Big
Brother: Pra vencer, tem que boiar
(Sérgio
Domingues)
O Big Brother Brasil da Globo acumula o que há de pior em termos de preconceito, intriga, ambição cega. É a janela que mostra como a dominação burguesa esvaziou nossa vida privada de sentido. Um ralo por onde passa o vencedor. O campeão do esgoto.
Circula
uma mensagem pela Internet que denuncia as ligações entre os participantes do
BBB4 e figurões da Globo. Antonela teria tido um caso com Boninho, diretor do
programa. Eduardo seria sobrinho de um dos diretores da Globo Minas. Marcela
seria madrinha do filho de Galvão Bueno. E assim por diante. Não sei se essas
informações são verdadeiras. Se forem, deve haver alguns artigos em códigos
jurídicos brasileiros nos quais os responsáveis pelo programa deveriam ser
enquadrados.
Mas
o que importa aqui é ressaltar que se isso for verdade, só confirma a idéia
de que o BB não passa de outra obra de ficção. A diferença é que o enredo
quer parecer o máximo possível com a vida cotidiana. Com uma diferença. Tenta
se aproximar do que ela tem de pior. Intrigas, mesquinharias, mentiras,
chantagens etc. É a filmagem de um grupo se autodestruindo até que deles,
reste um só. Vitorioso e absoluto no final. Estampando a solidão da estupidez.
E da cobiça, claro. Tem um belo prêmio a sua espera.
O
problema é entender como é que um programa com essas características
conquista boa audiência e dá o que falar nos locais de trabalho,
cabeleireiras, botecos, almoços em família etc?
Minha
teoria é a de que BB é uma tentativa de retornar à experiência de vida
cotidiana de épocas antigas. Anteriores à existência da imprensa, da
fotografia, do cinema e da própria tevê. Não simplesmente um retorno. Mas uma
descida em espiral para os andares em que se situam os esgotos.
Vejamos.
A escrita foi criada há uns 3 mil anos. A imprensa, há uns 550 anos. Mas a
escrita só foi popularizada muito tempo depois de sua invenção e do
surgimento da imprensa. Antes disso, era monopólio de poucos sábios e
sacerdotes. Então, as experiências que uma aldeia, uma cidadezinha, um
lugarejo, tinham fora de sua vida rotineira, eram as histórias contadas por
forasteiros. Viajantes ou mercadores que vinham de quando em quando. Traziam
novidades dos lugares por onde passaram ou de pessoas com quem encontraram.
Hoje, as pessoas falam “é verdade. Eu vi na tevê”. Antes, diziam “estava escrito no jornal”
Com
o desenvolvimento do capitalismo, a popularização da palavra escrita virou
necessidade. Seja, para qualificar força de trabalho, seja para transmitir os
novos valores mais rapidamente ou até como necessidade de desenvolver a ciência
para fazer avançar os meios de exploração da natureza, incluindo aí as
pessoas. Muitos já podiam ler. A imprensa transformou-se no agente novidadeiro
nas comunidades. Hoje, as pessoas falam “é verdade. Eu vi na televisão”.
Antes da tevê, elas diziam “estava escrito no jornal”.
A
palavra escrita juntou-se à imagem. A fotografia deixava ainda mais confiável
a notícia escrita. “Eu li e vi” é mais forte. Quando a imagem ganhou
movimento e som, aí sim, a verdade do veículo comunicador ficou inegável.
Cinema e tevê, principalmente, são poderosos meios de dizer que alguma coisa
é verdade.
O
problema é que o viajante que passava por uma aldeia, contava sua história
segundo sua visão. Exagerava ou não. Mentia ou omitia. Mas, ia-se embora. Se o
caso fosse bom, a aldeia ficava com ele em seu patrimônio de relatos. As gerações
iam mudando o caso aqui e ali. Se o mesmo viajante voltasse um dia muito mais
tarde, seria capaz de encontrar um relato completamente diferente.
