Eram
quase seis horas da manhã quando começaram a chegar os primeiros ônibus a
Uruguaiana. Os termômetros marcavam quatro graus. A chuva insistia em molhar
aos resistentes que aguardavam na fila do café. Gente de vários locais do
estado. Sindicalistas, estudantes, militantes por uma vida melhor. Trabalhadores
das mais diferentes categorias. O Largo da Viação Férrea ficou lotado com os
84 ônibus que se deslocaram de todo o Estado. Na manhã fria e chuvosa do dia 2
de agosto, brasileiros, uruguaios e argentinos gritaram em uma só voz: Não à
Alca! Sim à Soberania dos nossos povos!
A
7ª Marcha dos Sem percorreu as principais ruas de Uruguaiana até a Ponte
Internacional que une Brasil e Argentina. A cidade parou para ver a marcha
passar. Muitos gestos e acenos demonstraram o apoio da população, que vive na
carne os efeitos da crise do país vizinho. Na noite anterior, a imprensa já
anunciava a decisão da Polícia Rodoviária Federal de interromper a ponte
durante a manifestação.
Marcha
internacional
Pela
primeira vez, a Marcha dos Sem, realizada desde 1996, teve um caráter
internacional. As três centrais sindicais, CUT (Central Única dos
Trabalhadores), CTA (Central de Trabalhadores da Argentina) e PIT-CNT (Plenária
Intersindical de Trabalhadores/Confederação Nacional de Trabalhadores do
Uruguai) se uniram para combater a implementação da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca).
Após
duas horas de marcha, os cerca de 8 mil participantes brasileiros se encontram
com os 2 mil argentinos que cruzaram a ponte internacional. Abraços e emoção
marcaram este momento histórico que, com certeza, ficará registrado nos corações
e mentes dos que lá se encontravam. Já os trabalhadores uruguaios não puderam
comparecer em grande número. A decretação do feriado bancário, o corralito e
a explosão dos saques a supermercados e estabelecimentos comerciais na noite
anterior impediu que a central organizasse uma grande participação. O
representante da PIT-CNT Luís Romero disse que o FMI está matando de fome os
trabalhadores latino-americanos. Segundo ele, se há saques no Uruguai é porque
os trabalhadores não têm o que comer. "A Argentina está quebrada. As
privatizações levaram o país à miséria e ao desemprego. E nós não estamos
longe disso", concluiu.
Ato
Público na cabeceira da Ponte
O
presidente da CUT Nacional, João Felício, abriu o Ato Público na cabeceira da
Ponte Internacional. Ele destacou que é a partir
de atos como a Marcha dos Sem que nós vamos construir a solidariedade necessária
na América Latina. “Esse ato aqui é apenas o início de uma grande mobilização
nacional.” Segundo ele, a próxima tarefa dos movimentos sociais é organizar
o Plebiscito Nacional sobre a Alca, de 1º a 7 de setembro. “A nossa esperança
não é somente fazer que os trabalhadores dêem seu voto contra a Alca, mas é
organizarmos milhões de trabalhadores que ainda não sabem que a Alca vai
trazer desemprego e o fechamento das indústrias brasileiras, argentinas e
uruguaias”, destacou.
O
vice-governador do Estado, Miguel Rossetto, também participou do Ato Público.
Segundo ele, a Alca é um projeto de recolonização inaceitável para os nossos
povos. “A Alca retira qualquer possibilidade de futuro, destrói a nossa
capacidade produtiva, amplia o desemprego e elimina a chance democrática de
construirmos a partir de bases populares um futuro melhor para todos nós.”
Classe
trabalhadora é internacional
O
presidente da CUT/RS, Quintino Severo, encerrou o Ato Público conclamando a
todos a se engajar no Plebiscito da Alca. “Nós precisamos transformar esse
momento da vida brasileira num grande ato de defesa da soberania, da nossa pátria
e do nosso povo. E é por isso, que a nossa tarefa, a partir de hoje, é
construir um grande plebiscito no Brasil. E depois na Argentina e no Uruguai e
em toda a nossa América. Porque para nós a classe trabalhadora é
internacional, portanto não tem fronteira que irá impedir a unidade dos
trabalhadores.”
As
três centrais sindicais lançaram durante o Ato a Carta de Uruguaiana onde
rechaçam a Alca e o projeto neoliberal e defendem um Mercosul solidário. Leia
a seguir.
