Tiros
em Columbine é surpreendentemente bem feito. Tem ritmo, imagens,
ironia e um belo esculacho dos valores conservadores presentes na sociedade
norte-americana. É um raro retrato de doença social. Deve
ter escandalizado muitos dos habitantes estadunidenses e feito outros tantos
se sentirem muito mal.
Tiros
e mísseis em Columbine
O
filme procura descobrir o que levou dois adolescentes a disparar armas
no interior de uma escola na cidade de Columbine, no estado de Colorado,
em 1999. Os dois estudantes mataram 12 colegas e um professor antes de
cometer suicídio. Na mesma cidade ficam as instalações
da Lockheed, produtora de aviões e armamentos. Também há
uma base aérea na localidade e o pai de um dos garotos que fez os
disparos lutou na guerra do Golfo pilotando um bombardeiro. Uma cena irônica
é a de Moore entrevistando um representante da Lockheed, em que
este afirma não ver ligação entre a presença
da empresa e os tiros na escola. Atrás do entrevistado, a carcaça
de um enorme míssil nuclear.
Quando
perguntados sobre as razões para os atos dos garotos, vários
membros da comunidade local responsabilizam os filmes e vídeo-jogos
violentos, a TV e Marylin Mason, o pop-estrela mais bizarro que já
apareceu no planeta. Seguindo essas pistas, o diretor descobre que cada
um desses elementos está presente em outras sociedades. Japão,
Canadá, Alemanha, França são países em que
violência, mídia apelativa e rock bizarro também estão
presentes. Mas ao contrário do grande império do norte, essas
sociedades apresentam índices de criminalidade muito baixos. Ao
deslocar a investigação para o alto índice de armamento
da população norte-americana, Moore vê sua hipótese
negada no Canadá, em que possuir armas também é bastante
comum, sem o correspondente aumento de mortes violentas.
Chalton
Heston é a prova viva da imbecilidade branca
De
qualquer modo, o fenômeno do armamento nos Estados Unidos é
assustador. O documentário dá a devida atenção
à Associação Nacional do Rifle, presidida pelo ator
Charlton Heston e defensora do direito ao armamento individual. Logo após
as ações dos garotos de Columbine, a Associação
organizou um comício na cidade para reafirmar sua defesa da livre
comercialização de armas e munições. E fez
o mesmo quando um menino de seis anos matou sua colega de escola com a
mesma idade utilizando uma arma que pegou na casa do tio. Isso aconteceu
em Flint. Uma semana depois a Associação realizou seu comício
na mesma cidade. Trata-se de uma organização com forte parentesco
com a Ku-Klux-Klan e mostra ter o mesmo nível de pobreza mental.
Basicamente, sua justificativa para a posse de armas é a de enfrentar
malfeitores. E estes são por eles identificados como pessoas não
brancas. Perguntado sobre as razões para tanta violência nos
Estados Unidos, Heston responde que “há muita mistura étnica
em nossa sociedade”. A entrevista aparece no final do filme e faz de Heston
a prova viva da imbecilidade branca que Moore denuncia em seu livro Estúpidos
Homens Brancos, recém lançado no país.
Os
absurdos vão se sucedendo. Uma cena mostra um cão que foi
responsabilizado por um tiro na perna de seu dono. É que o animal-proprietário
amarrou um rifle no animal-propriedade para fazer uma foto. Ao tentar ajeitar
a arma, o rifle escorregou e atingiu o animal-proprietário. O absurdo
aumenta quando Moore faz um policial explicar que o animal não tem
culpa do que aconteceu.
