Muito
além da Tevê Globo
(Antonio Hohlfeldt)
Contudo,
na noite do dia 2, um telefonema do Secretário de Cultura do Estado de São
Paulo, Ricardo Ohtake, dirigido ao programador do MIS, jornalista Geraldo Anhaia
Mello, cancelava aquelas apresentações. Formava-se, imediatamente, uma espécie
de cadeia pirata em todo o país - novas cópias do vídeo foram produzidas e
distribuídas Brasil afora, e alguns dos principais sindicatos começaram a
programar a exibição do documentário. As versões sobre a proibição variam:
Ohtake garante que não havia porque proibir, a não ser pelo fato de se tratar
de uma fita pirata. Anhaia, ao contrário, acusa diretamente a intervenção de
Roberto Marinho, a subserviência do governador de São Paulo de então e do seu
Secretário de Cultura. Há consenso, porém, numa coisa: não fora esse episódio
e talvez o filme - que no exterior provocava batalha jurídica de mais de um ano
da Globo contra o Canal 4 da BBC, tendo a Globo perdido a causa - não se
tornasse tão conhecido, tão debatido, tão comentado quanto foi então. O
processo se completa agora: a editora Scritta acaba de publicar a transcrição
do roteiro do documentário, ilustrado por algumas de suas imagens. A edição
traz um depoimento do próprio Geraldo Anhaia de Mello, responsável pela mesma.
Do ponto de vista brasileiro, é o mais recente, e felizmente já relativamente
antigo episódio de tentativa de censura em nosso país. É claro, contudo, que
a questão vai mais além do que isso, porque envolve a discussão em torno da
própria política nacional de comunicações e, muito especialmente, os critérios
pelos quais se concedem, mantém e renovam as concessões de canais de rádio e,
sobretudo, de televisão. O título - Muito Além do Cidadão Kane - tal como se
traduziu o livro que agora se lança, faz alusão direta à personagem criada
por Orson Welles, em seu famoso filme, por seu lado referência direta ao
magnata das comunicações dos Estados Unidos, William Randolph Hearst, cuja
filha, décadas depois, envolver-se-ia com a guerrilha urbana. Na época, Hearst
constituía-se em verdadeiro mito, e o filme de Welles tornou-se uma das dez
obras-primas cinematográficas.
Beyond
Citizen Kane tem sido normalmente divulgado como sendo o documentário em torno
da Televisão Globo e de seu multipoderoso proprietário, Roberto Marinho. Na
verdade, a primeira observação que se deve fazer a respeito é que sua atenção
se encontra centrada em Marinho e na TV Globo apenas porque ela é a exemplificação
mais cabal e radical da experiência da política de telecomunicações
brasileira. Simon Hartog, porém, queria ir mais longe, e de fato foi, como o
reconhece o próprio Anhaia: o que se pretende é denunciar a maneira palaciana
pela qual Marinho ou Bloch, Sílvio Santos ou Saad, cada um pegou a sua fatia.
Mais que isso, e certamente os livros que se têm lançado recentemente sobre
Samuel Wainer e Assis Chateaubriand bem o evidenciam, Marinho não agiu
diferentemente de como agiria qualquer um dos outros dois.
Acontece
que Marinho foi menos amador que os demais ou, quem sabe, o sistema capitalista
no qual se acha hoje inserido o Brasil é mais cínico e eficiente do que
aquele, ainda primário, experimentado pelas duas outras personagens. Portanto,
o que se deve ter claro, desde logo, é que Marinho não é nem pior nem melhor
que Wainer, Chateaubriand, Saad, Bloch ou qualquer outro. Foi, apenas, mais
competente e eficiente, alcançando melhores resultados em suas manobras. O episódio
que culmina no papel da Globo em nossa realidade, contudo, tem de ser
compreendido em sua perspectiva macro, ou seja, enquanto superestrutura social,
política e econômica que viabiliza tais situações, envolvendo desde a
ingenuidade de alguns segmentos sindicais e de ativistas de esquerda, que
imaginaram democratizar a política de concessões de canais de rádio e televisão
quando retiraram a decisão exclusiva do Presidente da República, repartindo-a
pelo Congresso Nacional, até os profissionais jornalistas que, a exemplo de
Armando Nogueira ou Vianey Pinheiro, só contam as verdades depois que foram
despedidos da emissora. Em última instância, é todo o conjunto da sociedade
nacional que, de fato, responde por essa situação, na medida em que,
conivente, dá à Globo aquilo que ela mais quer: a audiência que lhe garante o
poder da influência e negociação junto ao segmento político e
administrativo.
