Debate sobre o Boletim do NPC e o governo Lula

(Reginaldo Régis Moraes *)

Vi o debate do último Boletim do NPC, sobre o governo Lula. Seguem abaixo algumas reflexões. Acho que não são muito claras - também não sei se tem gente com muita clareza, no momento. Precisamos de clareza de verdade, não de fórmulas claras. Chavões são mais fáceis e aparentemente óbvios. Como não tenho tantas certezas, compartilho minhas confusões e impressões - e as poucas e eventuais idéias claras.

1. Primeira coisa inaceitável nas posições e na propaganda do governo: a reforma da previdência não poderia e não pode ser o principal tema do governo do PT! Do modo como está sendo propagada, dá a entender que os problemas do Brasil, suas distorções e desigualdades são causadas pelos privilégios dos funcionários públicos. Com isso, deixamos de lado, como secundárias, algumas das políticas evidentemente mais centrais e urgentes. Para citar só duas: a reforma da política macroeconômica – que privilegia o capital financeiro, desestimula o crescimento econômico e concentra a renda; a reforma do sistema tributário regressivo (que recolhe mais impostos dos pobres do que dos ricos). Agora, atenção: os sindicatos de servidores não podem aceitar essa limitação do campo de batalha. Não podem entrar no mesmo jogo e transformar a resistência à reforma da previdência como sua única e principal bandeira. Porque ela é parte de um processo maior e porque se ficar nesse terreno, a derrota é certa. No boletim, percebi que corremos esse risco.

2. Um governo reformista e/ou social-democrata, aparentemente, deveria ter como bandeiras centrais a construção de fortes políticas sociais para reformar as desigualdades provocadas pela economia de mercado. Foi assim que a social-democracia e o trabalhismo, no pós-guerra, conseguiram pautar o discurso até mesmo de governos conservadores que adotaram, decididamente, o chamado “Estado de bem estar social” e a intervenção reguladora do Estado nos negócios da economia. Esta maré começou a mudar com o chamado “neoliberalismo” e as várias “globalizações” econômicas - como a globalização do mundo produtivo (através das transnacionais), e a financeira (através da desregulamentação dos sistemas bancários nacionais e da constituição de um mercado de investimentos realmente mundial). Como crítico desse processo, um partido social-democrata como o PT não poderia entrar nessa maré. O ataque ao servidor público – apresentado como vilão ou bode expiatório – acaba por se transformar em ataque ao serviço público, levando água para a maré ideológica da privatização desse serviço. Gostando ou não, querendo ou não, os dirigentes do PT, com as mensagens que estão a propagar acabam por fortalecer a idéia de que o serviço público deve ser privatizado: fundos de previdência, seguro saúde, educação privada, até segurança privada (daqui a pouco teremos convênios-segurança!).

3. Outra grande falácia é a que atribui a quebra da previdência (se de fato se pode falar de quebra) aos pagamentos de aposentadorias e pensões exorbitantes. Isto nos desviaria do fato de que o caixa da previdência foi saqueado seguidas vezes para emprestar e financiar empreendimentos de vulto (pontes, estradas, usinas, etc), sem devolução dos saques. Esquece-se ainda dos furos causados pela sonegação, pela informalidade, pelo declínio do emprego formal – tudo isso cresceu enormemente nos últimos dez anos.

4. De outro lado, muitos dos sindicatos de servidores, inclusive os da minha categoria, as associações docentes, acomodoram-se ao terreno exclusivamente corporativo e se acostumaram a tratar suas conquistas como privilégios. Desse modo, ficaram indefesas para defender direitos, quando estes são ameaçados. Viramos reféns dessa despolitização. Há, sim, distorções graves no interior do sistema. Cabe corrigi-las. A bobagem maior seria atribuirmos a eventual falência do sistema a essas distorções. Bobagem similar e simétrica seria negar tais distorções. Ajuda-paletó e verba para pasta de dente, digamos, podem ser distorções nas rendas dos parlamentares – mas não é isso que arromba o orçamento e afunda o parlamento. Mas ajuda, isto, sim, a desmoralizar o parlamento.

