Venezuela: A orquestração do “golpe midiático”

(Antonio Martins *) 

A partir da convocação de “greve geral” para 10 de abril, feita pela Fedecamaras - federação empresarial mais poderosa da Venezuela - e CVT (Central Venezuelana dos Trabalhadores), a mídia venezuelana e internacional começou a desempenhar seu papel decisivo, primeiro como articuladora do protesto; mais tarde como geradora da onda de boatos que jogará os militares contra Chávez e deixará paralisados seus apoiadores. A participação da imprensa é tão forte que o jornal independente mexicano La Jornada (www.jornada.unam.mx) chega a falar num “golpe midiático”.

Nove dos dez jornais mais importantes da Venezuela e quatro das cinco cadeias de TV com maior audiência fazem oposição cerrada ao presidente eleito pelo povo. O sociólogo norte-americano Gregory Wilpert, correspondente em Caracas da publicação eletrônica norte-americana Z-Mag (www.znet.org) relata que, nos dias anteriores à greve, a mídia contrária ao governo convocou o movimento exaustivamente, em chamadas que se repetiam a cada dez minutos.

Mesmo com este apoio extraordinário, diz La Jornada, a paralisação não foi maciça. Todo o setor estatal (professores, servidores públicos, controladores dos sistemas de transportes) funcionou, assim como a maior parte do setor privado. Onde houve interrupção do trabalho, continua o jornal mexicano, ela teve muito mais característica de locaute. Os patrões fecharam as portas, os trabalhadores ficaram em casa. Ainda assim, Fedecamaras e CTV prorrogaram a greve geral, provavelmente por terem ambição maior.

Na mídia, Chávez morre antes

O golpe foi consumado quinta-feira, após uma série de fatos novos e, em especial, de sua deformação pela TV. Sem base em qualquer acontecimento real, as quatro redes que se opõem a Chávez passaram a especular, a partir do início da manhã, sobre o possível sumiço do presidente, para apresentá-lo como alguém sem apoio e sem coragem. A partir do meio-dia, afirmaram que o Alto Comando Militar havia pedido sua renúncia. Difundiram à náusea os pedidos de renúncia dos opositores. Não deram voz nem imagem a nenhum representante do governo.

Uma passeata oposicionista percorreu as ruas de Caracas. O norte-americano Wilpert relata: “Eram 100 a 200 mil pessoas [50 mil, para La Jornada]. Foi uma marcha bem sucedida, pacífica, e sem interferência governamental de nenhum tipo, mesmo tendo bloqueado ilegalmente a principal artéria de transporte da cidade, por muitas horas”.

Por volta do meio-dia, os organizadores decidiram desviá-la para o palácio presidencial de Miraflores. A boataria na TV se intensificou. Falou-se em detenção do presidente pelo comando militar, em dissensões cada vez mais amplas nas forças armadas, em greve geral por tempo indeterminado.

Tiros contra os defensores de Chávez

Mais ou menos às 16 horas, ocorreram os incidentes fatais. De última hora, o governo havia convocado, pela TV estatal, seus apoiadores a defender o palácio. Mais de 5 mil pessoas compareceram. Entre eles e os manifestantes anti-Chávez interpuseram-se dois corpos militares: a guarda presidencial e a polícia metropolitana, controlada pelo prefeito Alfredo Peña, de oposição. Houve conflitos. A cerca de 300 m do palácio presidencial, um grupo de franco-atiradores, situado no topo de edifícios, começou a atirar contra a multidão. Pelo menos dez pessoas morreram e cerca de cem ficaram feridas.

Quem seriam os assassinos? La Jornada dá pistas. Cita Maximilain Averlaiz, um francês que apóia Chávez, está em Caracas e presenciou tudo. Para ele, os tiros foram dirigidos contra os apoiadores de Chávez, por gente ligada à oposição. Wilpert, do Zmag, não chega a tanto: “é impossível, e a esta altura irrelevante, saber quem atirou primeiro”. Mas também ele frisa: “A mídia nunca dirá, mas a maior parte dos mortos é constituída de partidários do presidente. Os jornais também não dirão que os franco-atiradores eram membros do grupo Bandera Roja”, que se apresenta como de extrema-esquerda, mas esteve desde o início perfilado com a oposição conservadora a Chávez.

Do golpe virtual ao real

Toda a mídia atribuiu imediatamente os assassinatos ao governo, continua Wilpert. Martelada insistentemente, a acusação de “atentado contra o povo inocente” paralisa os apoiadores de Chávez e atiça o golpe. No final da tarde, são gravadas as imagens de dez membros da cúpula militar que se dizem insubordinados e “exigem” a renúncia de Chávez. A hierarquia católica pede o mesmo. Ao mesmo tempo, entram em ação os generais Alberto Camacho, chefe da Guarda Nacional e Efrain Vazquez Velazquez, da infantaria. Pelas informações disponíveis até aqui, eles parecem ser os líderes do golpe.

Camacho, que dirige a parte das Forças Armadas com maior mobilidade e experiência em ações urbanas, adere à “exigência” de renúncia de Chávez. Vazquez Velazquez fala como se fosse o chefe geral das Forças Armadas... e tem o crédito da imprensa internacional.