Com
a escrita, já não era assim. O papel impresso passava de mão em mão. A
novidade podia ganhar versões diferentes. Mas sempre era possível recorrer ao
pedaço de papel para recuperar a história original.
Antes,
o trem ou o carro dos correios passavam deixando em cada lugar as cartas e
publicações que diziam o que ia pelo mundo. Mas, quando a imagem em movimento
e sonora passou a chegar diretamente à casa das pessoas, ela passou a ser uma
janela para o mundo.
A tevê é a janela. A paisagem é a programação
Agora,
é a vida rotineira das pessoas em suas casas, mansões e barracos que parece um
veículo em movimento. Seu morador é um viajante olhando a tevê como se ela
fosse a janela. A paisagem é a programação. Antes, uma novidade podia ser
distorcida, recontada, exagerada. Hoje, ninguém duvida do que vê. O máximo
que a maioria faz é dar interpretações para o fato. Mas o modo como o fato
foi mostrado jamais é questionado.
Antes,
a vida dos lugarejos e aldeias era pacata e rotineira. Mas, era feita por seus
moradores. Estava cheia de sentido para quem morava ali. Se havia o proprietário
da terra que vinha regularmente levar uma parte do que fora produzido pela
comunidade, isso era feito à luz do dia. Todo mundo sabia que ali estava um
homem poderoso, que tinha o direito de fazer aquilo. O direito dado por Deus,
pela natureza, por seu sangue nobre ou porque tinha um exército ao seu lado. O
que importa é que a dominação era escancarada.
No
capitalismo, não. Ninguém obriga um trabalhador a vender sua força de
trabalho. Não há lei para isso. Quem quiser, que trabalhe. Claro que há uma
lei. Mas não é a lei escrita. É a lei da sobrevivência. Então, a maioria
das pessoas não entende porque continua na pobreza. Continua privada das coisas
mais elementares, como se vestir, comer, estudar, se divertir. Só pode ser
culpa delas. Afinal, quem tem dinheiro, fez por merecer. Trabalhou, perseverou,
é inteligente, esperto etc. Pelo menos é assim que a maioria entende a
organização de sociedade atual (1).
Nesse
mundo frustrante, a maioria encontra na paisagem da tevê as emoções agradáveis
que lhe faltam na vida chata do dia-a-dia. Ou explicações simplistas para suas
tristezas.
É
por isso que a indústria dos filmes, das novelas, dos desenhos animados, entope
os televisores com coisas fantásticas e emoções acumuladas. Assista a algumas
horas de tevê e você verá várias experiências condensadas e distribuídas
em pacotes. Nas novelas, programas humorísticos e filmes, em questão de
minutos somos levados do amor ao ódio, da calma à fúria, da tristeza ao riso.
Nos programas jornalísticos, encontramos uma seqüência em alta velocidade de
pedaços do real que no conjunto levam à apatia. Diante de tudo o que acontece
em todos lugares, das mais variadas maneiras, com as mais diferentes pessoas e
situações. Diante de tudo isso, não há como não pensar que você não passa
de um piloto de controle remoto. Não há como não pensar que o mundo é assim
mesmo. É essa loucura. Sempre foi assim e sempre será.
Felizmente
para nós, a vida social não se desenvolve sem contradições. A dificuldade
que a maioria tem de enxergar que sua pobreza não é resultado de falta de
talento, de sorte, inteligência, de vez em quando é superada. São brechas por
onde o povo ergue a cabeça e enxerga a “vida de gado” que vem levando. Aí,
podem acontecer revoluções, rebeliões, ou apenas greves e grandes manifestações.
O feitiço contra o feiticeiro: a apatia atinge os índices de audiência
Mas
isso não se manifesta apenas de modo espalhafatoso. O insistente desfilar de
maravilhas como as da novela da Globo, em que o centro das tramas é a vida dos
ricos. A seqüência de proezas de heróis, super-heróis, garotões e mulherões.
