Em
Dias de Glória Denise Fraga faz o papel de uma personagem que está sempre se
metendo em encrencas, ao acompanhar o noticiário da Globo e tentar influir nos
acontecimentos.
Convencendo
a texana com ajuda do noticiário da Globo
Os
episódios são muito simpáticos. Um deles, o do dia 23 de março, começa com
a personagem reclamando dos juros altos do cheque especial, depois de ver uma
reportagem do Jornal Nacional sobre o assunto. Em seguida, o noticiário diz que
a economia brasileira deve sofrer reflexos da proximidade da guerra. Glória
fica indignada: “cada bomba que cair no Iraque vai sobrar pra gente aqui no
Brasil?”. Resolve partir para Washington para impedir a guerra. No avião
conhece uma texana que é 100% a favor da guerra. Glória rebate os argumentos
da companheira de viagem. Ela diz que a maioria dos americanos apóia a guerra.
Glória argumenta que a maioria do mundo é contra. Aparecem cenas de protestos
narrados por jornalistas da Globo. A texana afirma que Saddam Hussein protege
Bin Laden. A personagem responde que isso não está provado, assim como não
está provada a posse de armas de destruição em massa pelo governo iraquiano.
Cada um desses argumentos é ilustrado com reportagens do jornalismo global. No
final, a texana fica convencida e participa junto com Glória de um protesto em
frente ao parlamento norte-americano, em Washington. Simpático, não? Mas
sigamos com outro episódio, mais complexo.
No
episódio do dia 30, Glória, que está desempregada, tenta levantar o FGTS de
seu último emprego. Descobre que seu patrão não depositou o dinheiro. Nesse
momento a cena é cortada por um teipe rápido do noticiário SP-TV,
noticiando a condenação de um empresário que não recolhia o FGTS.
O
cheque de R$ 50 mil de Gisele para o Fome Zero ficou com Glória
Voltando
à ficção, o quadro mostra Glória no momento em que fica sabendo que somente
poderá recuperar seu FGTS recorrendo à Justiça. Para isso precisaria
apresentar os documentos necessários. Em casa, ao procurar os documentos,
acabou encontrando um cheque de R$ 50 mil reais que a modelo Gisele Bündchen
havia prometido para o projeto Fome Zero. Nesse momento, entra novamente a notícia.
É o Jornal da Globo anunciando que a modelo havia prometido doar a quantia para
o projeto. Glória volta à cena para dizer que havia feito um bico como
camareira num desfile de modas. Na ocasião, ela teria ajudado Gisele Bündchen
(na verdade, uma atriz) a sair do camarim disfarçada para fugir ao assédio de
admiradores. O expediente utilizado por Glória foi vestir a modelo em um traje
masculino. O problema é que na confusão, Gisele acabou saindo pela porta da
passarela e não pela saída. Uma gravação do Jornal da Globo interrompe a
história novamente. Mostra a verdadeira Gisele desfilando. A voz de Ana Paula
Padrão registra a surpresa causada pela roupa masculina que a modelo trajava.
A
ficção volta junto com as confusões de Glória. Em agradecimento à idéia do
traje masculino e ao sucesso que ela provocou, a modelo pergunta a Glória o que
ela gostaria de ganhar. A personagem abriu mão da oferta, mas sugeriu uma doação
ao Fome Zero. Gisele Bündchen preenche um cheque com a metade do cachê que
recebera pelo desfile, os tais R$ 50 mil. Pede a Glória que faça o depósito
para ela.
No
corre-corre de seu dia-a-dia, Glória havia esquecido o cheque em casa. Com
remorsos pela demora em depositar o cheque (“tanta gente passando fome por
minha causa!”, diz), ela faz o depósito. O departamento de jornalismo entra
em cena outra vez. Agora, uma reportagem do Jornal Nacional anuncia que
“finalmente, após 50 dias, a modelo Gisele Bündchen fizera a doação que
prometera ao projeto Fome Zero”.