O noticiário em espanhol da CNN, que também não parou, durante todo o dia, de transmitir a voz da oposição e censurar as falas do governo, transmite imagens em que este impostor prega o golpe: “O comandante geral do exército é o legítimo comandante de todas as tropas desta força. Ordeno a todos os meus comandantes de batalhões, brigadas e divisão, que são minha fortaleza e da pátria, que permaneçam em suas unidades”...

Até a renúncia é falsa

No meio da tarde, Chávez comete seu erro mais grave. Durante pronunciamento à nação, que apenas a TV estatal transmite, acusa as demais emissoras de violarem a Constituição. Apoiado na Lei 192, anuncia que mandará interromper seus sinais. A ordem é cumprida por pouco tempo. As TVs privadas saem do ar, mas voltam poucas horas depois. O presidente já não controla o Estado. No final da noite, os militares cortarão os sinais da TV pública, para que a unanimidade em favor do golpe seja completa.

Os que tramam contra o presidente eleito agem com cada vez maior liberdade, e os que apóiam o mandato popular estão confusos. À meia-noite, segundo La Jornada, ainda há milhares de partidários de Chávez cercando o Palácio Miraflores e uma centena diante do Forte Tiuna, quartel mais importante da capital, e da base aérea de La Carlota. Mas eles não sabem o que fazer. Entre a noite e a madrugada, os três locais são cercados por golpistas. O presidente permanece o tempo todo no palácio, certamente na tentativa de articular algum apoio militar. Por volta das 3h da madrugada de sexta, o verdadeiro chefe das Forças Armadas, Lucas Rincon, afirmou que o chefe de Estado decidira pela renúncia. Mesmo a veracidade desta informação é questionável. Na noite de sexta-feira, o fiscal-geral da Venezuela garantiu à Agência EFE que Chávez havia se recusado a renunciar. O certo é que foi preso nas primeiras horas da manhã, e conduzido para Forte Tiuna.

Por que a elite odeia Chávez

Gregory Wilpert resume, num parágrafo, os motivos que levaram a elite a destilar contra o presidente tanto ódio. Ele convocou a Assembléia que “escreveu uma das constituições mais progressistas do mundo e quebrou o monopólio de poder de dois partidos corruptos e desacreditados; introduziu a reforma agrária; financiou numerosos projetos de desenvolvimento comunitário e ambiental; promoveu uma reforma educacional que levou à escola, pela primeira vez, um milhão de crianças; dobrou o investimento em Educação; regulamentou a economia informal para reduzir a insegurança dos pobres; lutou por um preço melhor para o petróleo, principal riqueza natural do país; batalhou incansavelmente contra o neoliberalismo no plano internacional; reduziu o desemprego de 18% para 13%; introduziu em grande programa de microcrédito, voltado especialmente para os mais pobres e as mulheres; reformou o sistema tributário e atacou drasticamente a sonegação; reduziu a mortalidade infantil de 21 para 17 por mil ao ano”.

Detestado pelas elites, não foi, contudo, capaz de reverter a desorganização secular da sociedade venezuelana – e, portanto, de mobilizar o povo de forma orgânica e integradora. Exímio comunicador, teve no início de seu mandato índices de aprovação próximos a 80%. Promoveu uma ampla reforma política, que livrou em boa medida as instituições venezuelanas dos corruptos que a controlavam. Mas herdou de Bolívar, além do sonho da Pátria Grande, o estilo caudilhesco. “Esse modo de ser afastou muitos dos seus antigos apoiadores. Quando alguém se opunha a suas idéias, o presidente era tentado a rejeitá-lo e afastá-lo de seu círculo de governo”, testemunha Wilpert. Ele também crê que faltou a Chávez articular, além dos setores mais pobres, uma parte da classe média que fosse capaz de “desenvolver uma cultura bolivarianista civil, e de conquistar apoio internacional”.

Quando Washington sorri

Desencastelada do governo e do parlamento, a elite continuou, no entanto, a exercer o poder através das grandes empresas e de seus laços com o exterior, dos sindicatos burocratizados, dos militares conservadores, da cúpula da igreja, em especial da mídia. Teve a retaguarda de Washington, confirmada, horas depois da quartelada, pelas declarações de júbilo do secretário de Imprensa dos EUA, Ari Fleischer. Os donos do poder ficaram à espreita e golpearam no momento certo. A queda dos preços do petróleo, no ano passado, debilitou a economia e tornou mais distante, para a massa de excluídos, a esperança de conquistar vida digna. Chávez tentou uma saída para frente: propôs um conjunto de 39 novas leis reformadoras. Seus índices de aprovação, contudo, haviam caído para 30% (semelhantes à rejeição). Patrões e sindicatos pelegos aproveitaram para promover um primeiro locaute-greve.

Ao tentar reverter suas conquistas, ao girar para trás a roda da história, as elites serão obrigadas a expor sua face mais retrógrada. Em todo o mundo, também não será possível esconder por muito tempo que se praticou no dia 11 um atentado contra a soberania popular – e são co-autores os que deveriam, em tese, garantir o direito à informação. Para os que lutam por um mundo e uma América Latina novos se abrirá, um amplo espaço para denunciar os poderosos e o Império que os ampara; e, ainda mais importante, para propor uma democracia e uma imprensa radicalmente novas e verdadeiramente controladas pelos cidadãos.

*Com co-autoria de Daniel Merli e serviço noticioso de La Jornada e Zmag.

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