Lembremo-nos
que, paralelo ao controle censorial dos meios de comunicação, a ditadura
brasileira de 1964, a partir do Ato Institucional nº 5, em 1968, idealizou uma
espécie de movimento compensatório positivo: tratava-se de atender à demanda
do segmento da classe média brasileira que, embora nem tão numeroso assim, em
termos relativos da população nacional, era suficientemente significativo para
a indústria de bens duráveis que então compensava se instalar no país,
cobrindo de quinze a vinte milhões de pessoas e sendo superado, portanto,
apenas por alguns raros outros mercados, dentre os quais o norte-americano. De
qualquer maneira, justificava-se plenamente qualquer investimento, o que, aliás,
é a única explicação para que se compreenda os fenômenos que ameaçam
permanentemente o Plano Real, a chamada "bolha de consumo".
Havia,
pois, um duplo movimento - de um lado, o controle censorial e, de outro, a
cooptação mediante a ampliação das ofertas no mercado de consumo, ofertas
essas viabilizadas, em sua divulgação, através de um network tal como a Globo
o construiu ao longo dos anos. A Globo estreou no dia 26 de abril de 1965. Na
verdade, fora antecedida pelo sinal pioneiro da TV Tupi, em 1950, seguida pela
TV Excelsior em 1960. Duas emissoras e dois projetos absolutamente diversos: a
Tupi sucumbiria, em 1980, à queda do próprio império dos Diários Associados.
A Excelsior enfrentaria problemas no futuro, não tendo sua concessão renovada,
por ter tido a ousadia de resistir à ditadura. Transferida, numa espécie de
leilão, para o grupo Bloch e Sílvio Santos, abriria caminho para a TV Manchete
e o SBT. Iniciando-se com um empréstimo duvidoso mediante um ainda mais
duvidoso acordo operacional com o grupo norte-americano Time-Life, o que era
proibido pela legislação brasileira, a TV Globo aproveitaria, suspeitamente,
dois episódios, na aparência negativos, para seu crescimento, para firmar-se e
crescer: o primeiro foi, justamente, a decisão do Congresso Nacional em
dissolver o acordo da Globo com a Time-Life. Roberto Marinho não reclamou. Pelo
contrário. É provável que os norte-americanos, sim, tenham acabado lesados no
episódio, mas como sabiam perfeitamente os riscos que corriam, não chiaram.
O outro
episódio ocorre em 1969: um incêndio destrói as instalações da Globo em São
Paulo. A emissora centraliza o telejornalismo e toda a produção no Rio de
Janeiro, graças ao dinheiro obtido pelo seguro, e assim garante a ocupação da
magnífica sede do Jardim Botânico. De onde se depreende que Roberto Marinho é,
acima de tudo, um excelente empresário e se, num primeiro momento, teve o máximo
empenho em dar suporte e manter-se próximo ao segmento que identificava o
governo ditatotial, na verdade seu interesse ia bem mais longe: "a Globo não
tem uma vocação necessariamente militarista, ou ditatorial, mas ela tem uma
vocação governista. Onde tem governo está a Rede Globo" - afirma o
documentário, e pode-se verificar que, evidentemente, em sendo necessário
eleger o governo, como no episódio Collor de Mello, ou apoiar sua derrubada,
desde que isso signifique a garantia de seus investimentos e interesses
financeiros, a empresa não titubeia. Claro, contando com cinco estações
retransmissoras afiliadas, cobrindo 99,2% do território brasileiro ou 99,9% dos
aparelhos de televisão do país, garantindo uma fatia de 78% da audiência,
abocanhando 70 a 75% do total da mídia nacional que, no Brasil, na área de
televisão, ultrapassa os 50%, ou seja, mais de dois bilhões de dólares em
1990, a Globo não pode titubear sobre a política de seu interesse.
