Os
narradores mudos de Javé
(Sérgio Domingues)
O
belo e engraçado filme de Eliane Caffé fala de uma cidade ameaçada por uma
desgraça recente do capitalismo. A barragem de uma hidrelétrica. Mas seus
habitantes também são vítimas de outro tipo de barragem. A da palavra
escrita. Sem ela, os tagarelas habitantes de Javé não têm voz.
Surpreendidos
com a notícia de que sua cidadezinha vai ser inundada para a instalação de
uma hidrelétrica, os habitantes de Javé estão em pânico. Algo a que,
infelizmente, o Movimento por Atingidos em Barragens (MAB) já está acostumado
e contra o qual luta com coragem.
Reunidos
na igreja, os javeenses esperam notícias de Zaqueu (Nelson Xavier), que foi
negociar com os engenheiros da obra. Ele chega com más notícias. A inundação
é certa. A única coisa que poderia impedi-la seria demonstrar que Javé é
patrimônio histórico. Que tem tradições importantes para a história do país
ou da região.
“Mas
o que não faltam são histórias de valentia e honra”, dizem os habitantes
animados. Zaqueu concorda mas diz que é preciso colocá-las no papel. Fazer um
“dossiê”. E nada dessas histórias cheias das “caraminholas” que o povo
vive inventando, diz ele. Tem que ser “coerente”. Tem que ser “científico”.
O
problema é que ninguém ali sabe escrever mais que seu próprio nome. A não
ser Antônio Biá (José Dumont), um antigo carteiro que havia sido banido da
comunidade por inventar histórias usando falsas cartas. Agora o aceitariam de
volta, desde que usasse seu talento para escrever a história do vale de Javé.
Começam
as trapalhadas. Cada morador conta a história como lhe parece melhor e mais
vantajoso.
A
outra barragem. A muralha da língua escrita
Mas
o que importa para nossa discussão não é só a ameaça da barragem da hidrelétrica.
É a outra barragem. A barragem da língua escrita. Aquela de cuja demolição
dependem os moradores de Javé. Se conseguirem colocar sua história no papel
podem salvar sua terra natal.
Como
diz Vito Giannotti no livro que está perto de lançar: “Para nós, no Brasil,
falar em muralhas é falar em barragens, em represas” (1). Como
“Narradores” já fala da represa, falemos da muralha a que se refere
Giannotti. É aquela que separa uma minoria cada vez menor de pessoas letradas,
alfabetizadas, de uma maioria crescente de iletrados, de analfabetos. Os números
oficiais dizem que cerca 10% da população são analfabetos (IBGE - novembro de
2001). Mas se contarmos os analfabetos chamados funcionais, a coisa piora.
Analfabeto funcional é aquele que sabe o bastante do alfabeto para escrever seu
próprio nome, ler uma placa, deixar um bilhete de três linhas. Aí, o
analfabetismo aumenta para 30% da população. Algo em torno de 57 milhões de
pessoas.
Pois
bem, no alto da porta da casa de Biá há uma frase engraçada e trágica: “é
proibida a entrada de analfabetos”. Não é preciso explicar porque é engraçada.
Mas, imaginemos que a punição para semelhante proibição seja a prisão, por
exemplo. Parece exagero, mas para as 57 milhões de pessoas incapazes de ler
mais do que duas frases, as leis são incompreensíveis. Muitas delas podem
estar infringido leis sem ter a menor idéia disso. Desculpem, 57 milhões, não.
Porque as leis são incompreensíveis até para quem já leu vários romances de
Zibia Gasparetto ou Paulo Coelho. Aí, passa fácil, fácil a casa dos 100 milhões
de habitantes.
Escreveu,
não leu, o pau comeu
É
que se alevanta uma nova muralha. A muralha da língua escrita corretamente. Não
basta saber escrever. Tem que saber escrever direito. Como manda o figurino. E
dominar os vários figurinos. O jurídico, o sociológico, o econômico, o acadêmico.
É por isso que a missão de Biá está perdida logo de cara. Como disse Zaqueu,
a história tem que ser “científica”. O ditado popular está certo.
Escreveu, não leu, o pau comeu. Escreveu e a autoridade não gostou, não vale
nada. Lá vem as águas para inundar Javé.
Como
diz o professor Marcos Bagno (2), não existe erro em comunicação. Erro em
comunicação é não comunicar. Você fala xícara com “x” ou com “ch”?
É claro que há coerência nas regras gramaticais. Mas sua maior coerência é
o papel de elemento de discriminação que cumpre. A gramática foi
inventada para impor a língua que os dominadores entenderam ser a mais correta.
É mais uma forma de manter a maioria na pobreza e sendo explorada. Hoje em dia,
com tanto desemprego, os patrões já se dão ao luxo de exigir correção
gramatical em outras línguas. Para ser caixa de supermercado, é preciso saber
inglês!!
Claro
que é preciso aprender e ensinar o português culto. Até para que os de baixo
entendam os mecanismos de dominação em todas as suas dimensões e lutem para
acabar com eles. O problema é que até uma coisa tão linda como a escrita
virou arma de dominação. A escrita nos deu os livros. Um dos objetos mais
maravilhosos da humanidade. Mágico provocador de sonhos, prazeres, descobertas,
e até das angústias e revoltas tão necessárias.
Mas
usada como foi em “Narradores”, ela fica triste. Os narradores têm uma
criatividade maior do que a que Biá é capaz de congelar no seu caderno escrito
a lápis.
De
volta às “divisas cantadas”
Logo
no começo do filme, Firmino (Gero Camilo) lembra as “divisas cantadas”. O
que são divisas cantadas? “O cabra cantava: daquela árvore no sopé do morro
até a ponte perto do poço, digo que é tudo meu”, explica Zaqueu. São as
divisas, os limites da propriedade ou de territórios, definidas apenas pela
intenção de possuí-la. Obviamente, algo assim teria que ser negociado. Não
poderia ser imposto por um poder econômico ou político. São lembranças de épocas
muito remotas. Em que havia abundância de terras e falta de instrumentos de
poder. Estes últimos vieram com o progresso das forças produtivas. Com a divisão
entre quem trabalha e quem planeja. Quem lavra e ordenha e quem usa o avanço
tecnológico representado pela escrita para registrar o trigo, o vinho e o leite
no estoque.
No
entanto, o progresso na produção de comida, abrigo, lazer, sabedoria não é
necessariamente mal ou bom. Apenas provocaram contradições que precisam ser
resolvidas no sentido de deixarem de servir como formas de exploração e criação
de injustiças. Precisam passar a ser formas de criar e aperfeiçoar uma vida
civilizada e prazerosa para todos. Não apenas para uma minoria.
Por
exemplo, a comunicação audiovisual transformou o domínio da escrita num
privilégio de poucos. Isso serve aos poderosos. Mas numa sociedade justa e
livre, esse avanço vai tornar possível que narradores como os de Javé possam
contar suas histórias com a voz, com o lápis, o computador, a imagem
cinematográfica, holográfica. Tudo a que tem direito a imaginação humana.
Sem muralhas e barragens. Só com “divisas cantadas”. (3)
Março de 2004
(1)
Vito Giannotti é coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação. A Muralha
da Linguagem está em fase de impressão e seu lançamento está previsto para o
próximo mês.
(2)
Marcos Bagno é professor do Departamento de Lingüística da Universidade de
Brasília (UnB). Tem vários livros sobre educação e linguagem, inclusive
romances. Saiba mais em www.marcosbagno.com.br