Nova TV pública busca visão estratégica da Venezuela

(
Gilberto Maringoni) 

Há 3 meses, o governo Chávez colocou no ar um novo instrumento para se contrapor ao bloqueio midiático: uma emissora cultural, com programação que procura sair da lógica jornalística do dia-a-dia.

Ciudad Guayana – Ela aparenta menos do que os 35 anos que tem. Talvez seja o olhar inquieto e um constante sorriso no rosto. As palavras são disparadas rapidamente, como faz todo caraquenho, alinhavadas por um raciocínio que contextualiza cada expressão no quadro político mais geral. Não há muita retórica, apesar dos gestos incisivos das mãos. Blanca Eekhout evita rodeios e não foge das perguntas. É capaz de chegar de Caracas numa manhã de sol, correr para uma mesa de debates, agüentar cinco horas de sucessivas falas, durante o Fórum Panamazônico, e, sem almoçar, atender a três solicitações de entrevistas sem perder o bom humor. No caminho, é cumprimentada por vários companheiros, a elogiar ou a sugerir novidades para seu trabalho.

Um Boeing no ar

A moça, magra e vestida com simplicidade, não nega atenção; fala com todos. Às vezes parece uma líder estudantil, de tão veemente na defesa de suas idéias. Pois Blanca Eekhout encara um gigantesco desafio: conceber, montar, planejar e colocar no ar um dos mais caros projetos do governo da Venezuela, uma emissora de tevê cultural e educativa. O nome já existe: Vive TV. Literalmente, a tarefa equivale a fazer um Boeing decolar. Com algumas diferenças: o avião já levantou vôo há 3 meses, de uma pista curta, com apenas uma turbina funcionando, enquanto a equipe de terra termina de pintar a fuselagem e fazer as checagens finais. A emissora opera com 4 câmeras alugadas, sem estúdios e exibe uma programação de 8 horas diárias, apenas para a grande Caracas.

Blanca já entrou na sala que serve de escritório geral ao Fórum Panamazônico. O ar condicionado a ajuda a tomar fôlego. Deixemos que ela mesmo conte as novidades.

“Sofremos aqui, mais do que em qualquer parte, um cerco midiático contra nosso processo revolucionário. Para enfrentá-lo, já contamos com um canal estatal, centrado numa programação voltada para os fatos da conjuntura imediata. Queremos algo novo, que abarque uma visão cultural estratégica do país e de seu futuro. Por isso, criamos uma segunda emissora. O objetivo é que os venezuelanos se vejam nas ruas, nas cooperativas, nas associações, nos comitês de terra e em suas diversas experiências de vida. Enfim, este país que está surgindo de baixo para cima precisa se ver e ter espaço na mídia”.

Experiência comunitária

Blanca não fala em tese. Formada em artes e cinema pela Universidade Central, por três anos ela dirigiu a mais bem-sucedida experiência de emissora comunitária da Venezuela, a Catia TV, que leva o nome da maior favela da capital, com 1,5 milhão de habitantes. Blanca morou por vários anos no local e tornou-se conhecida e respeitada por seus moradores, que acumulam uma razoável tradição de organização comunitária. Inicialmente concebida como uma produtora de vídeo, que exibia os programas em associações e paróquias, em sessões públicas, logo sua pequena equipe conseguiu comprar equipamentos e obter uma sala emprestada de um hospital público para se instalar. Quando as imagens chegaram aos receptores das casas, a repercussão foi tanta que começou a incomodar a oposição. Em julho de 2003, o prefeito do distrito federal – alcaldia Mayor -, Alfredo Peña, um ex-aliado de Chávez que rompeu com o governo, tomou uma decisão de força. Mandou fechar a emissora, sob a alegação de que o hospital necessitaria do aposento cedido. Após uma intensa batalha judicial, a Catia TV vai ser brevemente reaberta em novo local, capitaneada por dois companheiros de Blanca, Ricardo Marques e Íris Castillo.

Ritmo acelerado

Nesse meio-tempo, Hugo Chávez convidou a ex-diretora da emissora comunitária para uma conversa no palácio de Miraflores. Expôs a idéia, que deveria concretizar-se em poucas semanas. Num ritmo aceleradíssimo, Blanca montou uma equipe de 50 pessoas – composta por pessoal de jornalismo, produção, programação e assessoria administrativa – e colocou o Boeing no ar.

A oposição, claro, botou a boca no mundo. Os meios de comunicação privados desqualificaram a iniciativa, tachando-a de aparelho ditatorial, distorcedor da verdade etc. A campanha teve o efeito de um bumerangue e tornou o novo canal extremamente conhecido. “Aí resolveram ficar quietos”, ri Blanca, que prefere comentar a receptividade popular. “Temos uma resposta muito positiva, mas ainda não tivemos uma amostragem objetiva. Há muita solidariedade e incentivo.”

Visão oficialista?

Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas a Vive TV não espelharia uma visão demasiadamente oficialista da realidade? A diretora não titubeia e assegura que predominaria nela a visão das camadas populares. “Estamos tentando cumprir a Constituição, no que diz respeito não só ao direito à informação, mas na busca de saldar a imensa dívida educacional e cultural com nosso povo.” Ela conta que vários programas têm a ver com as políticas do Estado, como os destinados a ensinar as pessoas a organizar cooperativas, programas de alfabetização, de economia solidária, microfinanças, associações de mulheres e de diversas redes sociais.

“A programação tem se pautado basicamente por noticiários, programas de TVs comunitárias, entrevistas, documentários de movimentos sociais da América Latina – pois nossa estratégia envolve também uma nova visão do continente, diferente da interpretação imperial – e filmes da Cinemateca Nacional”. Há algo do Brasil? Claro, diz Blanca, “recebemos materiais do MST, da TV Comunitária de Brasília e estamos aguardando colaborações”.

O orçamento ainda é pequeno, e os entraves burocráticos da emperrada máquina estatal atrasam a importação de equipamentos. Mas a meta, garante Blanca, é “a partir de maio, atingirmos 80% do território nacional, com a instalação de várias antenas de retransmissão e da obtenção de um sinal de satélite”. Na próxima quinta-feira, a programação diária será estendida para 12 horas.

“Visão nada ingênua”

Uma emissora pública não seria algo perigoso, por colocar nas mãos do Estado um poderoso instrumento de persuasão? Blanca Eekhout fica tranqüila para responder. “Nossa população, depois das experiências do golpe de abril de 2002 e do locaute petroleiro de dois meses, no final do mesmo ano, tem uma visão nada ingênua dos meios de comunicação privados. Eles só têm alguma credibilidade entre as classes médias altas. Nós não podemos ter uma visão liberal do Estado, de reduzir suas atribuições, tanto nas áreas de saúde e educação, como na área de comunicação. Queremos um Estado público, democrático e ativo.”

Blanca afasta os cabelos negros e lisos que lhe caem sobre os olhos, ajeita os diminutos óculos da mesma cor, sorri e se despede. Ainda enfrentará mais uma entrevista antes de correr para o aeroporto. E, se tiver sorte, comer alguma coisa pelo caminho.

Fevereiro de 2004

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