Globo Repórter usa sutileza, mas dá o seu recado  

(
Sérgio Domingues)

No dia 8 de junho, o Globo Repórter foi ao ar com um tema que nunca vai sair de moda no capitalismo: o dinheiro. Reportagens rápidas, bem feitas e até bem humoradas. Tudo para no final fazer uma ameaça sutil: o país vai para o caos se Lula for eleito.

Em briga de marido e mulher (e crise econômica) ninguém mete a colher

O programa começa mostrando um casal cuja relação vinha mal, apesar das 10 lojas de bijuterias que o marido possuía e que rendiam R$ 15 mil mensalmente. Segundo o programa, ele perdeu tudo depois que tentou abrir 2 pontos de venda num shopping. Quanto às quebradeiras provocadas pelo Plano Real nenhuma palavra.

“Hoje, vivemos um pelo outro. Antigamente, vivíamos pelo comércio, pelo dinheiro, pela loja”. Estas são as palavras da esposa, agora que ela faz os doces e bolos que ele vende de casa em casa. “O casal ficou mais unido depois que o dinheiro sumiu”, diz o narrador. Em outras palavras, pare de reclamar da política econômica do governo e seja “gente que faz”. Seu nível de vida vai despencar, seus filhos vão para a escola pública falida, mas nada como um bom e velho aperto financeiro para juntar duas almas. Se isso vale para quem já teve mais dinheiro, porque não valeria para quem sempre teve pouco?

A seguir, outro casal. Dessa vez, só a mulher. O marido não quer aparecer na reportagem. Ela trabalhou 1 ano como carnavalesca de uma escola de samba e não recebeu. Ele está com 4 meses de salários atrasados. Não há dinheiro para pagar as contas e a única despesa ainda mantida é a escola particular dos filhos. Perguntada se a falta de dinheiro atrapalha a relação, ela confirma, mas diz que não é culpa nem dele, nem dela. É algo externo à relação, “de fora”. Nem assim, o programa aproveita o gancho para lembrar a situação do país.

Ao invés disso, o Globo Repórter prefere continuar o assunto de outra maneira. Sérgio Chapelin pergunta: “Dinheiro e casamento caminham sempre juntos?”. E responde: “Pesquisas mostram que ele é mais decisivo do que se imagina. Mais importante do que o sexo no relacionamento de um casal.” A falta de dinheiro passa a ser, portanto, um problema de relacionamento a dois. Não tem nada a ver com a crise econômica em que o governo FHC jogou o país. 

Enquanto isso, a revista Época, do grupo Globo, revelava em edição da mesma semana: em 1997 a classe média ficava com 64% de tudo o que se consumia no país. Hoje, fica com 58%. Em abril de 2002 mais de 26% das famílias com renda entre oito e dez salários mínimos tinham contas em atraso. Mas revista é outra coisa. Quem consome é exatamente a classe média. E na guerra das revistas Época está fazendo média com a classe média. Estamos falando da Globo, que atinge muito mais gente e de forma muito mais eficaz. São 30 milhões de telespectadores toda semana vendo material visual bonito e em linguagem simples.

Só é pobre quem quer. Tem que trabalhar com dedicação e esquecer sindicato, associação, partido ...

Continuando a conversa em torno da família, é a vez de uma viúva, cujo filho mais velho cuida das contas da casa. Aprendeu isso com a morte recente do pai, mas também na escola. O programa mostra o colégio (particular) onde ele estuda. Lá, são dadas aulas de economia em que os alunos aprendem a administrar um orçamento. Aqui entram os dois aparelhos de lavagem cerebral. E escola ensina a ser empresário. A TV mostra o exemplo para o Brasil todo. Não está dito, mas sugerido muito sutilmente. A lição é que só é pobre quem quer. É só saber se planejar, trabalhar com dedicação e parar de reclamar da vida. De preferência, é melhor nem ir a reuniões do sindicato, da associação de bairro. Partido? Nem pensar. Partido é só pra votar, e olhe lá.