Carta
de Uruguaiana
No
dia 2 de agosto de 2002, as centrais sindicais CUT (Brasil), CTA (Argentina) e
PIT-CNT (Uruguai), reunidas em Uruguaiana para a 7ª Marcha dos Sem, afirmam:
1-
Após décadas de ditaduras militares que cercearam nossa liberdade de expressão,
financiadas pelos EUA, continuamos tendo que nos submeter aos ditames deste país,
agora pela ditadura do mercado. Denunciamos e rechaçamos as políticas
impulsionadas pelos governos de nossos países, expressão dos interesses dos
setores beneficiados pela estratégia neoliberal. Estes são aliados à política
hegemônica do governo norte-americano e dos organismos financeiros
internacionais que têm marginalizado cada vez mais amplos setores sociais.
Entregam nossos recursos estratégicos aos monopólios transnacionais, pondo em
perigo nossas soberanias e nossas viabilidades como nações.
2-
Denunciamos a recolonização do hemisfério através de um processo que tem três
grandes vertentes: econômica (com a implantação da Área de Livre Comércio
das Américas – Alca); militar (com a ocupação da Amazônia); e cultural
(com a destruição do que ainda resta de centros de pesquisa e de ensino
superior público). Esse processo, já bastante avançado, foi ainda mais
acelerado após o atentado de 11 de setembro. E, para realizá-lo, os EUA contam
– salvo poucas e honrosas exceções
– com a “docilidade” de governos nacionais servis e com a ajuda da
“grande imprensa” latino-americana.
3-
A Alca é suicídio. O acordo tem a aparência de um projeto que, de um ponto de
vista empresarial, poderia impulsionar as economias nacionais do hemisfério (34
países, exceto Cuba, cuja participação, por alguma razão misteriosa, foi
vetada por Tio Sam). A abertura das fronteiras ao livre fluxo de capitais, bens
e serviços funcionaria como dínamo para gerar empregos, impulsionar pesquisas
tecnológicas, promover o trânsito de pessoas, aproximar nações. Na prática,
a história é bem outra. O PIB (Produto Interno Bruto) dos Estados Unidos soma
cerca de 11 trilhões de dólares, equivalente a 22 PIBs do Brasil (meio trilhão
de dólares) e quase quatro vezes os PIBs somados dos outros países das Américas,
incluindo o Canadá (cerca de 3 trilhões de dólares). A Alca significaria a
anexação dos mercados das Américas aos Estados Unidos. O óbvio resultado será
um massacre.
4-
O detalhe é que toda estratégia da Alca, do ponto de vista da Casa Branca, está
particularmente endereçada a “capturar” o Brasil. Basta somar dois mais
dois. A Argentina já foi destruída, após dez anos de submissão total ao FMI.
O governo argentino seguiu à risca os mandamentos do “Consenso de
Washington”: privatizou tudo, liberou as importações de forma indiscriminada
e se entregou ao capital externo, atrelando o valor do peso argentino ao dólar
americano, e desorganizando por completo sua economia. O resultado foi
desastroso: explosão da dívida pública, comprometimento do futuro do país e
extrema dependência. Diante da situação desesperadora em que se
encontra a Argentina, o primeiro a lhe virar
as costas foi o próprio FMI, que nega novos empréstimos. A situação do
Uruguai não é diferente da de seus vizinhos. Também passa por um processo de
privatizações e dependência do capital externo e, agora, o governo ainda impõe
ao povo, a retenção de suas contas bancárias.
5-
As centrais sindicais reforçam a defesa de uma integração autêntica,
conforme já manifestado na Cúpula Sindical da
Coordenação de Centrais Sindicais do Cone Sul, realizada em dezembro de 2001,
na cidade de Buenos Aires, onde afirmaram que outro Mercosul é Possível, com a
construção de uma integração solidária entre os povos. Afirmam trabalhar
para a ampliação e aprofundamento da democracia, ameaçada por forças políticas
de direita, que tendem em nível regional colocar falsas contradições que
objetivam mostrar os movimentos sindical e social como forças
desestabilizadoras, ocultando o confronte entre dois projetos: um impulsionado
pelo bloco de poder dominante – neoliberal – e o outro alternativo, construído
pelos forças sociais e democráticas de nossos povos.
6- Por último, a CUT, a CTA e a PIT-CNT reiteram e reafirmam em este Ato Público que somente a unidade e a organização dos trabalhadores da América Latina farão possível uma nova realidade para os nossos povos. Lutamos para construir uma nova sociedade baseada nos pilares da liberdade, da democracia, da justiça e da solidariedade.