A
partir da convocação de “greve geral” para 10 de abril, feita pela
Fedecamaras - federação empresarial mais poderosa da Venezuela - e CVT
(Central Venezuelana dos Trabalhadores), a mídia venezuelana e internacional
começou a desempenhar seu papel decisivo, primeiro como articuladora do
protesto; mais tarde como geradora da onda de boatos que jogará os militares
contra Chávez e deixará paralisados seus apoiadores. A participação da
imprensa é tão forte que o jornal independente mexicano La Jornada (www.jornada.unam.mx)
chega a falar num “golpe midiático”.
Nove
dos dez jornais mais importantes da Venezuela e quatro das cinco cadeias de TV
com maior audiência fazem oposição cerrada ao presidente eleito pelo povo. O
sociólogo norte-americano Gregory Wilpert, correspondente em Caracas da publicação
eletrônica norte-americana Z-Mag (www.znet.org)
relata que, nos dias anteriores à greve, a mídia contrária ao governo
convocou o movimento exaustivamente, em chamadas que se repetiam a cada dez
minutos.
Mesmo
com este apoio extraordinário, diz La Jornada, a paralisação não foi maciça.
Todo o setor estatal (professores, servidores públicos, controladores dos
sistemas de transportes) funcionou, assim como a maior parte do setor privado.
Onde houve interrupção do trabalho, continua o jornal mexicano, ela teve muito
mais característica de locaute. Os patrões fecharam as portas, os
trabalhadores ficaram em casa. Ainda assim, Fedecamaras e CTV prorrogaram a
greve geral, provavelmente por terem ambição maior.
Na
mídia, Chávez morre antes
O
golpe foi consumado quinta-feira, após uma série de fatos novos e, em
especial, de sua deformação pela TV. Sem base em qualquer acontecimento real,
as quatro redes que se opõem a Chávez passaram a especular, a partir do início
da manhã, sobre o possível sumiço do presidente, para apresentá-lo como alguém
sem apoio e sem coragem. A partir do meio-dia, afirmaram que o Alto Comando
Militar havia pedido sua renúncia. Difundiram à náusea os pedidos de renúncia
dos opositores. Não deram voz nem imagem a nenhum representante do governo.
Uma
passeata oposicionista percorreu as ruas de Caracas. O norte-americano Wilpert
relata: “Eram 100 a 200 mil pessoas [50 mil, para La Jornada]. Foi uma marcha
bem sucedida, pacífica, e sem interferência governamental de nenhum tipo,
mesmo tendo bloqueado ilegalmente a principal artéria de transporte da cidade,
por muitas horas”.
Por
volta do meio-dia, os organizadores decidiram desviá-la para o palácio
presidencial de Miraflores. A boataria na TV se intensificou. Falou-se em detenção
do presidente pelo comando militar, em dissensões cada vez mais amplas nas forças
armadas, em greve geral por tempo indeterminado.
Tiros
contra os defensores de Chávez
Mais
ou menos às 16 horas, ocorreram os incidentes fatais. De última hora, o
governo havia convocado, pela TV estatal, seus apoiadores a defender o palácio.
Mais de 5 mil pessoas compareceram. Entre eles e os manifestantes anti-Chávez
interpuseram-se dois corpos militares: a guarda presidencial e a polícia
metropolitana, controlada pelo prefeito Alfredo Peña, de oposição. Houve
conflitos. A cerca de 300 m do palácio presidencial, um grupo de
franco-atiradores, situado no topo de edifícios, começou a atirar contra a
multidão. Pelo menos dez pessoas morreram e cerca de cem ficaram feridas.
Quem
seriam os assassinos? La Jornada dá pistas. Cita Maximilain Averlaiz, um francês
que apóia Chávez, está em Caracas e presenciou tudo. Para ele, os tiros foram
dirigidos contra os apoiadores de Chávez, por gente ligada à oposição.
Wilpert, do Zmag, não chega a tanto: “é impossível, e a esta altura
irrelevante, saber quem atirou primeiro”. Mas também ele frisa: “A mídia
nunca dirá, mas a maior parte dos mortos é constituída de partidários do
presidente. Os jornais também não dirão que os franco-atiradores eram membros
do grupo Bandera Roja”, que se apresenta como de extrema-esquerda, mas esteve
desde o início perfilado com a oposição conservadora a Chávez.
Do
golpe virtual ao real
Toda
a mídia atribuiu imediatamente os assassinatos ao governo, continua Wilpert.
Martelada insistentemente, a acusação de “atentado contra o povo inocente”
paralisa os apoiadores de Chávez e atiça o golpe. No final da tarde, são
gravadas as imagens de dez membros da cúpula militar que se dizem
insubordinados e “exigem” a renúncia de Chávez. A hierarquia católica
pede o mesmo. Ao mesmo tempo, entram em ação os generais Alberto Camacho,
chefe da Guarda Nacional e Efrain Vazquez Velazquez, da infantaria. Pelas
informações disponíveis até aqui, eles parecem ser os líderes do golpe.
Camacho,
que dirige a parte das Forças Armadas com maior mobilidade e experiência em ações
urbanas, adere à “exigência” de renúncia de Chávez. Vazquez Velazquez
fala como se fosse o chefe geral das Forças Armadas... e tem o crédito da
imprensa internacional.
