Roberto
Marinho foi tarde
(Sérgio
Domingues)
A grande mídia amanheceu chorosa no dia 7 de agosto, lamentando o desaparecimento do presidente Rede Globo. Quanto a nós, do lado de cá, não é bem o caso de soltar fogos. Se há algo que temos que lamentar, são os prejuízos que o falecido nos causou. O título acima pode parecer raivoso, mas é um reconhecimento de que a burguesia perdeu um general talentoso.
A
julgar pela programação das TVs e rádios dos dias 7 e 8 de agosto, a canonização
de Roberto Marinho é uma questão de tempo. Apontado pelo Jornal Nacional, como
“defensor da cultura, imortal (da academia), humanista, idealista”, o homem
parece que não tinha defeitos. Tudo isso foi reforçado por declarações
emocionadas de artistas (como sempre, bons intérpretes), esportistas, músicos,
pessoas abordadas nas ruas, e, pasmem, figuras prezadas como nosso ministro
Antonio Palocci, que declarou sem mais, nem menos: “Dr. Roberto Marinho foi
fundamental na construção da democracia brasileira e no fortalecimento, na
estabilidade das instituições democráticas do Brasil”. Fez coro com ACM que
disse que lamenta a perda: “é como se eu perdesse um irmão mais velho.”
Este último falou com sinceridade e coerência. Afinal, fez uma dobradinha e
tanto com Marinho quando era ministro das Telecomunicações durante o governo
Sarney. É dessa época que data uma regulamentação das telecomunicações no
país que monopolizou de vez o setor, entregando-o ao controle de poucas e
poderosas famílias. Entre elas, a dos Marinho, Abravanel (SBT), Saad (Band),
Sirotski (RBS) etc.
TV
Globo nasce um ano após a ditadura se instalar
Mas
entremos no clima saudosista e lembremos algumas das proezas do falecido. Em
1965, um ano depois do golpe militar, surgia a TV Globo. Logo depois firmou um
acordo com o grupo norte-americano Time-Life. Antes do AI-5, o Congresso ainda
funcionava com certa liberdade e o acordo motivou uma CPI. A CPI apresentou um
relatório considerando o acordo ilegal. O tal relatório foi arquivado. Não
foi à toa. A recém criada rede de televisão nasceu para se integrar à nova
forma de dominação no Brasil. O Jornal
Nacional nasceu em 1969, início do período mais duro da ditadura. Médici
era o presidente e fez uma declaração famosa: “Sinto-me feliz todas as
noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão
conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo,
o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranqüilizante
após um dia de trabalho.” Mas não havia tranqüilizantes para os milhares de
presos, torturados e mortos a mando da ditadura e que a programação televisiva
ignorava.
A Globo só podia crescer e se fortalecer sob a proteção de ferro dos militares. E não é só isso. A Globo fez exatamente o que Médici destacou em sua frase. Um dos artistas globais, José Wilker, disse no Jornal Nacional em luto que “O Brasil tal como é hoje deve muito a Roberto Marinho”. E é verdade. Sem a Globo, talvez o Brasil não fosse um país injusto, pobre, com problemas sociais gravíssimos e com 98% dos lares equipados com TV para que o povo veja feliz um mundo como ele deveria ser nas novelas, shows e telejornais e não como ele realmente é.
Proconsult
e Globo contra Brizola
Quando a ditadura começou a sofrer derrotas nas greves do ABC, dos professores e bancários. Quando viu nascer o PT nas suas barbas. Quando, enfim, a ameaça de uma alternativa popular pairava no ar, a Globo fez sua parte. Um episódio tristemente inesquecível foi a apuração de votos no Rio de Janeiro, em 1982. Eram eleições para governadores. Em vários estados, a previsão era de vitória da oposição. Leonel Brizola, do PDT, sempre fora crítico ao monopólio global e se candidatara pelo Rio de Janeiro. Uma empresa chamada Proconsult, de propriedade de coronéis do Serviço Nacional de Informação, foi contratada para fazer a apuração dos votos. Havia fraude nos programas de computador para prejudicar Brizola. A Globo entrou no esquema divulgando hora a hora os resultados dos boletins fraudados. Acontece que um sócio da empresa quis bancar o esperto. Procurou o candidato do PDT para uma chantagem. Se ele aceitasse indicações para cargos importantes no governo, denunciaria a fraude. Brizola levou o chantagista ao Tribunal Eleitoral, e com um juiz e a imprensa internacional, invadiu a Proconsult. Depois foram à Globo, que continuava a divulgar os números errados, mesmo tendo conhecimento da denúncia. Infelizmente, até Brizola compareceu ao funeral do magnata manipulador.
O
povo não é bobo... nem a Rede Globo
Mas, admitamos, Roberto Marinho podia ser tudo, menos burro. Sua rede de TV tentou esconder o movimento das Diretas, em 84, e não conseguiu. O povo gritava nos comícios: “O povo não é bobo, fora Rede Globo”. Mas, se o povo não é bobo, muito menos a Rede Globo. Marinho mudou de tática. Quando viu que a ditadura fazia água, começou a mexer seus pauzinhos. Reuniu-se com Tancredo Neves e acertou a tática de dirigir o movimento popular para a saída que menos causava prejuízos à classe dominante: o Colégio Eleitoral. Tancredo seria o candidato da burguesia liberal contra Maluf, candidato dos militares. Derrotada a emenda das Diretas, a Globo começou a apresentar os comícios de Tancredo como festas populares. Maluf ficou com o papel de malvado, que lhe caía perfeitamente bem. Resultado: a votação no Colégio Eleitoral parecia uma festa da democracia e não a traição da vontade popular e uma saída honrosa para os militares assassinos. Por fora, somente a voz isolada do PT, que por isso pagou caro na época, mas acumulou pontos para o futuro.
