Globo
Repórter usa sutileza, mas dá o seu recado
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No dia 8 de junho, o Globo Repórter foi ao ar com um tema que nunca vai sair de moda no capitalismo: o dinheiro. Reportagens rápidas, bem feitas e até bem humoradas. Tudo para no final fazer uma ameaça sutil: o país vai para o caos se Lula for eleito.
Em briga de marido e mulher (e crise econômica) ninguém mete a colher
O
programa começa mostrando um casal cuja relação vinha mal, apesar das 10
lojas de bijuterias que o marido possuía e que rendiam R$ 15 mil mensalmente.
Segundo o programa, ele perdeu tudo depois que tentou abrir 2 pontos de venda num shopping. Quanto
às quebradeiras provocadas pelo Plano Real nenhuma palavra.
“Hoje,
vivemos um pelo outro. Antigamente, vivíamos pelo comércio, pelo dinheiro,
pela loja”. Estas são as palavras da esposa, agora que ela faz os doces e
bolos que ele vende de casa em casa. “O casal ficou mais unido depois que o
dinheiro sumiu”, diz o narrador. Em outras palavras, pare de reclamar da política
econômica do governo e seja “gente que faz”. Seu nível de vida vai
despencar, seus filhos vão para a escola pública falida, mas nada como um bom
e velho aperto financeiro para juntar duas almas. Se isso vale para quem já
teve mais dinheiro, porque não valeria para quem sempre teve pouco?
A
seguir, outro casal. Dessa vez, só a mulher. O marido não quer aparecer na
reportagem. Ela trabalhou
1 ano como carnavalesca de uma escola de samba e não recebeu. Ele está com 4
meses de salários atrasados. Não há dinheiro para pagar as contas e a única
despesa ainda mantida é a escola particular dos filhos. Perguntada se a falta
de dinheiro atrapalha a relação, ela confirma, mas diz que não é culpa nem
dele, nem dela. É algo externo à relação, “de fora”. Nem assim, o
programa aproveita o gancho para lembrar a situação do país.
Ao
invés disso, o Globo Repórter prefere continuar o assunto de outra
maneira. Sérgio Chapelin pergunta: “Dinheiro e casamento caminham sempre
juntos?”. E responde: “Pesquisas mostram que ele é mais decisivo do que se
imagina. Mais importante do que o sexo no relacionamento de um casal.” A falta
de dinheiro passa a ser, portanto, um problema de relacionamento a dois. Não
tem nada a ver com a crise econômica em que o governo FHC jogou o país.
Enquanto
isso, a revista Época, do grupo Globo, revelava em edição da mesma semana: em
1997 a classe média ficava com 64% de tudo o que se consumia no país. Hoje,
fica com 58%. Em abril de 2002 mais de 26% das famílias com renda entre oito e
dez salários mínimos tinham contas em atraso. Mas revista é outra coisa. Quem
consome é exatamente a classe média. E na guerra das revistas Época está
fazendo média com a classe média. Estamos falando da Globo, que atinge muito
mais gente e de forma muito mais eficaz. São 30
milhões de telespectadores toda semana vendo material visual bonito e em
linguagem simples.
Só é pobre quem quer. Tem que trabalhar com dedicação e esquecer sindicato, associação, partido ...
Continuando
a conversa em torno da família, é a vez de uma viúva, cujo filho mais velho
cuida das contas da casa. Aprendeu isso com a morte recente do pai, mas também
na escola. O programa mostra o colégio (particular) onde ele estuda. Lá, são
dadas aulas de economia em que os alunos aprendem a administrar um orçamento.
Aqui entram os dois aparelhos de lavagem cerebral. E escola ensina a ser empresário.
A TV mostra o exemplo para o Brasil todo. Não está dito, mas sugerido muito
sutilmente. A lição é que só é pobre quem quer. É só saber se planejar,
trabalhar com dedicação e parar de reclamar da vida. De preferência, é
melhor nem ir a reuniões do sindicato, da associação de bairro. Partido? Nem
pensar. Partido é só pra votar, e olhe lá.
