TV impede discussão séria sobre segurança pública

(Sérgio Domingues)

A segurança pública é tratada como entretenimento pela TV. Muita ação, emoção, velocidade, revolta e vingança. Só que as vítimas são quase sempre os pobres, os negros e o direito da população à informação.Enquanto houver monopólio da mídia, vai ser assim.

O apresentador entra no ar quase aos berros. Pode ser qualquer um deles: Marcelo Rezende, José Luiz Datena, Roberto Cabrini, os três apresentadores dos programas mais assistidos atualmente. Só varia o timbre da voz: “Um adolescente de 16 anos invade residência, tortura e mata dois idosos na zona norte da cidade. Dois bandidos fogem da delegacia do Tatuapé. Polícia estoura cativeiro em favela da zona sul. Tudo isso você vai ver daqui a pouco na rede... de televisão. Não saia daí, não troque de canal.” Entram os comerciais.

Saem os comerciais. Aparece o adolescente de 16 anos já preso. Está com o rosto coberto. Depõe para o repórter com a voz distorcida. Descreve friamente suas terríveis ações. O apresentador conclui a matéria falando sobre as atrocidades que o “elemento” cometeu. Sobre a que ponto chegamos. “E ainda tem gente que é contra a prisão de menores!” berra o apresentador. O telespectador olha estarrecido.

Aparece o vizinho petista

Vamos dizer que esse telespectador tem um vizinho petista. Mais do que isso, um militante dos direitos humanos. Freqüenta reuniões e palestras contra a redução da maioridade penal e conhece, por exemplo, Conceição Paganele, presidente da Amar - Associação de Mães e Amigos de Crianças em Risco, mãe de um interno da FEBEM e responsável pelas denúncias de tortura de seus internos.

Esse vizinho vai lhe fazer uma visita e o caso do adolescente vem à tona. Nosso telespectador está indignado. Defende a prisão desses adolescentes criminosos, maníacos etc etc. Pois bem, o vizinho petista começa a argumentar. Apresenta dados. Por exemplo: Os adolescentes infratores são responsáveis por apenas 10% dos crimes cometidos no Brasil. E mais: de cada 100 mil adolescentes, só 2,7 são infratores, enquanto, em cada 100 mil adultos, 87 são infratores.

Animado com a surpresa de nosso telespectador, o ativista de direitos humanos continua: De todos os atos criminosos praticados por adolescentes, somente 8% correspondem a crimes contra a vida. A grande maioria (75%) é de crimes contra o patrimônio e, destes, 50% são furtos, isto é, delitos sem violência. No ano 2000, dos mais de 40 mil homicídios que aconteceram no Brasil, os adolescentes foram responsáveis por 448, mas foram vítimas em 3.800 casos. Ou seja, 75% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos são mortes violentas.

“Ou seja, diz o bem informado petista, há uma distorção no que a grande mídia faz. Ela mostra o que assusta, indigna, chama a atenção, vira conversa de comadre, de botequim. Enfim, o que dá audiência e de quebra desobriga o poder público de dar educação. Afinal, para o(s) governo(s) é mais fácil, barato e visível prender, bater, humilhar os autores de apenas 10% dos crimes cometidos no país do que investir na educação de milhões de crianças pobres”.

Nem todo mundo tem um vizinho petista

Diante de tais argumentações, talvez o telespectador em questão comece a ficar menos vulnerável aos sensacionalismos dos criminosos programas sobre crime da TV brasileira. O problema é que o telespectador em questão tem um vizinho petista apenas por acaso. Quantos outros teriam a mesma sorte? Poucos, é claro. Afinal, programas como os de Datena, Cabrini e Rezende devem juntos alcançar uma audiência de uns 20 a 25 milhões de pessoas. Mesmo que juntássemos aos petistas, os militantes de PSTU, PC do B, PDT etc. ainda faltariam companheiros e companheiras para minimizar o estrago que a grande mídia faz na área de segurança pública ou em outras áreas.

O fato é que a grande mídia fala para milhões de pessoas. E fala o que bem entender, desde que convenha a ela e aos poderosos. Enquanto isso, militantes, ativistas e simpatizantes de causas como os direitos humanos, a luta sindical, ecologia, orientação sexual, direitos da mulher, chegam no máximo a algumas dezenas de milhares. E a maioria enfrenta sérias dificuldades para ter acesso a informações e formas eficientes de comunicá-las.

Reunião de direitos humanos? “Valeu, brigado, não vai dar”

Imagine você chamando seus vizinhos, amigos, colegas de trabalho para uma palestra sobre direitos humanos. A maioria deles dirá “valeu, brigado, não vai dar”. A maioria vai preferir assistir ao Cidade Alerta, Brasil Urgente e Repórter Cidadão. Depois tem aquele filme com mais perseguições e justiçamentos. E aí está o probelma da reportagem policial da grande mídia. Ela se apresenta como mais uma forma de entretenimento. E é assim que a maioria da população acaba vendo a exposição da criminalidade. O programa policial mostra perseguições a supostos bandidos. Mostra a cara de suspeitos como se já tivessem sua culpa confirmada pelo simples fato de estarem sendo acossados pela polícia e um por bando de repórteres. Muita ação, emoção, velocidade, revolta e vingança.

Usei o exemplo da segurança pública e dentro dela o da maioridade penal. Mas vários outros assuntos e áreas padecem do mesmo problema. A solução não virá com o fim do monopólio dos meios de comunicação. Mas o fim do monopólio das comunicações vai pelo menos permitir a discussão. Porque o que temos hoje é um monólogo com cara de debate. Prevalece apenas uma concepção, a dos poderosos da política, da economia e da mídia. Quem discorda tem seus argumentos tratados como “discursos lamuriosos sobre criminosos sanguinários”.

Quando tivermos TVs regionais dentro de uma mesma cidade, tantos canais na TV aberta quanto são os da TV paga, emissoras sob controle de movimentos sociais, aí sim, a realidade vai ficar mais próxima de cada um. E cada cidadão vai poder participar como parte da solução e não como ansioso torcedor da aprovação da pena de morte e da prisão de crianças e adolescentes.  

Os dados sobre delitos de menores foram obtidas na página http://www.cesec.ucam.edu.br, em artigos de Julita Lemgruber.

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