O velho e bom Jornal Nacional continua mau

(Sérgio Domingues)

O IBGE anunciou que existem no Brasil 54 milhões de brasileiros ganhando metade de um salário-mínimo. O Jornal Nacional (com ajuda da ONU) atribuiu o problema à falta de planejamento familiar. De quebra, escondeu as responsabilidades de FHC e ainda atacou sutilmente o projeto Fome Zero

No dia 3 de dezembro de 2002, foi ao ar uma reportagem especial do Jornal Nacional, que recebeu o título “Falta planejamento familiar”. A matéria relaciona a miséria à elevada taxa de natalidade nos seguintes termos: “O IBGE apresentou hoje, no Rio de Janeiro, um relatório das Nações Unidas sobre a miséria no mundo. E confirmou uma tese: a de que a miséria está intimamente ligada à falta de planejamento familiar. O estudo mostra também que um terço dos brasileiros vive com menos de R$ 100 por mês.”

Nessa simples chamada, o JN comete suas costumeiras manipulações, mesmo que estejam ficando cada vez mais sutis.

Trocando 54 milhões por 1/3

Primeiro, notem que a chamada dá ênfase primeiro à pretensa idéia de que a miséria estaria intimamente relacionada à falta de planejamento familiar. Somente depois menciona o dado mais grave: “um terço dos brasileiros vive com menos de R$ 100 por mês.” Além disso, o redator teve o cuidado de omitir o número absoluto de brasileiros que ganham meio salário-mínimo, trocando os 54 milhões divulgados pelo IBGE pela expressão “um terço dos brasileiros”, menos assustadora.

O segundo aspecto da questão não é de responsabilidade total do JN. A tese de que “a miséria está intimamente ligada à falta de planejamento familiar” anunciada pelo IBGE e Nações Unidas está longe de ser pacífica. Afinal, desde os tempos de Malthus essa explicação é utilizada pela direita para justificar a injustiça social atribuindo aos próprios miseráveis a responsabilidade por sua situação. Mas essa tese vem sendo refutada desde que Karl Marx escreveu O Capital e mostrou que o capitalismo proporciona uma produção de alimentos e outros bens essenciais em quantidade suficiente para a população mundial. O problema é a distribuição, que acontece sob o imperativo do lucro. Ou seja, os bens essenciais para a vida humana somente chegam a quem deles necessita se proporcionarem a devida margem de lucro a seus vendedores. Caso contrário, alimentos, roupas, utensílios em geral vão para o lixo.

O problema é que 90% dos telespectadores não sabem disso. Além do mais, o crescimento populacional é uma explicação facilmente aceita pelo senso comum. Afinal, a reação imediata da grande maioria de nós ao ver crianças maltrapilhas é responsabilizar seus pais e nos perguntar “pra que pôr filhos no mundo e abandonar?”.

Em terceiro lugar, o modo como a questão é apresentada reforça ainda mais idéia de que a responsabilidade dos pobres por sua própria miséria é sua fertilidade exagerada. Um dos trunfos dessa forma de apresentar o problema é utilizar exemplos, de preferência contrapostos. Na edição do JN que estamos discutindo, a reportagem apresenta a “dona de casa Valéria Pereira e seus seis filhos, que vivem de doações (não seriam esmolas?), na periferia do Rio. A família, numerosa, nunca foi planejada, continua a reportagem. E só agora Valéria descobriu o que é anticoncepcional.” Temos aí o exemplo do pobre. Agora vem o exemplo do casal de classe média: “Casamento, só depois do emprego garantido. E o primeiro filho, que nasce daqui a cinco meses, teve que esperar a compra do apartamento”, diz a administradora Gabriela Magluta ao lado do marido.

Em trinta segundos, a Globo convence que a pobreza é culpa dos pobres

Esse expediente deixa a questão muito concreta. Enquanto gastamos litros de saliva e de tinta para expor motivos racionais para a injustiça social, o JN vem com uma reportagem bem feitinha, com jeito de isenção e seriedade e em 30 segundos convence que os pobres são pobres porque não usam pílula ou camisinha.

Mas claro que o Jornal Nacional não abordaria um problema dessa envergadura sem citar os números do IBGE. Mas antes disso, fez questão de mostrar a miséria no mundo. “Em todo o mundo, três bilhões de pessoas vivem com menos de R$ 7 por dia.” Aí, apresenta o genial diagnóstico da ONU: “para combater a pobreza no mundo, é preciso enfrentar as conseqüências do aumento da população. (...) Quanto menor o número de pessoas, diz a ONU, maior a renda de uma família.” Ou seja, a conta é simples. Se sua renda familiar é de R$ 200,00, o problema não é a vergonha que representa uma renda minúscula como esta, mas com quantos você terá que dividi-la. Com um filho, dois filhos, três, quatro... Esta aí a raiz do problema diz a ONU: a distribuição de renda dentro de cada barraco! E a Globo, claro, repete feliz esta pérola de raciocínio.

Mas íamos quase nos esquecendo e, parece, o JN também. Finalmente, a reportagem anuncia o número mais importante dessa história toda. São os 54 milhões de pessoas que, no Brasil, vivem com menos de R$ 100 reais por mês e os 18 milhões que moram em lugares onde não há água, esgoto ou coleta de lixo.

Os números vergonhosos são citados, mas não em um tom de desaprovação em relação ao governo que felizmente termina. Não. A conclusão da reportagem é bem outra: “segundo o relatório da ONU, as pessoas pobres no Brasil e no mundo precisam hoje de bem mais do que um prato de comida. ‘Elas precisam de emprego, acesso de educação para desenvolver sua família, e para melhorar a sua situação’, diz a representante da ONU, Rosemary Barber-Madden.”

Pois é. Tudo isso para insinuar que o projeto Fome Zero é pouco, não dá, melhor nem começar, porque não vai funcionar. Tudo isso, sem nem tocar na responsabilidade da chamada Era FHC nisso tudo. Isso é que é jornalismo com a marca Globo, nénão?

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