O
noticiário em espanhol da CNN, que também não parou, durante todo o dia, de
transmitir a voz da oposição e censurar as falas do governo, transmite imagens
em que este impostor prega o golpe: “O comandante geral do exército é o legítimo
comandante de todas as tropas desta força. Ordeno a todos os meus comandantes
de batalhões, brigadas e divisão, que são minha fortaleza e da pátria, que
permaneçam em suas unidades”...
Até
a renúncia é falsa
No
meio da tarde, Chávez comete seu erro mais grave. Durante pronunciamento à nação,
que apenas a TV estatal transmite, acusa as demais emissoras de violarem a
Constituição. Apoiado na Lei 192, anuncia que mandará interromper seus
sinais. A ordem é cumprida por pouco tempo. As TVs privadas saem do ar, mas
voltam poucas horas depois. O presidente já não controla o Estado. No final da
noite, os militares cortarão os sinais da TV pública, para que a unanimidade
em favor do golpe seja completa.
Os
que tramam contra o presidente eleito agem com cada vez maior liberdade, e os
que apóiam o mandato popular estão confusos. À meia-noite, segundo La
Jornada, ainda há milhares de partidários de Chávez cercando o Palácio
Miraflores e uma centena diante do Forte Tiuna, quartel mais importante da
capital, e da base aérea de La Carlota. Mas eles não sabem o que fazer. Entre
a noite e a madrugada, os três locais são cercados por golpistas. O presidente
permanece o tempo todo no palácio, certamente na tentativa de articular algum
apoio militar. Por volta das 3h da madrugada de sexta, o verdadeiro chefe das
Forças Armadas, Lucas Rincon, afirmou que o chefe de Estado decidira pela renúncia.
Mesmo a veracidade desta informação é questionável. Na noite de sexta-feira,
o fiscal-geral da Venezuela garantiu à Agência EFE que Chávez havia se
recusado a renunciar. O certo é que foi preso nas primeiras horas da manhã, e
conduzido para Forte Tiuna.
Por
que a elite odeia Chávez
Gregory
Wilpert resume, num parágrafo, os motivos que levaram a elite a destilar contra
o presidente tanto ódio. Ele convocou a Assembléia que “escreveu uma das
constituições mais progressistas do mundo e quebrou o monopólio de poder de
dois partidos corruptos e desacreditados; introduziu a reforma agrária;
financiou numerosos projetos de desenvolvimento comunitário e ambiental;
promoveu uma reforma educacional que levou à escola, pela primeira vez, um milhão
de crianças; dobrou o investimento em Educação; regulamentou a economia
informal para reduzir a insegurança dos pobres; lutou por um preço melhor para
o petróleo, principal riqueza natural do país; batalhou incansavelmente contra
o neoliberalismo no plano internacional; reduziu o desemprego de 18% para 13%;
introduziu em grande programa de microcrédito, voltado especialmente para os
mais pobres e as mulheres; reformou o sistema tributário e atacou drasticamente
a sonegação; reduziu a mortalidade infantil de 21 para 17 por mil ao ano”.
Detestado
pelas elites, não foi, contudo, capaz de reverter a desorganização secular da
sociedade venezuelana – e, portanto, de mobilizar o povo de forma orgânica e
integradora. Exímio comunicador, teve no início de seu mandato índices de
aprovação próximos a 80%. Promoveu uma ampla reforma política, que livrou em
boa medida as instituições venezuelanas dos corruptos que a controlavam. Mas
herdou de Bolívar, além do sonho da Pátria Grande, o estilo caudilhesco.
“Esse modo de ser afastou muitos dos seus antigos apoiadores. Quando alguém
se opunha a suas idéias, o presidente era tentado a rejeitá-lo e afastá-lo de
seu círculo de governo”, testemunha Wilpert. Ele também crê que faltou a Chávez
articular, além dos setores mais pobres, uma parte da classe média que fosse
capaz de “desenvolver uma cultura bolivarianista civil, e de conquistar apoio
internacional”.
Quando
Washington sorri
Desencastelada
do governo e do parlamento, a elite continuou, no entanto, a exercer o poder
através das grandes empresas e de seus laços com o exterior, dos sindicatos
burocratizados, dos militares conservadores, da cúpula da igreja, em especial
da mídia. Teve a retaguarda de Washington, confirmada, horas depois da
quartelada, pelas declarações de júbilo do secretário de Imprensa dos EUA,
Ari Fleischer. Os donos do poder ficaram à espreita e golpearam no momento
certo. A queda dos preços do petróleo, no ano passado, debilitou a economia e
tornou mais distante, para a massa de excluídos, a esperança de conquistar
vida digna. Chávez tentou uma saída para frente: propôs um conjunto de 39
novas leis reformadoras. Seus índices de aprovação, contudo, haviam caído
para 30% (semelhantes à rejeição). Patrões e sindicatos pelegos aproveitaram
para promover um primeiro locaute-greve.
Ao
tentar reverter suas conquistas, ao girar para trás a roda da história, as
elites serão obrigadas a expor sua face mais retrógrada. Em todo o mundo, também
não será possível esconder por muito tempo que se praticou no dia 11 um
atentado contra a soberania popular – e são co-autores os que deveriam, em
tese, garantir o direito à informação. Para os que lutam por um mundo e uma
América Latina novos se abrirá, um amplo espaço para denunciar os poderosos e
o Império que os ampara; e, ainda mais importante, para propor uma democracia e
uma imprensa radicalmente novas e verdadeiramente controladas pelos cidadãos.