Aprendendo
a remar com a maré
Desde
então, os veículos de comunicação do “dr.Roberto” foram se aperfeiçoando
na arte de remar conforme a corrente. Construíram a imagem de Collor de Mello
como campeão moral e governante moderno, desde 1987. Dedicavam mais tempo ao
candidato collorido e o apresentavam de forma positiva. Manipularam o famoso
debate entre Lula e Collor. Depois da vitória collorida, a cúpula jornalística
caprichou na cobertura dos espetáculos proporcionados pelo presidente recém-eleito.
Corridas, Jet-Skis, judô, etc. Até que o Pedro Collor enlouqueceu e botou a
boca no mundo. Denunciou falcatruas do irmão presidente. Aí, as denúncias
combinaram-se com a crise econômica que o Plano Collor provocou. Um grande
movimento popular começou a surgir. A Globo já havia aprendido com as Diretas.
Passou a fazer uma cobertura menos parcial. A minissérie Anos Rebeldes já
estava sendo gravada antes do escândalo, mas foi ao ar em pleno período de
manifestações, mostrando a incrível sintonia que a Globo adquiriu com o clima
político. No dia da votação do impeachment, a TV Globo abriu mão de cerca de
R$ 66 milhões em exibição de comerciais para transmitir as 6 horas que durou
a votação da condenação de Collor.
Plano
Real e a barriga-de-aluguel de FHC
Depois
do intervalo com Itamar, que continuou a implantar o projeto neoliberal em câmera
lenta, Fernando Henrique se apresentou para bancar o pai do Plano Real. Na
verdade, FHC não passou de uma barriga-de-aluguel. O plano era igualzinho a
todos os que já vinham sendo aplicados no México, Argentina, etc. Todos com a
mesma paternidade: o Departamento de Estado norte-americano, em Washington. A
Globo também não podia perder essa. Desde os primeiros choros da criança, o
Real era festejado em todo o país pela telinha azul.
Aliás,
a indústria de aparelhos de TV aproveitou o embalo dos preços congelados e a
Copa do Mundo de 1994 para vender muito mais. Até hoje tem padaria e bar com
aparelhos de TV daquela época. Foi um pacote só. Plano Real, vendas em alta e
tetra-campeonato. O resultado foi a eleição do barriga-de-aluguel, que virou a
mãe dos banqueiros, grandes capitalistas e especuladores internacionais.
Mesmo
quando mostra os conflitos e desgraças do capitalismo, a Globo acaba dando um
jeito de mostrar que o caminho é o conformismo. É só lembrar do final da
novela “Rei do Gado”, em que a Sem-Terra Patrícia Pillar casa com um
fazendeiro progressista, Antonio Fagundes. As bandeiras vermelhas do MST são,
então, substituídas pelas brancas. Bandeiras brancas da paz, diziam os
personagens. Na verdade, bandeiras brancas que queriam uma rendição. A rendição
dos Sem-Terra à lei e à ordem. A mesma lei e ordem que autoriza a PM ou milícias
de latifundiários a matar trabalhadores rurais indefesos.
1998:
Os institutos manipularam as pesquisas. A Globo ajudou a divulgar
Exemplo
de como atua a Globo e outros gigantes da mídia foram as eleições para
governador em 1998. Na briga contra o malufismo, Marta Suplicy já estava se
credenciando como a melhor adversária para ir ao 2o turno contra Maluf. Mas as
pesquisas foram manipuladas para estimular o voto útil em Covas. A Globo com
seu poderio ajudou a divulgar os números manipulados. O resultado foi a
passagem de Covas para o turno final da eleição. O resultado foi um eleitorado
passado para trás pela Globo e seus parceiros da mídia, especializados na
manipulação da informação.
Para
encurtar uma história que já vai ficando desagradável demais, finalmente
chegamos a 2002. Lula é eleito para assumir o comando do navio a caminho naufrágio.
Ganha 30 minutos de entrevista no Jornal
Nacional após a confirmação da vitória. Para quem só aparecia na
telinha do plim-plim em horário eleitoral gratuito ou para ser avacalhado era
surpreendente. Mais uma esperteza dos Marinhos. O grupo da família havia
anunciado uma moratória no mesmo dia da entrevista. Mais precisamente, a
Globopar tinha dívidas equivalentes a US$ 2,63 bilhões, das quais US$ 2,21
bilhões em moeda estrangeira. Ou seja até eles caíram no conto do Real forte
e se endividaram em dólar. Agora querem ajuda do novo governo. Não dá ponto
sem nó esse pessoal.
Lamentações
por outras razões
Agora, voltemos ao presente recente e lamentemos. Não a morte do presidente da Rede Globo, pois este tem quem o lamente com toda justiça. São os representantes e membros da classe dominante. Lamentemos as declarações de Palocci, que não se sabe onde foi buscar o compromisso de Marinho com a “construção da democracia brasileira”. Lamentemos o presidente Lula, que disse ser o falecido “um homem que veio ao mundo para prestar serviços à comunicação, à educação e ao futuro do Brasil”. Frase ainda mais triste se recordamos um discurso feito em Sergipe, em 6 de setembro de 1987. Lula, então deputado federal, disse o seguinte: “Nós hoje somos um país com praticamente 20 milhões de crianças abandonadas. Somos um país com 16 milhões de analfabetos. Somos um país onde a história é contada pela Rede Globo de Televisão porque o senhor Roberto Marinho não faz outra coisa a não ser mentir para o povo”.
Para encerrar, seria bom se alguém soubesse onde anda o documentário sobre a Globo feito pela BBC de Londres. Chama-se 'Brazil: Beyond Citzen Kane' e Roberto Marinho impediu a entrada dele no Brasil.