“Outro lado é uma mentira”

(José Paulo Lanyi - www.comunique.com.br)  

Sérgio Kalili não foi ao Iraque só para trabalhar. “Eu escolhi o povo iraquiano”, diz o repórter que questiona um preceito basilar do jornalismo contemporâneo: ouvir o outro lado. Heresia, dirão alguns; hipocrisia, responderá. “Sou antiadministração Bush e a política de desinformação da administração Bush. Sou contra a política externa americana, que fica brincando no mundo como se fosse um jogo de xadrez. Sou antiimperialista, antiglobalização, que faz a gente ter desigualdade”.

Kalili passou cerca de setenta dias no Oriente Médio, como correspondente do site AOL, no Iraque e no Irã, e da revista Reportagem (de Raimundo Pereira, ex-diretor dos jornais Opinião e Movimento), no Irã. Escreveu também para a revista Caros Amigos.

O único correspondente brasileiro a demorar-se no Iraque, em meio à ocupação americana, percorreu as localidades de Bagdá, Tikrit, Falluja, Samarra e Najaf, entre outras. A foto ao lado, de sua autoria, mostra uma pausa “turística” dos soldados americanos no esconderijo de Saddam Husseim.

Cobriu também o terremoto na cidade iraniana de Bam. Aproveita a entrevista para fazer um reparo: “A gente tem que acabar com essa história de que o iraniano é fundamentalista, fanático. Isso é uma outra mentira. Tem iraniano que é menos religioso do que muita gente aqui. Tem gente que nem vai na mesquita. É como qualquer outro país. Só que eles são um país islâmico, nós somos um país católico”.

Entrevistou guerrilheiro no Iraque; no Irã, fingiu que era casado para poder ficar no hotel, onde dividiu a cama de casal com uma repórter-fotográfica americana. 

Voltou ao Brasil no domingo. Hoje (08/01) faz 35 anos.

Kalili considera-se um “jornalista de direitos humanos, de casos sociais”. Por quê?, pergunto eu. “Por causa dos temas humanos que escolho. Violência urbana no país, fome no mundo, miséria no Vale do Ribeira, a juíza ameaçada em Patos de Minas porque estava tentando buscar justiça para os trabalhadores rurais, o médico que era chamado de Dr. Quixote porque lutou contra toda a categoria dele, contra uma coisa chamada Máfia de Branco”. 

Mas jornalista não deveria mesmo se ocupar dessas coisas? “Seria legal se todos os jornalistas tivessem um perfil mais humano, mas a gente também precisa de jornalista em outras áreas, senão ia ficar muito chato”.

Ele é filho de Narciso Kalili, grande repórter da revista Realidade, na década de 60, um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. O pai se foi em 1992. O filho tem-no como exemplo moral, como você verá logo mais.

Carreira

Sérgio Kalili formou-se em Jornalismo pela PUC-SP, em 93. Começou a trabalhar dois anos antes, como rádio-escuta da Jovem Pan. Logo depois, foi, por três anos, produtor-assistente, editor e repórter do “Globo Ciência”, na produtora Ver & Ouvir. Em 94, ganhou uma menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog, por sua reportagem “Fome”, sobre a desnutrição de crianças de até cinco anos.

Em 96, passou a produzir o “CBN Campo”. Integrou, ainda, o projeto da Rádio Globo Rural. A iniciativa foi abortada, mas Kalili permaneceu com o programa na CBN. Em 97, venceu o Prêmio Vladimir Herzog por sua reportagem “Vale do Ribeira” para o “CBN Campo”.

Escreve para a Caros Amigos desde o surgimento da revista. Foi o primeiro a entrevistar o quase sempre inacessível Mano Brown, em 97. Até então, o rapper tratava a imprensa a monossílabos, nas coletivas. Deu capa. No ano seguinte, o making-of da entrevista foi publicado na revista Exame Vip (em maio de 99, o texto seria finalista do XXIV Prêmio Abril de Jornalismo).

Além da entrevista com Mano Brown, dois outros artigos viraram capa da Caros Amigos: um, enviado de Nova York, em 2002, sobre os movimentos antiglobalização; o outro, exclusivo, em 2003, sobre o relatório de execuções sumárias no Brasil.

Kalili foi correspondente da Caros Amigos nos Estados Unidos, de 99 a 2002. Em março de 2003, ficou dez dias no Iraque, no limiar do conflito. O dinheiro acabou, teve de voltar um dia antes do início da guerra.  

Seguiu escrevendo para a Caros Amigos. Após a explosão do prédio da ONU em Bagdá- com a morte de Sérgio Vieira de Mello-, acertou com João Wadih Cury, diretor de conteúdo da AOL, a cobertura da ocupação do Iraque. “Fui para ficar duas semanas e acabei ficando mais de dois meses”.

Forçou a mão nas reportagens, como diz na entrevista a esta coluna. Gozou de sua independência relativa. "Consegui fazer isso na AOL porque tinha o João Wadih Cury, mas tinha um limite, não pude ir tão longe quanto eu vou quando estou na Caros Amigos, por causa do público deles [AOL] e porque é uma empresa da grande imprensa. Mas consegui ir bastante longe, tanto que tinha muita gente que ficava escrevendo dizendo que eu era antiamericano”.

Não se iluda com o tom rebelde. O humor é inalterável, sempre pra cima. Às vezes chega a destoar do conteúdo. Sérgio Kalili é um bom-papo.

