Sangram
cedros calcinados
no
vale do Bekaa.
Sangram
cérebros triturados
sobre
a poeira de Sabra e Chatila.
Sob
paredes dinamitadas explode
a
imprevista
cabeça
dos cavalos
–
olhos vazios
buscando
decifrar inutilmente
a
ferocidade dos homens –
e
escorre o cheiro gosmento
da
peste que antecede o assalto dos vermes.
O
silêncio devorou os faróis do Apocalipse.
Os
faróis de Sharon a iluminar os punhais de Haddad.
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Desatou-se
do céu
sangrando
um
vento cego,
um
vento sem misericórdia
a
sepultar sob a areia
os
olhos assassinados
–
estrelas de espanto –
das
crianças de Sabra e Chatila.
Desatou-se
do céu violeta
um
vento de misericórdia
a
varrer minucioso
a
memória dos vivos:
os
olhos que visitaram a carnificina,
oficina
enlouquecida de Sabra e Chatila,
suplicam
pela piedade do esquecimento
para
seguir vivendo.
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O
grito devorado pela boca feroz do silêncio
explodiu
na ante-sala do império,
e
desatou sua gangrena sobre a mesa dos povos:
impossível
comer.
Impossível
dormir.
Impossível
olhar
a
luz que amanhece no rosto dos filhos.
Impossível
prosseguir
sem
polir cuidadosamente a memória.
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Que
os assassinos organizem
urgentemente
uma comissão
para
apurar os assassinatos!
E
punir...
E
poderemos então retornar
à
paz dos escritórios e dos jardins
que
nos acolhem ao fim da tarde,
ao
sono interrompido dos indiferentes.
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Quem
se recusa a ver com agudos olhos de criança
as
mãos de Sharon decompostas
pela
surda força dos sangues?
E
a maligna estrela
que
explodiu-lhe nos olhos
ao
gritar sinistro aos seus acusadores:
“
– onde estavam os senhores quando Tal – El – Zatar?
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Quem
não decifra
nesta
manhã de mortos incontáveis
a
bengala que sustenta Béguin?
Que
ventre gestou
o
vôo alucinado
dos
bombardeiros?
As
bombas de fósforo
despejadas
até a instância do desespero?
Que
braços acalentaram o fogo
que
destruiu Beirute?
Que
nome leva o metal dos obuses,
a
lagarta dos tanques
que
retalham a carne do Líbano?
Eu
conheço a bengala de Béguin
entalhada
nos ossos do massacre.
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Treblinka,
Auschwitiz, Dachau, Babi Yar,
cobrirão
com seu manto de horrores
os
horrores de Tal – El – Zatar, Sabra e Chatila?
Depois
de toda a ferocidade
apenas
carne
no
silêncio dos matadouros.
Nos
punhais de Haddad
brilha
uma estrela gamada.
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Diante
destes olhos,
exaustos
navegantes
de
outras tormentas
desbordou-se
um campo
de
espigas maduras.
Um
impossível trigal,
filho
do sal
e
das pedras do deserto.
Espigas
infinitamente repetidas
até
o horizonte de Bekaa.
A
força do deserto me traga,
me
domina, me arrasta sonâmbulo
no
seu torvelinho
ao
impreciso território da miragem
que
a fuga incessante do tempo me anuncia
e
nega:
aqui
vejo com os olhos dos meninos
de
Sabra e Chatila
o
ouro tenso das espigas palestinas.
Apalpo
e não encontro
o
grão que alimenta,
fermenta
a massa
e
nutre o sonho da geração que virá,
porque
não virá nenhuma geração.
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O
grão aqui não é ouro.
É
estanho e chumbo refundidos
nas
usinas do desespero.
É
o grão que da morte se alimenta.
Com
seus dentes de luz
morde
a alma dos soldados
de Haddad e Sharon.
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Quando
retornar o vento
e
a memória retornar
da
terceira margem da dor
recomporemos
os corpos
e
o imenso grito soterrado
nas
valas comuns cobertas de cal e silêncio;
recomporemos
um canto de terra, vento e fuzis
e
traçaremos sobre a areia
com
gesto de orvalho e estrela
a
palavra sanaúd.
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Sanaúd
– Palavra árabe que significa voltaremos. Voltar
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Goiânia, setembro de 1982.
Não
me parece plausível que a palavra dos poetas tenha, em algum momento da história,
detido a mão dos senhores da guerra. A poesia não dispõe de poder. A ela cabe
registrar em outro diapasão – a princípio inaudível – a advertência dos
indignados, a premonição dos aflitos, a busca dos sentidos ou da ausência de
sentido da tragédia humana.
