O
povo brasileiro não é bundão. É abusado
(Sérgio Domingues)
O ótimo livro de Caco Barcellos provoca muitas conclusões. Uma delas é a de
que a idéia de que o povo brasileiro é pacífico, passivo, cordial, é falsa.
Sabe ser violento tanto quanto qualquer outro povo. O problema é que sua parte
mais pobre usa a violência contra si mesmo.
Abusado,
livro de Caco Barcellos, conta a história do traficante Marcinho VP, da favela
de Santa Marta, no Rio de Janeiro. Mas, acaba servindo como retrato da violência
na capital fluminense em geral e nas grandes cidades do país. Um aspecto é a
entrada cada vez mais prematura de jovens na criminalidade.[1]
Outro, é a banalização da violência, com atos mais sangrentos.
A
leitura atenta do livro mostra que a habitual relação entre pobreza e
criminalidade não é tão direta assim. É verdade que a criminalidade é maior
nos bairros e regiões mais pobres das grandes cidades. Mas se a simples pobreza
provocasse alta criminalidade, ela seria bem mais freqüente em regiões como
norte e nordeste. Não é assim. O que leva ao aumento exagerado da
criminalidade é a desigualdade e a injustiça (a esse respeito, clique http://socialista.tripod.com/textos/soc/crime.pdf
e leia um ótimo texto de Rui Kureda sobre o assunto).
No
livro de Barcelos, há um trecho em que Marcinho VP tenta convencer um amigo a
entrar para o tráfico. O amigo recusa a oferta porque é tido como ótimo
passista de escola de samba. Marcinho responde que o carnaval dá dinheiro para
o dono da escola, para as fábricas de cerveja, para a tevê. Mas para quem
realmente está fazendo espetáculo, as comunidades das escolas, não sobra
nada. “Se a festa é nossa, porque só eles levam a grana?”, pergunta
Marcinho.
Consumismo,
de um lado, ausência do Estado, de outro
Essa
realidade somada ao consumismo que tomou conta das grandes cidades nos últimos
30 anos leva a que jovens troquem uma vida de trabalho duro e mal pago pela
certeza de uma vida curta, mas com muita emoção e capacidade de consumir.
Consumir drogas, roupas um pouco melhores e tênis de marca falsificada.
Impressionar as mulheres, levar mais dinheiro para o barraco. Um jovem recebe
cerca de 100 reais mensais para ser empacotador de supermercado 6 dias e meio
por semana. Esse mesmo jovem larga o emprego facilmente pela oferta de auxiliar
o tráfico por 500 ou 600 reais por mês sem precisar sair do bairro.
No caso
de alguns, além do dinheiro fácil para o consumo há um desejo de poder. Poder
para ser respeitado e temido pela comunidade, ser apontado como um chefe
benfeitor, mas justiceiro. Essa possibilidade somente existe porque a presença
do Estado no morro ou na periferia se resume a uma polícia cada vez mais
violenta. Não há postos de saúde, creches e escolas, alternativas de lazer.
Nem o correio chega às casas. Nesse vácuo, cresce o papel de liderança dos
traficantes na comunidade. Portanto, há a pressão do mercado, por um lado, e
ausência do Estado por outro.
Ao
mesmo tempo, não há porque glorificar essa situação. As relações são da
maior brutalidade possível. O machismo impera. É o caso da proibição de que
as mulheres namorem pessoas de fora da comunidade ou do ódio ao
homossexualismo. A justiça paralela do morro organiza tribunais, com freqüentes
execuções sumárias ou espancamentos brutais. O personagem de Abusado
tentou dar caráter político a sua liderança. Marcinho VP leu Che Guevara,
tentou contatos com os zapatistas e as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia). Mas, ficou impossível em meio à miséria de seu morro, à
incapacidade de controlar a violência de seus homens, à caçada implacável da
polícia e ao sensacionalismo da grande imprensa.
O crime
organizado é a resposta espelhada da organização da repressão
O fato
é que organização feita através da politização não combina com crime
organizado. Este é resultado direto da sociedade capitalista. A organização
do crime é a resposta espelhada da organização da repressão oficial. Vender
drogas e roubar são atividades que dependem de que o capitalismo continue a
funcionar, não são sua negação.
Por
outro lado, a organização política dos trabalhadores não quer ser o espelho
do Estado capitalista. Quer derrubá-lo para colocar em seu lugar um Estado
controlado por quem produz a riqueza e que precisa dividir essa riqueza.
Então,
o caráter violento ou não do povo brasileiro não está em discussão. A violência
é causada por injustiça e desigualdade. A resposta pela via do crime somente
fornece elementos para manter e ampliar essa situação. O que está em discussão
é como canalizar essa violência para a mobilização social. Não se trata
apenas de luta armada. No dia em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia,
em 1917, foi registrada apenas uma morte em São Petersburgo.
Trata-se
de fazer o debate sobre as raízes da violência nas periferias. Um estudo
iniciado em 1998 e concluído no final de 2003 revela o perfil das vítimas de
homicídios em São Paulo. A pesquisa foi realizada por professores da PUC
(Pontifícia Universidade Católica) em parceria com o Centro de Referência e
Apoio à Vítima (Crav), da Secretaria Estadual de Justiça. Foram analisados
545 homicídios.
Em relação
aos bairros em que moravam as vítimas de homicídio, 78% não têm centro
esportivo, 97% não têm teatro e 96% não têm cinema. 77% das famílias
entrevistadas contavam com mais de quatro bares no quilômetro ao redor de suas
residências. 61% dos bairros não têm delegacia, 53% não têm uma base
comunitária e 46% não contam sequer com ronda policial.
Portanto,
quem está matando e quem está morrendo? Os pobres. E até a polícia entra na
roda. Quem são os policiais que morrem em ação? Os de baixa patente.
Assalariados que ganham pouco e ficam a cada dia mais assustados. Por isso,
muitos deles cedem à pressão e se vendem para o crime organizado.
Aí, não
tem jeito. É lutar por reformas. Ali, no dia-a-dia. Lutar por escolas, moradia,
centros de lazer e cultura, empregos, polícia civilizada e com remuneração
decente. Sem isso, a barbárie vai continuar a imperar. O sangue dos pobres vai
continuar a correr, enquanto os ricos se deslocam pelos céus de helicóptero.
Finalmente,
é preciso dizer que para discutir tudo isso precisa ter cabeça fria. E a
grande mídia não deixa. Quem de nós não entra em desespero vendo os
programas sanguinários de fim-de-tarde? Quem não acaba achando que o povo não
tem jeito mesmo? Que tem que ser na base da repressão etc etc?
Então,
tem que colocar na pauta das reformas urgentes o fim do monopólio dos meios de
comunicação e o controle social sobre jornais, rádios e tevês. Só pra começar.
Janeiro
de 2004
[1]
No entanto, é preciso alertar para o fato de que não se trata de uma
investigação acadêmica. A imagem de jovens de 15, 16 anos portando fuzis
e metralhadoras é terrível, sem dúvida. Mas, estatísticas da Secretaria
Estadual da Segurança de São Paulo divulgadas em abril de 2002, mostravam
que os menores são responsáveis por apenas 2,7% do total de crimes
registrados pela Polícia Civil. A impressão de que esse número poderia
ser bem maior vem da distorção provocada pela grande mídia. Rende muito
mais ibope a denúncia ou prisão de um menor assassino. Voltar
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