Link SP- Como foi a influência do seu pai na sua carreira?

Sérgio Kalili- Mais do que o jornalismo, a minha atitude, as minhas opiniões críticas, tentando ser independente e justo, vêm basicamente dele, ele era assim. Até esse negócio de jornalismo ter lado, de escolher um lado. Você não consegue ser isento, não existe isso, você escolhe um lado para defender. Simplificando, é claro que as coisas não têm um lado só, você defende aquela situação escolhida através das suas matérias durante a sua vida toda, sempre batalhando. Por exemplo: na guerra eu escolhi o povo iraquiano, eu tento defender o povo iraquiano, sou contra a presença americana num país que não é o deles.

Link SP- Ao escolher um lado, você não corre o risco de forçar a mão?

SK- (sorri) Corro e forço mesmo.

Link SP- Mas isso não implica um desequilíbrio no trato da informação...

SK- Equilíbrio é relativo...

Link SP- ...no aspecto de que não existe apenas uma verdade? Você pode até escolher um lado, desde que também ouça o outro lado. Ou não? Ou não precisa ouvir o outro lado?

SK- Não, porque é uma mentira isso, a mentira da imparcialidade. Você vai ouvir o outro lado só para disfarçar a sua opinião. Você sempre vai reforçar mais um dos lados. Até a ordem em que você coloca as declarações dos dois lados. O tempo todo você vai jogar, editar, colocar uma versão da história.

Link SP-  É uma hierarquização.

SK- Existe sempre. Não existe esse negócio de ser imparcial. Mas existe independência. Você pode ser independente, mas parcial.

Link SP- Você não é independente do veículo.

SK- Se você é muito, te expelem fora do veículo (risos). Você vai até um limite.

Link SP- Então não é uma independência.

SK- Depende da situação, onde você está trabalhando. Por exemplo, eu estou trabalhando para a AOL. Eu tenho contrato no Iraque. Eu tenho independência total, teoricamente. Mas o que acontece? Eu estou escrevendo e me pautando. A gente até fez uma pauta prévia, mas chegando lá a história muda, você faz algumas coisas da pauta, mas vai fazendo outras coisas que vão aparecendo e que parecem ser mais interessantes. Com independência. Afinal, a gente tinha um contrato de independência, eles sabiam quem eu era. Mas tem o limite. Eu escrevi uma matéria, por exemplo, sobre abusos de direitos humanos cometidos por soldados americanos no Iraque, e eles não quiseram colocar. Eu dei para a Caros Amigos. Então, tem esse limite. Mas eu não mudei, continuo sendo o Sérgio Kalili.

“Americanos fecham jornais”

Link SP- Como está a cobertura da ocupação do Iraque?

SK- A gente tem um controle total da imprensa internacional. Os jornalistas iraquianos que estão lá trabalhando são presos direto e somem. As tropas americanas prendem os caras e somem com eles. As famílias não sabem onde eles vão parar, as empresas... Eles denunciam algumas coisas, os caras pegam e somem com eles. Eles são iraquianos.

Link SP- Prendem por quê?

SK- Porque o cara vai lá e escreve uma matéria dizendo que as tropas americanas mataram tantos jovens que estavam protestando num bairro de Bagdá chamado Aadhamyia, onde eles são antiamericanos, são anticoalizão. Fecharam jornais iraquianos. Depois que os americanos dominaram o país, abriram mais de 150 jornais. Muitos que fazem oposição foram fechados pelos americanos. Eles censuraram, fecharam jornal. Ninguém fala isso.

Ser iraquiano no Iraque hoje em dia é não ser cidadão. É melhor ser estrangeiro, americano. Ou você [iraquiano] é colaborador deles, e aí eles te dão uma força. Por que a imprensa internacional não fala nada? Repórter americano se autocensura porque desde pequeno aprende a ser patriota e não vai fazer nada que seja contra o próprio país. De modo geral, é isso que você vê na TV. E a gente compra tudo de agência, né. Aí você vê como é importante, por exemplo, ter um brasileiro lá dentro. A gente não ia cobrir a favor de nenhum deles.

Link SP- E o europeu?

SK- O europeu não conhece a história de tortura e de abuso da política internacional americana na Ásia e na América do Sul e Central como a gente conhece. A gente teve o Chile, a Argentina, o Brasil, El Salvador, Nicarágua, Cuba. A gente sabe que os caras torturam, abusam, matam, fazem guerra suja, apóiam ditador e terrorista para conseguir os objetivos deles. Oferecem dinheiro mesmo, contratam bandido. A CIA está de volta aí com autorização para matar, como tinha antigamente, na época dos anos 70 até 80. O europeu não acredita nisso. “Ai, você acha que o americano vai torturar? Não vai. Eu não acredito. Só vendo”.  O cara quer ver o cara sendo torturado, na frente dele. E aí você vê que três soldados foram afastados por tortura, por abusar dos prisioneiros. Mas você vê isso na mídia porque o exército falou. Quando o exército fala, eles acreditam. Mas quando o povo iraquiano fala, é apenas rumor, não vale a pena colocar. Por isso é importante mandar gente lá, não adianta ficar pegando de agência. Vê como é diferente você ter uma pessoa do seu país lá, a sua empresa mandar um repórter lá. É mais caro? É. Mas é muito melhor do que você ficar comendo de agência, com a cabeça dos caras.

Janeiro de 2003

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