Mezinhas para a crise: mais do mesmo nas redações

(Luciano Martins Costa

A renegociação da dívida do Grupo Estado com os bancos credores, bem encaminhada nos últimos dias, é o segundo item da lição de casa passada às empresas brasileiras de comunicação, no processo da adequação de contas que precisará ser apresentada ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no início de janeiro. Mas há quem entenda que o primeiro item – cumprido com o que os técnicos chamam de ajuste, os funcionários de demissão e a sociedade entende por exclusão – deixou a desejar. Não que os consultores da Galeazzi & Associados estejam sedentos por mais sangue. Apenas, segundo um observador interno, os cortes realizados nas redações nos últimos dois meses podem não fechar a conta como se deseja, dados os sinais de recrudescimento de gastos que se verificam no mesmo período.

A questão já levou às bordas de um ataque de nervos pelo menos um destacado integrante do grupo de executivos liderados por Alcides Tápias, Roberto D’Utra Vaz e Octávio Castello Branco: os antigos gestores, afastados de suas funções, continuam autorizando ou, pelo menos, tolerando iniciativas que afetam as contas. Como já se disse aqui em outra ocasião, uma espécie de síndrome de empresa pública ainda condiciona boa parte do staff que dirige a empresa, especialmente nos setores editorial e comercial. Fios invisíveis ainda ligam a família Mesquita a uma parte significativa desse grupo de profissionais, o que dificulta a tomada de decisões no sentido apontado pelos consultores.

Além disso, o persistente vício do centralismo torna mais lenta a aprovação de projetos que poderiam estar produzindo receita neste final de ano, época propícia à venda de patrocínio para projetos editoriais mais alentados. Um desses projetos, elaborado ainda em junho, dorme em alguma gaveta e adia a realização de um potencial de receita próximo de 1 milhão de reais, quantia nada desprezível quando se considera que o custo anual do portal Estadão não chega a dez vezes esse valor.

Interesse crescente

A situação é menos grave no Grupo Folha da Manhã, onde a decisão passa por um número menor de instâncias e a recente reciclagem de executivos vem produzindo uma injeção de novas idéias que deverão surpreender o mercado no início do ano. Com mais agilidade, embora considerado por alguns analistas como de menor potencial no longo prazo, o título Folha de S.Paulo costura uma estratégia de parcerias que podem desaguar numa aliança mais consistente do que aquelas que foram firmadas com os grupos Abril e Globo.

Mais uma vez, como tem acontecido nos últimos dez anos, a empresa dos Frias pode sair na frente do Estadão já no primeiro trimestre de 2004. O sonho de comprar a Folha, embalado numa noite de verão de 2001 pela família Marinho, foi apenas um sonho... de uma noite de verão. Escaldados pelas dificuldades para consolidar o jornal Valor Econômico – cuja tiragem anunciada ainda é motivo de questionamentos em outras casas de imprensa –, os donos do Grupo Globo recolhem o talão de cheques e constatam pela via mais difícil que, como dizia Tom Jobim sobre o Brasil, São Paulo não é para principiantes. E, como há dez anos, a melhor saída do grupo ainda é a Via Dutra.

Afora os boatos de que o ex-governador Orestes Quércia estaria reagrupando suas tropas para entrar no jogo, é fato concreto que pelo menos um banco europeu esteve até pouco tempo interessado em fazer valer a autorização para venda de até 30% das empresas nacionais de comunicação para investidores estrangeiros. Seu interesse estava dirigido ao Grupo Estado, com foco específico na Rádio Eldorado – que agora quer ser chamada de Eldorado Estadão porque um desses gurus da propaganda convenceu João Lara Mesquita de que a marca precisa ser vista à sombra do jornalão. Puro palpite, não partilhado pelos chamados advisers que tentaram fazer decolar a negociação.

A proposta nem chegou a ser colocada sobre a mesa porque os mediadores ficaram convencidos de que a negociação só poderia prosseguir se tivesse antes o respaldo de um acionista com muita bala na agulha. Tal personagem, informado do interesse dos investidores, simplesmente saiu de cena e nunca respondeu à sondagem.

É nesse cenário que o ano se aproxima do final, com sinais claros de um primeiro trimestre muito mais otimista para 2004. Aos dez anos da estabilidade monetária – mesmo que remendada por uma forte dissimulação de taxas inflacionárias e persistente queda no nível de renda da maioria da população – a economia nacional atrai a atenção de investidores e toma mais tempo dos dirigentes de multinacionais com interesses na América do Sul.

É bastante significativo o fato de algumas consultorias terem recebido mais encomendas de análises do cenário brasileiro nos dois últimos meses do que em todos os oito meses anteriores, desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Também é relevante observar o crescente interesse da imprensa econômica internacional nos indicadores brasileiros e em reportagens mais analíticas sobre as chances do governo Lula de consolidar o processo de estabilização. O desempenho de filiais brasileiras de empresas de tecnologia e energia, por exemplo, tem merecido atenção em publicações internacionais, como se depreende das análises de clipping em outubro e novembro.

Pacto de sangue

Em resumo, o último trimestre do ano projeta uma visão otimista, que pode trazer mais animação para os anunciantes e, por conseqüência direta, mais folga de caixa para as empresas de comunicação. E aí justamente é que mora o perigo: com menos da metade da lição de casa realizada, os gestores da nossa mídia podem cair na tentação de acreditar que basta o que foi feito – pouco ou nada mais do que a velha e equivocada reengenharia – e acreditar que o jogo está ganho.

A situação lembra certo momento da agonia do quase presidente Tancredo Neves, quando os jornalistas de plantão na frente do Hospital das Clínicas, premidos pelo horário de fechamento e sem notícias oficiais, tentavam criar a manchete do dia seguinte: divididos entre os que acreditavam nos boletins oficiais e aqueles que consideravam o anúncio do óbito apenas uma questão de conveniência política, os profissionais só chegaram a um acordo quando um repórter de Veja decretou: "O presidente morreu, mas passa bem" .

É voz corrente entre consultores e analistas – entre os quais se pode citar, por sua posição inequívoca, o ex-diretor superintendente do jornal O Dia, do Rio, Fernando Portela –, que, para se tornarem atraentes aos olhos dos investidores, as empresas de comunicação precisam se revelar capazes de gerar um Ebitda (lucro antes de impostos, juros e amortizações) de 25% a 30%. As ruidosas comemorações de um mero empate, gestado à custa da sangria na carne das redações, indicam que estamos muito longe dessa realidade necessária. O perigo que nos traz um cenário otimista é justamente o de sermos convencidos de que o pior já passou e que se pode salvar as empresas de mídia com o mesmo remédio que quase as matou.

Em nenhuma das nossas principais casas de imprensa se observam sinais de inovação real, ou de um questionamento produtivo – com a geração de alternativas – do modelo de negócio que se revelou fracassado. A criação de conselhos disso e daquilo, sem definição clara de papéis e com a perversa mistura entre gestores e acionistas, estes sem qualquer classificação quanto a proporções que representam sobre o patrimônio, mantém o velho estilo de decisão cujo resultado conhecemos todos. A situação assemelha-se ao que gostava de dizer um profissional que já chefiou algumas das nossas mais respeitáveis redações, lembrando a recorrente manchete do falecido diário Notícias Populares, referindo-se a certas discussões das quais participava: "Estamos menos para um acordo de cavalheiros e mais para um pacto de sangue entre anormais".

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