Globo foi conquistado à custa do favorecimento pelo poder. Principalmente, sob a ditadura. E é daí que veio a grande distância em termos de qualidade tecnológica e estética conquistada pela emissora em relação ao restante do setor. A concorrência viu-se impotente para desafiar o mundo cor-de-rosa mostrado pelas novelas, minisséries, programas humorísticos e jornalísticos produzidos pela Globo. Às cores róseas desse mundo, a concorrência resolveu contrapor o cinza escuro e sujo da miséria e da violências vividas no mundo real pela grande maioria das pessoas reais.

Portanto, os índices de audiência alcançados por esse tipo de programa não podem ser atribuídos a uma espécie de gosto popular pela tragédia. Acontece que os temas que aborda dizem respeito diretamente à realidade vivida pela maioria. A realidade de um país que perde apenas para Mauritânia e do Burkina Fasso no terrível campeonato de má distribuição de renda. A galinha dos ovos de ouro da “TV baixaria” é o urubu da miséria e da desigualdade. A ave agourenta voa por entre as ondas retransmissoras dos seis grandes latifúndios de comunicação do país. O urubu precisa ser morto o mais rápido possível. Os latifúndios aéreo têm que ser desapropriados.

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