O regozijo suspeito da
imprensa
(Muniz Sodré)
O regozijo da imprensa carioca e paulista com o trânsito vitorioso da reforma previdenciária no primeiro turno de votação da Câmara de Deputados, sem o necessário esclarecimento de pontos colaterais inquietantes, é sintoma de um desserviço à informação socialmente produtiva. Que pontos são estes? Vamos tomar como exemplo o da economia que, segundo os cálculos oficiais, a reforma proporcionará ao Estado: 50 bilhões de reais, em vinte anos.
Em torno de um item como este, desencadeou-se toda uma moção psicossocial, por parte do governo e da mídia, sobre as vantagens fiscais e sociais da reforma. O que permanece na sombra é o fato de que esse montante tão auspicioso equivale aproximadamente ao que o país paga de serviço da dívida externa num único quadrimestre. Diante de tal sangria a curto prazo, jamais cotejada pelos jornais com os números do "benefício" em duas décadas, não há motivo para regozijo algum, em especial quando se levam em conta as expectativas e os direitos de uma categoria profissional já bastante atingida pela política neoliberal.
Em princípio, não se discute o imperativo de reforma no sistema previdenciário, que no Brasil sempre fora basicamente financiado pelas contribuições calculadas sobre a folha de salários. Mas desde a Constituição de 1988, a Seguridade Social (saúde, seguro-desemprego, assistência social e previdência) depende de um orçamento global, cujas fontes de financiamento são a contribuição sobre folha de salários, contribuição sobre o lucro líquido, contribuição para o financiamento da seguridade (Cofins) e o PIS/PASEP, que compõe o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), gerido pelo Ministério do Trabalho.
Ocorre que, a partir da segunda metade da década de 1970, tanto no Brasil como em muitos outros países o aumento das despesas sociais passou a refletir-se fortemente sobre a seguridade. Nas economias desenvolvidas, a crise tem como causas demográficas a maior longevidade, associada a menores taxas de natalidade; como causas econômicas, a redução do crescimento da produção e a elevação das taxas de desemprego.
Tudo isto é válido para o Brasil, mas ao mesmo tempo são vários os estudos sérios que recomendam cautela nas proposições de reforma do sistema de seguridade, com o argumento de que os problemas pertencem mais à conjuntura (recessão e inflação) do que à estrutura. Um desses estudos, realizado por Aloísio Teixeira (UFRJ, 1995), é taxativo:
"As dificuldades por que passa o sistema de seguridade são reais, mas não intransponíveis. A prova maior disso é que, ano após ano, a Previdência Social vem honrando seus compromissos e gerando superávits, não existindo até o momento nenhum estudo sério que demonstre que essa tendência será revertida na próxima década".
Vidraças
quebradas
Alguém se lembra de ter lido o resumo de um desses estudos em qualquer veículo da grande imprensa? Certamente não, porque não foi publicado. A grande imprensa deixa de dizer a seu público-leitor que o importante mesmo não é satanizar o funcionário público, e sim colocar a pauta do pleno emprego como pressuposto de uma reforma do sistema previdenciário. Louva-se o acerto da política macroeconômica – necessária, sem dúvida alguma, para impedir a crise cambial e a inflação que se armava –, mas não se diz que preocupantes mesmos são os sintomas da deflação, da crise de estabilização, que pode ser uma das conseqüências da contenção radical da inflação, como foi o caso do Plano Real.
A este respeito, seria de grande interesse para jornalistas e público-leitor consultarem A inflação brasileira (1820-1858), do austríaco Oliver Ónody, falecido há seis anos. Trata-se de um trabalho sem grandes vôos teóricos, mas com informações esquemáticas e muito claras, uma das quais torna claro que a crise de estabilização, também chamada crise de readaptação, pode provocar os seguintes fenômenos:
"a) escassez de capital de movimento; b) aumento de taxa de juros; c) desemprego; d) crise nas grandes concentrações industriais formadas durante a inflação; e) aumento da procura de bens populares; f) decréscimo do número de instituições de luxo e aumento do número de estabelecimentos populares; g) baixa nos salários; h) limitação dos dividendos; i) racionalização da produção industrial".
Esta "racionalização da produção industrial" é o mesmo que a "reengenharia" tão em moda nos manuais contemporâneos de business. Não é difícil de se reconhecer nesses efeitos arrolados os traços inequívocos de um processo deflacionário brasileiro. Como assinala Ónody, "um dos aspectos curiosos da deflação é que ela, em geral, é injusta porque não tributa os que foram favorecidos pela inflação, mas os que sofreram perdas. Isto acontece, sobretudo, quando a inflação perdurou muito tempo".
Ora, com uma taxa de desemprego de 21% em São Paulo (cinco pontos a menos do que a taxa de desemprego na Grande Depressão americana no final dos anos 1930) e 15% a 17% em geral, não é preciso fazer grandes especulações para saber quem são os injustiçados pela tributação deflacionária. Não é preciso também muito pensar para concluir que o essencial é mesmo uma política de pleno emprego, sem o qual não há estabilidade política, sem o qual a situação social torna-se, como agora, intolerável. Não são os funcionários públicos, nem os seus supostos privilégios, os responsáveis pela crise da Previdência, e sim a imprevidência do Estado. O problema é que esta última não é figurativa o bastante para tornar-se um bom bode-expiatório midiático-popular.
Por outro lado, tudo indica que fazem falta à nossa imprensa editores, analistas e colunistas capazes de entender e fazer o público-leitor entender que, em situação de alto desemprego, um certo tipo de déficit pode ser economicamente virtuoso. E para entender basta não se afinar de modo tão servil com a voracidade do mercado, a quem se pretende realmente servir com a atual reforma da Previdência.
Nada de regozijo, portanto. É melhor prestar atenção às vidraças quebradas.