Depois do desastre no Vietnã, os filmes de guerra com pretensões ao Oscar evitam cometer patriotadas. Mostram as intervenções militares ianques como um erro. No entanto, deixam margem para a interpretação de que são um erro não do invasor, mas dos povos invadidos.
Logo
após os atentados de 11 de setembro, os estúdios roliudianos resolveram
suspender projetos que envolvessem filmes de guerra. Na época, cheguei a
escrever que essas atitudes não iriam muito longe. Afinal, a sanha guerreira de
Bush precisava de um ambiente sanguinário para iniciar sua corrida armamentista
particular. Não deu outra. Depois que as tropas norte-americanas reduziram o já
destruído Afeganistão a poeira, e antes de fazer o mesmo com o Iraque, os
filmes de guerra reapareceram.
Depois
do Vietnã, filmes mostram a guerra como insensatez
No
entanto, esse tipo de produção não voltou ao mercado como se nada tivesse
acontecido. Desde a guerra do Vietnã, as incursões militares dos ianques começaram
a receber abordagens críticas do cinemão de Hollywood. São filmes na linha de
Mash de Robert Altman, Nascido para Matar de Stanley Kubrick, Platoon
de Oliver
Stone. Neles a guerra é mostrada como insensatez imposta por políticos
conservadores e generais sanguinários. Patriotadas ficaram fora de moda. Pelo
menos, entre os filmes com pretensões ao Oscar. Não estou falando em Rambo,
por exemplo.
Até
que alguém inventou um jeito de abordar a guerra de forma mais positiva. Foi
antes do 11 de setembro, mas acabou servindo de modelo para o período
posterior. Estamos falando de o Resgate do Soldado Ryan de Steven Spielberg.
O
protagonista do Resgate do Soldado Ryan é um comandante de pelotão chamado
John H. Miller, interpretado por Tom Hanks. Às vésperas de voltar para casa,
Miller e sua meia dúzia de comandados são encarregados de resgatar com vida o
soldado James Ryan, que está em uma zona sob forte ataque inimigo. Ryan não
tem nada de especial a não ser o fato de ser o último irmão vivo entre quatro
irmãos. Os outros três morreram na guerra e o exército toma como questão de
honra a devolução do sobrevivente à mãe, compreensivelmente desolada.
A
missão parece inútil para o capitão Miller e seus homens. Mas o capitão é o
típico norte-americano cioso de seus deveres. Convence seus comandados de que a
coisa seria rápida e eles estariam a caminho de casa o mais breve possível.
O
início do filme apresenta uma das mais sangrentas seqüências já filmadas no cinema.
O restante do filme segue mostrando muito sangue, membros amputados, desespero,
pânico. Tudo isso sofrido por rapazes recém curados da acne adolescente.
Depois de muitas peripécias, o soldado Ryan é finalmente resgatado, ainda que
à custa da vida do dedicado capitão Miller.
A
moral da história poderia ser a denúncia da guerra como insensatez. Mas, não
é bem assim. Não é qualquer denúncia. Na verdade, a saga de Miller e seus
rapazes para salvar um único soldado coloca a perspectiva da guerra do ponto de
vista particular. Um esforço quase individual em meio à selvageria ao redor.
Esse ponto de vista, denuncia a guerra mas faz o espectador se conformar. Faz o
cidadão aceitar a guerra como uma necessidade. O que fica é a sensação de
que a guerra não faz sentido.
“Porém, se a Pátria amada for um dia ultrajada, lutaremos sem temor.” É só
lembrarmos a primeira intervenção no Golfo, em 91. Naquele momento, a maior
arma dos críticos à intervenção norte-americana no Iraque era a perspectiva
de ver os filhos da Grande América voltarem à terra natal como cadáveres. A
ênfase de Soldado Ryan desloca-se para o retorno da guerra, não para a ida.
Para a última missão naquele inferno, não para seu cumprimento brilhante.
Para a devolução dos filhos da pátria nas melhores condições possíveis.
Falcão
Negro em perigo: matando somalianos para melhor ajudá-los
Pois
bem, em Falcão Negro em Perigo, de Ridley Scott mostra a invasão
norte-americana à Somália em 1993, sob o governo Clinton. Segundo a versão
oficial, adotada pelo filme, a presença ianque era humanitária. Visava fazer
chegar alimentos à faminta população local. Em uma das missões do exército
norte-americano, cerca de 100 soldados são enviados para capturar dois generais
somalianos, que estariam comercializando alimentos doados. A operação deveria
durar em torno de uma hora. Mas os tais generais tinham mais armamento e apoio
da população local do que se imaginava. Dois helicópteros são abatidos por
atiradores do exército somaliano (ou somali). São helicópteros tipo Black
Hawk (Falcão Negro). São eles e seus tripulantes que ficam em perigo ao cair
em meio aos irados somalianos. Resgatá-los é que passa a ser o objetivo da
missão. Taí, o resgate de novo.