Em
alguns casos – raros nos dias que correm – os poetas dão corpo à sua
palavra. Inventam gestos que quebram a moldura da consciência anterior. Como
quem lança uma pedra e estilhaça o espelho em que nos miramos desde que
nascemos. Então eles, os poetas, se tornam inconvenientes, subversivos. E,
diante do gesto, mesmo aqueles que antes toleravam sua ousadia com as palavras;
amavam seus delírios no exercício obscuro de trazer o impossível ao alcance
da voz; de inventar novas possibilidades para a língua e para os sonhos
humanos, são tomados de estranhamento. Falarei de um que há poucos dias lançou
uma pedra no meio da tormenta.
Já
não o reconhecem porque o poeta feriu um código sutil e inflexível: vazou do
reino das palavras, e ao se afastar delas, conferiu à poesia uma força que não
tinha, nem buscava: converteu a poesia em ação. Esse o sentido profundo do
gesto de José Saramago ao visitar o líder do povo palestino Yasser Arafat,
sitiado pelos canhões de Ariel Sharon, sob os escombros de Ramallah. Lançou
uma pedra contra a superfície do espelho em que estamos habituados a nos mirar.
E nos cega, a nós ocidentais. Ou que nos imaginamos ocidentais ainda que filhos
de negros, índios, ibéricos e
imigrantes pobres. Não nos permite enxergar a terrível semelhança entre o
Gueto de Varsóvia e os campos de Jenin convertidos de campos de refugiados em
campos de extermínio, nesta páscoa de 2002. Por isso foi acusado de
“cegueira moral” e teve seus livros devolvidos por muitos.
Saramago
suspendeu o véu que há meio século havia sido levantado, em outras circunstâncias,
pela lucidez de uma importante intelectual do século XX, Hannah Arendt, ao
refletir sobre a tragédia do seu povo: “Pois é perfeitamente concebível e
mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma
humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática –
isto é, por decisão da maioria –, à conclusão de que para a humanidade
como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma” (1).
Pouco mais de meio século depois o povo de Israel elegeu Ariel
Sharon, um criminoso de guerra, seu primeiro-ministro e foi conduzido por suas mãos
a um novo holocausto, agora no alto da torre
dos tanques.
Somos
diariamente entorpecidos pela indiferença. E a indiferença, ensina Hannah
Arendt, está na raiz da idéia de que existem “povos descartáveis”. O povo
palestino tornou-se, aos olhos do governo de Israel e das ditaduras árabes
vizinhas, um “povo descartável”, a exemplo do que foi o povo judeu na
primeira metade do século XX, durante as duas Grandes Guerras, na Europa. “Os
próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os,
primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de
segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de
concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado
cuidadosamente o terreno e verificado, para sua satisfação, que nenhum país
reclamava aquela gente” (2). Nem
todos entenderam o gesto desesperado de Arafat, ao condenar os atentados de 11
de setembro. Ele encarnava a percepção aguda do que estava por vir: a
fragilidade do povo palestino frente aos arsenais e a sede de sangue de Ariel
Sharon, agora alimentado pelo estilo texano de tratar dos conflitos entre as nações.
Não suspeito a
exata direção dos teus passos.
Há muita poeira
e a fumaça das explosões
obscurece o
verde dos teus olhos
por onde
contemplo a paisagem devastada.
Não me escapa a
luz crua que recorta
os escombros dos
sonhos que habitavas:
singelos como tâmaras
sobre a mesa,
o calor do pão
e da palavra,
a água limpa
num vaso de barro
ou um lugar de
oração.
Percebo sob os
panos sagrados do chador
o trêmulo silêncio
dos teus seios
que se afastam
da concha de minhas mãos,
com um som de
alaúdes que se despedem.
Meus dedos de
espanto adivinham
sobre a seda de
tua pele de trigo,
atado em torno
da cintura
que as luas
prepararam
para as ternas mãos
do prometido,
o doce metal das
granadas.
E não atino com
o gesto definitivo:
o clarão que te
ilumina,
assombra,
despedaça, semeia a morte
e sangra inútil sobre a pedra de Jerusalém.
(1)
Arendt, Hannah: As Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras 1989,
S. Paulo, pág. 332.
(2)
Op. Cit. pág. 329
(3)
Op. Cit. pág. 336