“A
arte é uma resposta à indiferença dos deuses”, disse alguém. Essa frase o
cineasta Ugo Giorgetti citou em uma entrevista na Revista Sem Terra n. º 15. A
arte é uma tábua de salvação, eu digo sempre, e repito agora, após assistir
esse belo filme “O Príncipe”, do mesmo Giorgetti.Quem puder, não deixe de
ver. Quem não puder, tente vencer os obstáculos e entrar na sala de cinema.
Vai
ver um intelectual auto-exilado na França, há mais de 20 anos, que tem de
retornar ao Brasil por problemas familiares.Mas que Brasil? Que cidade de São
Paulo?
No
táxi para a Vila Madalena, rumo à casa onde mora a mãe e onde foi
criado, que rua Mourato Coelho? “O senhor tem certeza de que é essa a
rua?”, pergunta ao motorista de táxi. Ao redor, polícia, gente de revólver
na mão, confusão, bares com mesas nas calçadas, pessoas batucando. “O
senhor deve estar há muito tempo fora daqui”, responde o motorista.
Gustavo,
o príncipe, vivido pelo ator Eduardo Tornaghi -- que há mais de 20 anos, por
opção pessoal, abandonou a mídia e dedica-se a trabalhos sociais em favelas e
ruas do Rio de Janeiro – é um intelectual magro, com uma certa fragilidade,
que vai reencontrar os amigos da época .Não há julgamentos a priori, o
telespectador tira as as suas conclusões. Não é um soco no peito, mas as
pessoas saem silenciosas. Não é um drama mexicano, embora pudesse ser. Dá uma
certa tristeza, e ficamos lá, observadores de uma história que é nossa, assim
como o personagem central, vendo, ouvindo. Com uma certa ternura complacente e o
coração espantado.
A
maioria dos amigos ganha dinheiro na área cultural. O ex-professor tem consciência
do que faz, e optou por largar a profissão e dedicar-se a eventos
patrocinado por empresas. A ex-namorada, que escrevia poesias, também é
promotora cultural de uma multinacional. Outro é deputado. Um outro
dedica-se a cozinhar para os excluídos num albergue no bairro do Bom Retiro. Não
ganha nada por isso, mas ainda dá aulas de xadrez, hoje para os filhos de
coreanos que habitam o ex-bairro italiano, o ex-bairro judaico.
Passeiam
pelas ruas, onde o lixo se amontoa na noite. Na Praça Dom José Gaspar,
ex-centro boêmio e intelectual dessa geração que cresceu nos anos 60, Gustavo
empurra o amigo jornalista na cadeira de rodas, um cético que declama um trecho
da “Divina Comédia”, junto à estátua de Dante Alighieri, em meio a
mendigos que mantêm fogueiras acesas para aquecer a noite fria, e termina com o
alerta universal da poesia: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”.
Deixem toda esperança, vocês que entram.
É
a chegada ao inferno.
O
jornalista paraplégico grita, junto ao Paribar, um bar que reunia jornalistas,
artistas, militantes, na mesma Praça, e hoje é uma loja cheia de grades:
“Luiz Carlos Paranáaaaa! Chico Buarqueeee!” e outros nomes de artistas que
viviam na Galeria Metrópole, berço de tantas discussões e nascedouro de tanta
música popular brasileira.
Tudo
passa, tudo passará, é natural, é inevitável. “Mas em São Paulo, é tudo
muito radical”, dizia Giorgetti na entrevista. “Em qualquer lugar do mundo,
a não ser que aconteça uma hecatombe, uma guerra mundial, as mudanças
obedecem a um ciclo vital. Aqui não, é como se tivesse uma guerra mundial a
cada três ou quatro anos”.
Não
sobra pedra sobre pedra. A casa onde você nasceu, por exemplo, já foi detonada
há anos e anos, e virou loja, e virou cortiço, e virou pó. E depois, no
local, talvez seja construído um prédio de escritórios cheio de vidros fumê.
