Pesquisas divulgadas pela Fairness & Accuracy In Reporting indicam que as networks do país não conseguiram fugir do tom nacionalista e parcial em sua cobertura jornalística. As redes ABC, CBS, NBC e PBS privilegiaram fontes e versões oficiais em suas reportagens.
Durante
as poucas semanas de duração da guerra no Iraque, todas as pesquisas indicaram
que a maioria da opinião pública dos Estados Unidos permaneceu fiel ao
presidente George W. Bush. É verdade que o propalado arsenal químico de Saddam
Hussein não foi encontrado. As ligações “carnais” do regime iraquiano com
a Al Qaeda também não passaram de especulação militar. Mesmo assim, o
norte-americano comum assinou cheque em branco e o ofereceu à Casa Branca.
Pistas para essa confiança ilimitada? Muitos especialistas têm na ponta da língua a palavra medo. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o receio de novos ataques, aliado à obsessiva necessidade por segurança, garantiram a Bush o papel de fiel depositário do futuro da nação.
Bem orientado por assessores, o presidente respondeu rapidamente ao novo cenário. Divulgou a doutrina de ações militares preventivas, que seriam lançadas em qualquer canto do mundo onde houvesse ameaça terrorista. Os dois primeiros lances, no Afeganistão e no Iraque, terminaram com ampla vitória norte-americana e novo reforço na popularidade de Bush.
Mas todo esse esforço para construir a imagem de um presidente corajoso e responsável não seria possível sem a ampla colaboração da mídia norte-americana. A constatação de que muitas redes não conseguiram fugir do tom nacionalista e parcial foi bastante discutida durante a guerra, mas faltava a verificação empírica. Faltava. Uma série de estudos divulgados pela Fairness & Accuracy In Reporting, uma ONG norte-americana que se dedica à pesquisa das networks do país, põe em dados esse diagnóstico.
Os autores das análises demonstram que quatro das principais redes de notícias do país – ABC, CBS, NBC e PBS – privilegiaram fontes e versões oficiais em seus telejornais. Não raro, as informações reproduzidas diretamente do Iraque e referendadas por alguns dos âncoras mais famosos da TV se mostraram, mais tarde, parciais, incompletas ou até mentirosas.
A Fair, como a ONG é mais conhecida, levantou em detalhes um desses casos. Ocorreu no dia 26 de abril, durante o telejornal noturno da Rede ABC, chamado World News Tonight. Naquele dia, a âncora Claire Shipman anunciou um furo jornalístico: as tropas dos Estados Unidos haviam encontrado armas com traços de agentes químicos dentro de um suposto laboratório móvel das tropas iraquianas.
“Militares dos Estados Unidos encontraram um depósito de armas 130 milhas a noroeste de Bagdá e testes iniciais deram resultado positivo para agentes químicos. Entre o material encontrado, havia 14 galões, pelo menos uma dúzia de mísseis e 150 máscaras de gás”, disse a reportagem.
O correspondente David Wright explicou que "preliminarmente os testes mostraram uma mistura de três substâncias, incluindo uma que age no sistema nervoso”. E acrescentou: um tenente norte-americano “disse que os teste tinham nível de exatidão de 98%”. Para o correspondente, era “de longe a mais promissora descoberta na busca pelas armas de destruição em massa do Iraque”.
Mas a história anunciada em destaque pela ABC – e que comprovaria que o Iraque possuía armas de destruição em massa, um dos argumentos de Bush para justificar a guerra – logo mostraria suas falhas. Testes realizados em seguida pelo Mobile Exploitation Team (MET) “concluíram que não há armas químicas nem um laboratório móvel na área em que as tropas norte-americanas haviam feito o anúncio”.
Segundo um integrante do MET ouvido em 27 de abril pelo The New York Times, “as reportagens anteriores estavam erradas”. O desmentido foi claro, mas não constrangeu a ABC. No mesmo dia 28, a notícia que dois dias antes havia recebido a rubrica “exclusivo” no World News Tonight não mereceu um comentário sequer. Casos como este ocorreram diversas vezes em outras emissoras norte-americanas, indica a Fair.
Fontes oficiais predominam na mídia
Em um outro levantamento, a Fair procura mostrar como a mídia dos Estados Unidos “ajudou” o presidente Bush a conquistar a opinião pública. Os dados, colhidos entre 30 de janeiro e 12 de fevereiro, num momento em que a Casa Branca lutava para obter apoio nacional de internacional para iniciar o ataque, demonstram que as maiores televisões do país priorizaram entrevistas com representantes do governo.
Em jargão jornalístico, diz-se que as redes “abriram o microfone” aos defensores da guerra. Ao contrário, personalidades que firmaram posição pela paz foram sumariamente banidas do noticiário.
Os autores da pesquisa examinaram as 393 fontes entrevistadas nos telejornais noturnos da ABC, CBS, NBC e PBS naquele período. Mais de dois terços delas (267 de 393) eram norte-americanos, dos quais 75% (199) políticos, membros do governo ou ex-membros alinhados com a posição oficial. Entre eles, apenas um entrevistado, o senador democrata Edward Kennedy, expressou oposição à guerra, em reportagem da NBC.
Em outra composição, 76% dos entrevistados (297 de 393), entre norte-americanos e estrangeiros, eram políticos, membros ou ex-membros de governos. E desse total, 75% (222) estavam alinhados com a Casa Branca ou a países que apoiavam as posições da administração Bush. Somente 4 entrevistados (ou 2% dos 222) opinaram contrariamente ao ataque.
A opinião do “outro lado”, tão pregada nos manuais de jornalismo, foi esquecida. Apenas 20 (7%) daquelas 297 fontes oficiais representavam o governo iraquiano. E só 19 (6%) guardavam relações com países em dúvida ou contrários à guerra. No período da pesquisa, apenas uma fonte, Catherine Thomason, foi identificada como integrante de uma organização antiguerra. Ela participava do grupo Physicians for Social Responsability.
Os dados apresentados pela Fair mostram que a mídia norte-americana trabalhou alinhada com a Casa Branca. E muitas vezes, o cidadão comum que ligou a TV às oito da noite para assistir ao noticiário acompanhou reportagens parciais e até mentirosas sobre o Iraque. Quanto isso pesou para a opinião pública firmar apoio a Bush, não dá para saber. Mas, como indica a Fair, que pesou, pesou.