As
crianças gastadoras, que vivem pedindo isso e aquilo também têm sua vez. A
solução, pasmem, é dar mesada. Num país com pelo menos 30 milhões de miseráveis,
criança que quer brinquedo tem que receber mesada. Mas admitamos que uma
pequena parte do público que ficou assistindo o programa até tarde pode pagar
uma mesada para os filhos. Aí entra em cena uma senhora que diz: "Desde
o momento que se começa a dar a mesada, é importante que os pais deixem claro
que a criança está recebendo o dinheiro para aprender a lidar com ele”. É a
Lei da Responsabilidade Fiscal explicada para pais e filhos.” E sabem quem é
a tal senhora? Uma consultora
de empresa! A criança que dá trabalho porque gasta muito (ou quer gastar) tem
que ser tratada com consultoria de empresas, não é com psicologia, pedagogia,
nada disso. Falar dos efeitos de programas como o da Xuxa, que não passa de um
grande anúncio publicitário para crianças, nem pensar.
Não
tem emprego, salário, educação, saúde? A culpa é sua. Gastou demais.
Mas
não acabou. Ficamos felizes ao descobrir graças ao trabalho jornalístico da
Globo que existe uma Associação de Devedores Anônimos. Gente que não
consegue parar de fazer dívidas. Que gasta compulsivamente. Incrível! Taí
mais uma explicação para a crise. Gente gastadora. Claro que a reportagem não
atribui a essa doença a causa da crise, mas o que fica na cabeça do
telespectador é essa idéia. A de que a situação está difícil, mas também
tem gente que dá o passo maior que a perna etc etc.
Aí,
o problema vai chegando nos finalmente. Adivinhem que país eles resolveram usar
como exemplo de problemas com dinheiro. O Brasil? Não. A Argentina.
“Na
Argentina, diz o programa, A festa do dólar acabou, o peso sumiu. E milhões de argentinos
precisam responder a uma pergunta que parece absurda: é possível viver sem
dinheiro sem depender dos bancos e do sistema financeiro?”. Aparentemente sim.
“Os argentinos recriaram a economia do escambo. Uma fila é formada para
entrar num dos cinco mil clubes de trocas do país.” Nesses clubes, trocam-se
coisas por coisas ou coisas por vales de papel, que se tornaram uma moeda
paralela, usada nos clubes.
“Lá se vive sem o peso nem o dólar, mas com orgulho”, fala o repórter. Com orgulho, sim. Afinal, ninguém está roubando. Mas, quem de nós assistindo ao programa trocaria o “conforto” de poder gastar nossos miseráveis trocados pelas filas dos clubes de troca? Nenhum de nós, claro. Mas o medo já está plantado em nossas mentes. Aqui está difícil. Não tem emprego, dinheiro, saúde, educação, segurança. Mas não é uma Argentina. Ainda... Se o Lula for eleito, aí já não sabemos. A pergunta inicial do bloco é “é possível viver sem dinheiro sem depender dos bancos e do sistema financeiro?” A resposta orgulhosa é sim, mas o que fica é o medo. Sem os bancos, sem o sistema financeiro vamos virar uma Argentina. E é isso que o Lula vai fazer. Vai desafiar os bancos e o sistema financeiro. A mensagem está toda aí. Só não entende quem não quer.
Para
quem não entendeu Soros explica: ou Serra ou o caos.
Mas
quem demorou a entender ganhou uma ajuda de George Soros, o megaespeculador
norte-americano. Soros foi patrão de Armínio Fraga, presidente do Banco
Central. Hoje Soros é apenas um dos patrões de Fraga, os outros são os
gerentes do FMI e de Washington. Pois, esse senhor disse com todas as letras:
"O mercado imporá Serra ou o caos”. Mercado aqui que dizer especuladores
e outros parasitas que vivem do trabalho e da miséria alheia. A frase foi dita
em uma entrevista para a Folha de São Paulo, mas os jornais televisivos não
perderam tempo e saíram divulgando aos quatro ventos.
Mas não é só
o Globo Repórter. Outros programas jornalísticos fazem o mesmo. O perigo do
programa da Globo é a sutileza. Fica parecendo tudo muito profissional e
isento. Como vimos acima, não é nada disso.
É
por essas e por outras que temos que cada vez mais fechar o nariz, segurar os
engulhos e assistir TV. Assistir para poder analisar, criticar e denunciar.
Ainda é pouco. Muito pouco. Mas é o mínimo. Enquanto não fizermos isso,
vamos continuar falando para nós mesmos, enquanto a Globo, SBT e assemelhados
continuam falando para milhões.