A partir de então tem início um grande conflito. De um lado, os soldados americanos equipados com armamentos de alta tecnologia. Do outro lado, um exército com fuzis, paus e pedras vestido em roupas civis. Apesar disso, a batalha dura 15 horas. Os Black Hawk matam somalianos como moscas. Às centenas. As cenas cruéis de Spielberg se repetem. Alguns norte-americanos morrem e o filme termina informando que Clinton resolve chamar de volta as tropas. Novamente aparece a idéia do resgate e da volta. Dessa vez, fica a idéia de que “fomos lá (eles, os ianques). Tentamos ajudar. Fomos mal recebidos. Alguns de nós até morreram. Então, danem-se esses negros atrasados. Resgatem a tripulação desses helicópteros e vamos embora.” Belo pacifismo.
Atrás
das Linhas Inimigas: ianques incompreendidos pelos bárbaros
Atrás
das Linhas Inimigas, de John Moore traz Owen Wilson no papel de Chris Burnett.
Um aviador naval encarregado de fazer fotografias de reconhecimento durante a
guerra da Bósnia. Ele não gosta de regras rígidas e por isso vive às turras
com seu superior, o almirante Leslie Reigart (Gene Hackman), antiquado e linha
dura. Durante uma missão de reconhecimento, Burnett sobrevoa uma área não
autorizada e acaba fotografando armamentos que não deveriam estar lá. São de
guerrilheiros que o vêem e reagem. Atiram e derrubam o avião de Burnett.
Depois
de saltar de pára-quedas, o piloto começa a ser perseguido e ameaçado por
tropas inimigas. Nesse momento, Reigart abre mão de suas rígidas regras de
conduta e ajudar a salvar a pele de Burnett. Mais uma vez o tema do resgate.
Mais uma vez, ficamos sem entender quem está do outro lado. Em nenhum momento
fica claro quais guerrilheiros atacam o protagonista. Quem exatamente o está
perseguindo. Alguém especialista em guerra da Bósnia talvez soubesse, mas os
99% de leigos certamente vão sair do cinema ou do sofá com a sensação de que
os ianques se deram mal novamente. Só que fizeram o que podiam para tentar
melhorar as coisas entre bandos de guerreiros cheios de ódio racial.
Fomos
Heróis: A 7a Cavalaria contra vietnamitas selvagens
Por
fim chegamos ao auge do delírio patrioteiro americano: Fomos Heróis, dirigido
por Randall Wallace. O protagonista é o tenente-coronel Hal Moore (Mel Gibson).
Ele e mais 400 integrantes do exército norte-americano, formam uma elite de
combate. São despachados para lutar uma das primeiras batalhas do Vietnã.
Durante
o filme, sucedem-se os disparates. Numa cena, o tenente-coronel rezava na capela
do quartel. Dando-se conta de que um soldado também fazia preces num canto
afastado, fez questão de dizer que o inimigo também deveria estar rezando.
Quando a cena já ia descambando para o piegas, Moore voltou o rosto para o
altar e rogou “Ignore as preces dos pagãos e ajude-nos a mandá-los para o
inferno.”
Outro
detalhe revelador é o fato de que a divisão de helicópteros comandada por
Moore recebeu o nome de 7a cavalaria. O mesmo da divisão do General Custer,
famoso pelos massacres que promoveu entre os indígenas norte-americanos. Parece
que os vietnamitas já haviam sido encaixados no papel certo: “Vietnamita bom
é vietnamita morto”.
Mas
não há espaço e paciência para tanto disparate. Vamos ao que interessa.
Moore
é adepto de Sun-Tzu e das táticas flexíveis de batalha. No Vietnã quer
colocar seus conhecimentos em prática. Mas seus superiores, não. Moore
refere-se a eles principalmente como os “políticos”. Pelo jeito que ele
fala, políticos são caras que só atrapalham e defendem coisas como direitos,
eleições, liberdade, paz etc. De qualquer modo, o filme mostra como a suposta
burrice de seus superiores acaba levando o tenente-coronel e sua elite a uma
batalha em que se vê cercado por 2 mil soldados vietnamitas. Segundo a sinopse
do filme, “uma das batalhas mais sangrentas da história militar
norte-americana.” Sangrenta? Dos 400 homens de Moore, 58 morrem. Ou seja, os
400 só esperavam voltar com alguns arranhões depois de enfrentarem os asiáticos
primitivos e selvagens.
Na
despedida das tropas, o tenente-coronel discursou para as famílias de seus
homens. “não deixarei ninguém para trás. Vivo ou morto.” Olha o tema do
resgate aí, de volta. Foi com 400, voltou com 400. Nem todos vivos. O que
realmente ficou para trás foram aqueles vietcongues ingratos. Modernos índios
sioux, que tiveram a sorte de escapar à extinção que o novo general Custer
queria promover.
A
lógica bélica de Hollywood: culpa dos invadidos
Como se vê, a lógica bélica norte-americana sofreu uns arranhões em Hollywood. Mas, só uns arranhões. Os mocinhos fardados continuam querendo arrumar o mundo pobre. O problema é que mundo pobre é tão ingrato que não reconhece isso. Vive dispensando sua presença. Quer dizer, intervenções com a do Vietnã ou da Somália foram um erro. As produções comentadas aqui não negam isso. No entanto, também podem dar margem à interpretação de que foi um erro não do invasor, mas da ingratidão do povo invadido. Enquanto isso, os salvadores do mundo vão continuar tentando mandar seus filhos e trazê-los de volta. Ainda que isso custe a vida de dezenas de milhares dentre aqueles que deveriam ser salvos.
Rambo
4 vem aí e faz mais o gênero de Bush
Março de 2003