As crianças gastadoras, que vivem pedindo isso e aquilo também têm sua vez. A solução, pasmem, é dar mesada. Num país com pelo menos 30 milhões de miseráveis, criança que quer brinquedo tem que receber mesada. Mas admitamos que uma pequena parte do público que ficou assistindo o programa até tarde pode pagar uma mesada para os filhos. Aí entra em cena uma senhora que diz: "Desde o momento que se começa a dar a mesada, é importante que os pais deixem claro que a criança está recebendo o dinheiro para aprender a lidar com ele”. É a Lei da Responsabilidade Fiscal explicada para pais e filhos.” E sabem quem é a tal senhora? Uma consultora de empresa! A criança que dá trabalho porque gasta muito (ou quer gastar) tem que ser tratada com consultoria de empresas, não é com psicologia, pedagogia, nada disso. Falar dos efeitos de programas como o da Xuxa, que não passa de um grande anúncio publicitário para crianças, nem pensar.

Não tem emprego, salário, educação, saúde? A culpa é sua. Gastou demais.

Mas não acabou. Ficamos felizes ao descobrir graças ao trabalho jornalístico da Globo que existe uma Associação de Devedores Anônimos. Gente que não consegue parar de fazer dívidas. Que gasta compulsivamente. Incrível! Taí mais uma explicação para a crise. Gente gastadora. Claro que a reportagem não atribui a essa doença a causa da crise, mas o que fica na cabeça do telespectador é essa idéia. A de que a situação está difícil, mas também tem gente que dá o passo maior que a perna etc etc.

A ameaça é sutil, mas real. Cuidado, podemos virar uma Argentina!

Aí, o problema vai chegando nos finalmente. Adivinhem que país eles resolveram usar como exemplo de problemas com dinheiro. O Brasil? Não. A Argentina.

“Na Argentina, diz o programa, A festa do dólar acabou, o peso sumiu. E milhões de argentinos precisam responder a uma pergunta que parece absurda: é possível viver sem dinheiro sem depender dos bancos e do sistema financeiro?”. Aparentemente sim. “Os argentinos recriaram a economia do escambo. Uma fila é formada para entrar num dos cinco mil clubes de trocas do país.” Nesses clubes, trocam-se coisas por coisas ou coisas por vales de papel, que se tornaram uma moeda paralela, usada nos clubes.

“Lá se vive sem o peso nem o dólar, mas com orgulho”, fala o repórter. Com orgulho, sim. Afinal, ninguém está roubando. Mas, quem de nós assistindo ao programa trocaria o “conforto” de poder gastar nossos miseráveis trocados pelas filas dos clubes de troca? Nenhum de nós, claro. Mas o medo já está plantado em nossas mentes. Aqui está difícil. Não tem emprego, dinheiro, saúde, educação, segurança. Mas não é uma Argentina. Ainda... Se o Lula for eleito, aí já não sabemos. A pergunta inicial do bloco é “é possível viver sem dinheiro sem depender dos bancos e do sistema financeiro?” A resposta orgulhosa é sim, mas o que fica é o medo. Sem os bancos, sem o sistema financeiro vamos virar uma Argentina. E é isso que o Lula vai fazer. Vai desafiar os bancos e o sistema financeiro. A mensagem está toda aí. Só não entende quem não quer.

Para quem não entendeu Soros explica: ou Serra ou o caos.

Mas quem demorou a entender ganhou uma ajuda de George Soros, o megaespeculador norte-americano. Soros foi patrão de Armínio Fraga, presidente do Banco Central. Hoje Soros é apenas um dos patrões de Fraga, os outros são os gerentes do FMI e de Washington. Pois, esse senhor disse com todas as letras: "O mercado imporá Serra ou o caos”. Mercado aqui que dizer especuladores e outros parasitas que vivem do trabalho e da miséria alheia. A frase foi dita em uma entrevista para a Folha de São Paulo, mas os jornais televisivos não perderam tempo e saíram divulgando aos quatro ventos.

Mas não é só o Globo Repórter. Outros programas jornalísticos fazem o mesmo. O perigo do programa da Globo é a sutileza. Fica parecendo tudo muito profissional e isento. Como vimos acima, não é nada disso.

É por essas e por outras que temos que cada vez mais fechar o nariz, segurar os engulhos e assistir TV. Assistir para poder analisar, criticar e denunciar. Ainda é pouco. Muito pouco. Mas é o mínimo. Enquanto não fizermos isso, vamos continuar falando para nós mesmos, enquanto a Globo, SBT e assemelhados continuam falando para milhões.

 

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