5. Pode-se discutir se é razoável que um professor universitário se aposente aos 53 anos. Eu mesmo discordo dessa regra e dessa prática, bem como de certas regras de incorporações de gratificações por representação, por exemplo, muitas delas criadas pela ditadura para cooptar quadros superiores. No momento dessa potencial aposentadoria, aos 53, em geral, o professor está no seu momento mais produtivo – e aí muitos deixam a universidade pública, continuam a receber seu salário (mais ainda do que recebiam, no líquido, porque deixam de ter o desconto da previdência) e vão ceder seus nomes e títulos para escolas privadas se credenciarem junto ao MEC. Do período ativo do professor, alguns anos foram gastos com sua formação – um gasto geralmente bancado pela universidade em que trabalhou e pelas instituições de apoio: CNPq, Capes, etc.

Por outro lado, em muitos casos, como nas universidades estaduais paulistas, por exemplo, esse professor foi descontado sobre o total de seus vencimentos (sem teto). Para os funcionários federais isto também passou a acontecer, desde 1994. Não tem cabimento mudar repentina e radicalmente a política de cálculo das aposentadorias, aproximando-a daquela que vigora para quem paga até um teto. Regras diferentes para o desconto e semelhantes para o retorno? O governo arrisca-se a criar uma enxurrada de processos judiciais solicitando o excedente descontado! No longo prazo, provavelmente, isto esvaziará a carreira de professor universitário – assim como outras carreiras do funcionalismo. Mais um resultado perverso para um governo social-democrata, repita-se: no longo prazo e com visão política mais ampla, não corporativa, esse é o grande crime da estória..

6. Enfim, há muita fumaça e pouca racionalidade na reforma, se a considerarmos friamente. Mas o eixo da coisa talvez não esteja em nada disso aí, mas, exatamente, no eixo político de canibalizar o servidor e o serviço público, transformando-o em bode expiatório dos males que o governo não pode ou não quer enfrentar. Joga pedra na Geni?

7. Jogando nesse lance, a direção do PT arrisca-se a queimar até mesmo o cacife que tem para ser aceita na negociação com a direita. Pode chegar o dia em que essa direita se dê ao luxo de decretar que o PT não é mais necessário para domar as massas ou que não tem mais como fazer isso. Não é a reforma da previdência que levará a isso – ela não tem tanto impacto. Ajuda, claro, mas o principal é o conjunto da política econômica e o reforço que se dá à ideologia privatista.

O PT ganhou as eleições em um momento de desgaste e de racha da coalizão conservadora PSDB-PFL. Não ganhou em um momento de ascenso dos movimentos populares e operários, muito pelo contrário. Também não ganhou com força suficiente no plano institucional: basta ver as proporções do congresso, dos governos estaduais, etc. Em uma situação como essa, reforçou-se ainda mais o poder daquela parte do PT que já demonstrava algum entusiasmo com práticas e políticas oportunistas -- ou mais temerosas, nos melhores casos.

O risco é esse -- e os sindicatos de servidores só podem sair dele se politizarem o debate. Se sairem para a frente.

Como? Têm que pensar. Isto quer dizer, em grande medida, que terão que mudar o modo como se comportaram, muitas e muitas vezes. Comecemos por essa lembrança, que já mencionei mais acima:os sindicatos de servidores não podem aceitar a limitaçao do campo de batalha ao debate sobre a reforma da previdência e à conservação do sistema atual. Não podem, principalmente, transformar a resistência à reforma da previdência como sua única ou principal bandeira. Porque ela é parte de um processo maior e porque se ficarmos nesse terreno a derrota é certa (e, afinal, justa).

* Professor do curso de Ciências Políticas da Unicamp - Voltar ao topo da página

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