Tudo isso, começa a soar falso. Principalmente, em situações de crise econômica.
Aí, fica claro que a vida comum não é assim. As pessoas não são assim. Nada
é assim. A janela cansa. Volta
ser apenas um aparelho transmitindo ilusões. O feitiço volta-se contra
o feiticeiro e a apatia atinge os índices de audiência.
Mas,
desligada a televisão, o individuo já não tem mais uma vida comunitária para
onde voltar. A vida pública já era faz tempo. Cada um está trancado em sua
casa com medo de assaltos. Quase não tem tempo. Mal chega em casa, e já é
hora de ir dormir. Tem que acordar de madrugada e partir novamente para fazer
trabalhos cada vez mais precários. Ou, simplesmente, já não tem o hábito da
conversa. Nem mesmo da antiga e corriqueira fofoca.
Aí,
surgem os programas como os do Ratinho. Os programas que dizem que mostram a
vida como ela é. Claro que a vida também não é o que esses programas
mostram. Se fosse, a vida social já teria desaparecido. Pelo menos, abaixo da
linha do Equador. Nem todos suportam tamanha exposição de aberrações.
A
última cartada? O chamado tele-realismo (os “reality shows”). Dizem que os
primeiros “espetáculos de realidade” surgiram devido à grande greve de
roteiristas de 1988, nos Estados Unidos. Sem roteiristas, ou seja, sem
contadores de histórias, a indústria áudio-visual teve que apelar para
improvisações. Olha aí a história da contradição, de novo. Foi um conflito
entre patrões e empregados e não um cálculo frio que criaram coisas como Big
Brother (só não vale ter raiva dos companheiros roteiristas pelo resultado que
a greve teve a longo prazo).
Voltando
ao Big Brother, a própria seleção dos participantes deixa claro para o
telespectador que há manipulação. Não estou falando das denúncias sobre
apadrinhamentos. Mas, de indivíduos selecionados para provocar reações dentro
do grupo. A gostosa, na versão fria e calculista ou no tipo burra e medrosa. O
garanhão briguento, metido a líder. O cara mais intelectual e esperto. O
feioso e a feiosa. E por aí vai.
A
população só não tem plena certeza de que tudo é combinado porque nem tudo
é combinado. Imagino que há um roteiro básico que pode ser modificado pelos
diretores conforme os índices de audiência. Conforme o desempenho de um ou
outro etc. Deixar tudo combinado de antemão seria burrice.
O lado podre das relações humanas do dia-a-dia
E
qual é o conteúdo desse tipo de programa? São as intrigas, os fuxicos, as
panelinhas, a chantagem, a hipocrisia, alianças temperadas com sexo. Todos
conhecemos coisas assim de relações familiares, ou entre amigos, entre casais,
no trabalho, na escola, na faculdade. A janelinha azul abre-se para rotina diária.
Mas não para todo e qualquer cotidiano. É o lado podre das relações humanas
do dia-a-dia. É o que sobrou para a vida privada depois de que foi esvaziada de
sentido por séculos de dominação burguesa.
A
sociedade burguesa não se livra dos preconceitos anteriores a ela. Usa a
superstição, o lado perseguidor da religião, o machismo, o ódio ao
estrangeiro. Usa tudo isso e junta com a exploração econômica, a comercialização
da vida, o amor pelos objetos acima do respeito pelas pessoas.
Big
Brother é a condensação de todos os preconceitos. São indivíduos voltados
para o sórdido. Se for preciso, um usa o machismo. O outro, o racismo. Ela
apela sexualmente. Este, semeia a discórdia. Aquela, é boa na mentira. É um
grande ralo aonde a podridão vai se juntando. Um a um, os candidatos vão
caindo pelo ralo. O último, o vitorioso, também vai passar pelo ralo. Mas,
diferente dos outros, não vai afundar na imundície. Vai ficar boiando. Que nem
merda.
Fevereiro
de 2004