Se ao
governo federal a TV Globo interessa exatamente pelos fanáticos percentuais de
audiência que atinge, garantia de que a mensagem governamental chegará ao seu
destino, à Globo essa audiência lhe dá um poder de barganha inigualável,
transformando-a, literalmente, numa espécie de poder paralelo, maior que um
simples quarto poder como se tem conhecido a mídia em geral. Não se trata, porém,
da aplicação pura e simples da velha fórmula da teoria do projétil,
mecanicista. Dito mais claramente, não é apenas a questão de que a Globo diga
o quê devemos pensar ou sonhar. Mais grave é o poder de agenda, na acepção
do professor Donald McCombs, que torna hoje a Globo altamente perigosa. A Globo
diz sobre o quê devemos pensar, quais são os temas que devem ou não ocupar
nossas preocupações, tendo institucionalizado, para tanto, um discurso tautológico
que, estribado na qualidade - "padrão Globo"- na verdade vende sua própria
imagem, reforçando-a permanentemente. É o caso típico de programas como Globo
Repórter ou Fantástico, as promoções sociais de apelo umanitário que
assina, a construção cuidadosa de uma auto-imagem em que a credibilidade é o
apelo mais veiculado, mesmo que muitas vezes seja posto em dúvida por outros
segmentos sociais. O slogan "Globo e você, tudo a ver" como que
institucionaliza a common view, um modo comum de visualizar a realidade, de tal
forma que a audiência alcançada, e amplamente divulgada, como que
tautologicamente se mescla com o conceito de credibilidade: é como se pudesse
garantir que a Globo tem audiência porque tem credibilidade. Assim, mais do que
um quarto poder, a Globo se torna um Poder Oculto Supra-Real que substitui
outras instâncias das relações sociais, mediante a constante reelaboração
daquilo que Muniz Sodré já denominou de "simulacro", uma
super-realidade que distancia de tal forma a realidade original, que
simplesmente a retira de qualquer outra referencialidade: ainda que alguém
estivesse vendo um certo fato acontecer, só acreditaria nele à medida em que
isso fosse enfocado pelas imagens da televisão.
O mais
grave, contudo, é que hoje a própria Televisão Globo começa a se tornar um
meio para algo além de si mesma. São mais de cem as empresas dirigidas por
Roberto Marinho, segundo publicação recente, num total de vinte mil funcionários.
Este homem, que se diz jornalista e que começou em 1926, quando seu pai, Irineu
Marinho, fundou o jornal O Globo, aos 90 anos de idade, integrante da
Academia Brasileira de Letras, é dono de um conjunto de interesses que vão do
campo de saúde (com a Golden Cross) ao da própria infra-estrutura da comunicação
(como o episódio da NEC, do empresário Mario Garnero), atingindo hoje a
televisão por cabo e assim por diante. A Globo também já investiu em
emissoras no exterior e atualmente acança enorme lucratividade com a venda de
seus programas a dezenas de países, de Cuba à China, mesmo que gerando
problemas com o não-pagamento do chamado direito conexo de imagem, uma das
grandes polêmicas atualmente em nosso país.
Muito
além do Cidadão Kane, assim, seja em sua versão de vídeo, seja agora na versão
que chega ao livro, através do roteiro transcrito, presta ao Brasil esse bom
serviço: mais do que falar da Globo, fala-nos sobre os processos e emaranhados
que determinam a política de telecomunicações no Brasil. A Globo, na verdade,
é apenas uma conseqüência disso. Se entendermos com clareza tal situação,
conseguiremos, quem sabe, nos próximos anos, avançar na solução para esse
problema, modificando, passo a passo, a atual legislação. Se isso não
ocorrer, de pouco ou nada adiantará o encaminhamento de outros problemas
urgentes que o país enfrenta: continuaremos uma nação pela metade e,
portanto, também cidadãos pela metade .
Referência
Bibliográfica
1
MELLO, Geraldo Anhaia. Muito além do cidadão Kane. São Paulo: Scritta
Editorial, 1994.
Antonio Hohlfeldt - Professor FAMECOS/PUCRS e Doutorando em Letras/PUCRS
Agosto de 2003