Nós
também ficamos encharcados pelos valores ianques
Mas,
não são apenas os habitantes da terra do Tio Sam que se vêem
afetados pelo filme. Pode ser uma impressão pessoal, mas acho que
os espectadores brasileiros (talvez, os latino-americanos) também
devem sentir certo desconforto. Afinal, a maioria de nós passou
boa parte da vida a encharcar-se com os valores ianques. Desenhos animados,
filmes, músicas. Tudo isso nos acostumou a ver na sociedade norte-americana
um modelo. De repente, na sala escura do cinema, uma seqüência
mostra o absurdo dessa idéia. É o caso de um anúncio
televisivo de armas de brinquedo exibido no filme de Moore. Com imagem
e som que indicam uma produção dos anos 60, o anúncio
elogia a capacidade de rifles e metralhadoras de plástico de imitar
o som dos disparos de armas de verdade. Dois garotos de 7 ou 8 anos brincam
com as falsas armas, quando são abordados por policiais. Para deleite
dos garotos, os policiais asseguram que confundiram o ruído dos
brinquedos com tiros de verdade. Imagino que muitos de nós, principalmente
os homens, já se viram cobiçando um brinquedo desse tipo
quando garotos. A partir dessa sensação, as cenas de Tiros
de Columbine passam a incomodar também a nós, colonizados
do lado sul do império.
Programas
policiais de lá e de cá
É
o que ocorre, por exemplo, quando a TV torna-se alvo do raciocínio
simples e exato do diretor. Num cruzamento de trânsito em Las Vegas,
Moore encontra profissionais da TV alertados por um falso alarme sobre
tiros no local. O cineasta pergunta ao colega jornalista o que ele escolheria
entre notícias sobre um tiro ou uma ocorrência sem violência.
O jornalista dá uma resposta franca e clara: “Vá sempre atrás
do tiro”. Logo em seguida mostra cenas do programa jornalístico
chamado Cops (tiras, em inglês), que já não é
mais apresentado. A especialidade da atração era mostrar
perseguições e prisões de suspeitos. Invariavelmente,
negros e sempre pobres. Moore pergunta ao diretor do programa porque não
fazer o mesmo quando criminosos colarinho-branco
são detidos.
O entrevistado alega que esse tipo de ocorrência não dá
bom material televisivo. São raras e, quando acontecem, os suspeitos
são detidos com o acompanhamento de advogados bem pagos. Não
há cenas de tensão, como acontece em detenções
de pessoas sem posses. De novo, o incômodo bate à nossa porta.
Não há como não lembrar de programas como Cidade Alerta,
Repórter Cidadão, Brasil Urgente e outros do mesmo gênero.
Verdadeiros desfiles de barbaridades que colocam a culpa da violência
em suas vítimas (nos pobres) e escondem a responsabilidade dos donos
do poder.
A
terra do blues e do jazz não pode produzir apenas imbecis
Dois
problemas poderiam ser apontados no filme. O primeiro é o fato de
que Moore parece não chegar a uma conclusão sobre o problema
que se propôs a investigar. Mas talvez essa não seja o papel
da produção. Já basta ter retratado de maneira tão
crua a cultura dominante nos Estados Unidos. Além disso, a entrevista
final com Heston dá alguma pista de que os tiros disparados na escola
de Columbine podem ter tudo a ver com a mentalidade extremamente conservadora
da elite branca do país.
O
outro problema seria o de que a sucessão de imagens sobre a imbecilidade
da América branca dá a impressão de que não
há vida inteligente entre os norte-americanos. Mas a própria
existência de Tiros em Columbine e a premiação
de Moore com um Oscar são a negação disso. Claro que
alguém poderia apontar a premiação pela academia de
Hollywood como um sinal de que mesmo a dura crítica de Moore pode
ser absorvida e neutralizada pelo sistema. O maior erro dessa idéia
é atribuir ao esquema de poder norte-americano uma capacidade infinita
de superar as contradições que cria. Tal capacidade é
realmente grande, mas nunca seria inesgotável. Dizer isso é
negar a história. E também ficar cego às possibilidades
de criação de um povo que deu à humanidade patrimônios
como o blues e o jazz.
O surgimento de um produtor cultural como Michael Moore somente é possível porque há senso crítico em ebulição na sede do império. E é dele que esperamos ver surgir mais denúncias contra a imbecilidade que colocou George W. Bush no poder.