Juiz
condena patrão sonegador a doar R$ 50 mil ao Fome Zero
Resolvido
o problema do cheque, Glória persiste na tentativa de uma audiência com o
juiz. Depois de explicar à secretária do magistrado toda a confusão sobre o
cheque, resolve desistir da audiência devido à demora no atendimento. Mais
tarde a secretária comenta com o juiz o caso do cheque doado ao Fome Zero. A
história dá ao juiz uma idéia.
Corta
para a casa de Glória. A TV, sempre ligada nos noticiários da Globo, anuncia a
condenação de um empresário que sonegava o FGTS. A condenação é inédita,
diz o locutor, e pode abrir um bom precedente. O empresário foi condenado a
doar R$ 50 mil para o projeto Fome Zero.
Claro
que este episódio também tem sua carga de simpatia. Seja aquela da própria
personagem, seja a do engajamento no projeto Fome Zero. Há até uma cena em que
o número da conta para doações ao projeto aparece esparramado pela tela.
Mas
o que intriga essa mistura entre ficção e realidade. Os fatos noticiados são
verdadeiros, mas são ligados entre si para servir de enredo para as aventuras
da personagem. Claro que não acho que a maioria das pessoas acredite que aquilo
tudo seja verdade. Mas uma trama que gira em torno do noticiário da Globo me
parece implicar duas coisas. Primeiro, a idéia de que aquilo que o noticiário
diz para cada um de nós em nossas casas através da TV define o mundo. Diz o
que está em jogo nele. A segunda implicação é o fato de que o departamento
de jornalismo da Globo não tenha se preocupado com a possibilidade de colocar
seu material jornalístico em meio a uma trama engraçada.
Só
o monopólio permite correr o risco de misturar realidade e ficção
A
única explicação é a de que isso somente é possível devido ao monopólio
da informação por parte da grande mídia. Um monopólio tão grande que uma
tal mistura entre informação e ficção não é vista como perigosa. Afinal,
tivéssemos uma concorrência verdadeira entre fontes alternativas de informação,
a Globo não correria o risco de colocar seu noticiário como parte de uma série
fictícia. Poderia abalar a credibilidade de seu departamento de imprensa. Mas
do jeito que está, acontece o contrário. Mesmo as redes de TV rivais imitam o
jornalismo global. Não são concorrentes sérios. Diante disso, a Globo se
sente à vontade para fazer seus departamentos de imprensa, dramaturgia e
entretenimento se influenciarem mutuamente. Trata-se de uma estetização da
informação. A estetização da política é um dos elementos do fascismo,
dizia Adorno. A estetização da informação será o quê?
Entretenimento, publicidade, telejornalismo e pseudojornalismo
A
propósito desta questão, alguns teóricos da mídia separam a programação
televisiva em quatro categorias principais: entretenimento, publicidade,
telejornalismo e pseudojornalismo.(1) Esta última
caracterização serviria para programas de variedades como o Fantástico e os
talk-shows, como o de Jô Soares. Programas que não são propriamente feitos
para informar, mas para distrair. E quando a distração é um compromisso
ligado à notícia, a distorção pode ser grande. O contrário de distração
é concentração. A disposição para se distrair é um estado de ânimo pronto
para fazer a atenção pular de um fato a outro. De uma história a outra, sem
maiores delongas. A informação pode ser uma e virar outra depois de passar
pela lente distorcida da necessidade de distrair. O que mereceria reflexão,
concentração, recebe uma atenção superficial. O que deveria convidar ao
debate, aparece mais ou menos resolvido pela habilidade em narrar e dispor os
fatos. A crítica à guerra e o apoio ao Fome Zero nos são simpáticos. Será
sempre assim?
Nesse sentido, Dias de Glória é um alerta. Trata-se de uma produção que tem a marca da excelente escola de Guel Arraes. Mas parece ser a própria encarnação da perigosa junção entre informação e entretenimento. Não é a doença, mas com certeza é um sintoma.
Abril de 2003(1)
Lima, Venício A. – Mídia: Teoria e Política – Fundação Perseu Abramo -
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