A
maior dor, talvez, seja a do sobrinho de Gustavo, motivo de sua vinda ao Brasil.
Professor brilhante de escola particular, tem uma teoria: já que os feitos do
Brasil , historicamente, não são relevantes--- sequer o de Santos Dumont é
citado, na história oficial mundial da aviação – vamos recontar a história,
para mudar o Brasil. Vamos dizer que foi uma tropa brasileira que libertou
Berlim, em 1945. Quem sabe, assim...
O
professor é internado numa clinica psiquiátrica, na qual Gustavo nunca
consegue encontrar os médicos, um em congresso na Europa, o outro sempre
ocupado, para saber diagnóstico. “Você quer que eu diga o que tenho?”,
pergunta o professor ao tio. “Eu tenho um desabamento central na alma”.
Em
um “evento cultural”, onde Gustavo vai procurar a ex-namorada, -- vivida por
Bruna Lombardi, aquela com quem o tempo foi menos caprichoso, ele diz –
num teatro fervilhante de famosos e aspirantes, o príncipe reconhece um
maestro, que diz a toda hora: “Se você é amigo do deputado, é meu amigo
também”.
Mas
não era ele, pergunta o príncipe ao amigo, quem fazia campanha para o fundo de
greve na Vila Euclides? “Ah, cara, isso faz muito tempo, foi em 1977”,
responde.
Sim,
tudo isso faz muito tempo, e passou tão rápido. A cidade de São Paulo,
devastada. Sangrada por assaltos, sirenes, esfaqueamentos, tiroteios, batucadas,
lixo, moradores de rua, e pessoas, tantas pessoas, que escolheram seus caminhos.
“O
que você andou fazendo esses anos todos?” pergunta Gustavo à ex-namorada,
linda, atrás de sua mesa no escritório decorado com toques modernos. “Fiz
tudo errado”, ela diz, em meio a um breve apagão. “Eu também”, ele
constata. O príncipe não venceu no primeiro mundo.
Giorgetti
não queria um vencedor que volta da Europa. Ele construiu um personagem com
mais de 50 anos, com a feliz escolha desse ator “um intelectual de certa forma
errático, como eu, como vários outros, com uma visão clara das coisas”.
O
persoangem auto-intitula-se “o príncipe da náusea”, na recepção da
multinacional onde trabalha a ex-namorada, onde o fotografam, e perguntam
“quem deseja falar? ”Príncipe? De onde? Da náusea? Ah, náusea é o nome
da empresa?”
Um
jornalista paulista recentemente escreveu um comentário sobre o filme, da
qual esqueci o teor, só me lembro que tentava destruir a obra. Um jornalista
que foi militante da esquerda radical nos anos 70 e depois tornou-se diretor de
alguns grandes veículos. Talvez o filme tenha sido um espelho no qual não
gostou de se olhar, eu pensei. Ele também escolheu seu caminho. Afinal, todos
escolhemos, e pagamos um preço alto, seja qual for a opção.
Mas
é melhor a opção que nos permite dormir tranqüilos, eu acredito.
Aliás,
Giorgetti faz uma distinção.Diz que o mundo não é em branco e preto, há
varias gamas entre essas duas cores fundamentais. “Então, você vai ver, no
filme, que o sujeito que é um escroque cultural tem consciência das coisas, e
resolveu ganhar dinheiro, na verdade é o mais solidário com o personagem
central, no fim. Guardou uma lealdade pessoal”.
Ele
também diz que esses personagens não perderam a alma, ainda são humanos, ao
contrário de muitos que ele encontra na chamada “cena cultural”.
Nesses
tempos de terras devastadas e almas desabadas, onde alguns querem que se esqueça
o que escreveu, e outros que se esqueça o que fez em antigas épocas de embates
radicais. Nesses tempos em que se renegam muitos princípios e valores
fundamentais, conquistas que custaram muito sangue, muitas lágrimas, não há
nada de novo sob o sol.
Não
é a primeira vez que acontece, a história é plena desses exemplos.(Como será
o fim desse novo filme?).