O Fórum Social não é uma Internacional Socialista. Nem deveria ser

(Sérgio Domingues) 

Muita gente questiona a ausência de definições mais claras no Fórum Social Mundial. Mas a força do evento está em seu caráter puramente negativo em relação ao neoliberalismo. E qualquer organização mais rígida e de caráter afirmativo somente será construída mantendo-se o atual respeito às diferenças presentes no evento.

O 3o Fórum Social Mundial, realizado entre 23 e 28 de janeiro, contou com a presença de 20.763 delegados, representando 5.717 organizações de 130 países. Mais de 1.200 atividades aconteceram durante os cinco dias do evento. São oficinas de discussão, conferências, apresentações culturais. Atividades que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes e, muitas vezes, com distâncias de quilômetros entre eles.

Não há, portanto, como reunir as conclusões de cada discussão e sistematizá-las em um prazo curto. Há alguma coisa desse tipo em preparação, mas somente apresentará relatórios mais conclusivos em abril ou maio. Algo impensável do ponto de vista de qualquer organização que queira intervir de forma a influenciar a política internacional.

Mas não é este o objetivo do FSM. Sua principal finalidade é tornar visível um sentimento geral e popular de indignação contra as grandes corporações mundiais, condenação aos governos dos países ricos e, principalmente na edição deste ano, de repúdio à guerra que George Bush quer deflagrar contra o povo iraquiano. Tal sentimento geral pode ser resumido na negação das políticas neoliberais reinantes nos últimos 20 anos. Não à toa, o fórum de Porto Alegre foi realizado até agora em datas simultâneas àquelas em que foram realizadas as várias edições do Fórum Econômico Mundial, em Davos. É que seus idealizadores queriam deixar clara a oposição entre os dois eventos. Enquanto na pequena cidade suíça, se reuniam os representantes dos governos e das empresas mais poderosas do mundo, na capital gaúcha o encontro se dava entre entidades e representações dos países pobres, dos setores populares e de trabalhadores. E entre esses setores o nível de consenso vai apenas até a negação do neoliberalismo. Assim, é possível encontrar desde organizações que defendem a derrubada do capitalismo através das armas até concepções que se limitam a defender uma volta ao capitalismo de bem-estar social.

Com tal caráter, o Fórum Social não poderia assumir posições mais claras, sob pena de rachar em dezenas de pedaços e se ver impossibilitado de organizar reuniões tão grandes e amplas. O resultado tem sido verdadeiro sucesso sob dois pontos de vista: a denúncia do neoliberalismo como inimigo central nunca deixou de ser clara e causar impacto na opinião pública mundial. O segundo sucesso tem sido a presença na mídia. A organização do Fórum estima em mais de 50 mil jornalistas credenciados, vindos de todo o mundo. Mais do que na Copa do Mundo. Para um evento político em plena ditadura do entretenimento, é uma enorme vitória.

Mas essa forma de organização do FSM não foi escolhida apenas para manter um mínimo de unidade e capacidade de visualização pela mídia. O fato é que o neoliberalismo arregimentou contra si um enorme leque de inimigos devido a suas políticas cada vez mais restritivas e concentradoras de riqueza e poder. Em outras fases do capitalismo, setores como os pequenos agricultores da Europa, profissionais liberais e alguns setores nacionais da própria burguesia não teriam motivos para protestar ao lado de trabalhadores fabris, camponeses, sem-terras. Também não havia a presença tão marcante de setores que lutam também contra a opressão e não apenas contra a exploração. Caso das mulheres, dos homossexuais, das vítimas do racismo etc. No primeiro caso, foi o próprio capitalismo que despertou novas iras entre setores antes menos atingidos por suas crises. E foi ele também que dispersou a classe trabalhadora, antes concentrada em grandes fábricas e estabelecimentos. No segundo caso, foi a dinâmica capitalista de utilização de força de trabalho feminina e a própria ideologia individualista ligada ao consumo que mostrou as contradições que despertaram a luta pelo respeito às escolhas pessoais e contra a discriminação entre pessoas de sexo, etnias e orientações sexuais reprimidos pelo padrão dominante.

Portanto, o caráter frouxo do Fórum Social é mais um sintoma da reação possível diante do aprofundamento dos ataques da mais recente forma de exploração capitalista, que um expediente para manter a unidade. E qualquer organização que surja para unificar os diversos setores que hoje se colocam contra o neoliberalismo de forma a também lutarem contra o capitalismo somente alcançará seu objetivo se absorver suas demandas de forma a respeitar-lhes as diferenças. Muitos ficam de cabelo em pé ao ouvir isso. Imaginam uma grande organização perdida entre as reivindicações fragmentadas de vários setores. Mas não há como imaginar qualquer processo de transformação que não acabe resultando apenas em uma nova forma de dominação sem que todos os setores explorados e oprimidos tenham seu papel na luta política e social. Como afirma István Mészáros em seu livro Para além do Capital, o pluralismo do capitalismo é um farsa porque resulta em concentração de riqueza e monopólio do poder cada vez maiores. O pluralismo entre os proletários, ao contrário, é verdadeiro porque se expressa nas inúmeras formas de resistência dos setores atingidos. E uma ordem social que supere o capitalismo somente se consolidará aprofundando esse pluralismo de caráter autêntico.

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