Kissinger apresentou a Nixon um plano: “Ajudar determinados jornais e utilizar outros meios de comunicação no Chile para que falem contra o governo de allende”.
Já na campanha presidencial de Allende, no Chile, se dizia “El Mercurio miente”, para destacar a manipulação das notícias pelo principal jornal conservador chileno. Mas foi necessário esperar trinta anos – o tempo de o governo dos EUA desclassificar seus documentos secretos – para comprovar que eram mentiras financiadas em dólares.
Dos documentos da CIA e da Casa Branca surge com todos os seus detalhes como o jornal de Agustín Edwards foi patrocinado pelo governo norte-americano. Seu império midiático inclui, além de El Mercurio, um outro diário também de circulação nacional, Las Últimas Noticias, o principal vespertino de Santiago, La Segunda e uma dezena de jornais regionais.
Em setembro de 1970, quando os chilenos elegeram Salvador Allende presidente do país, Edwards era tido como o homem mais rico do Chile e o que seria mais afetado pelo governo de esquerda. O Congresso dos EUA já havia apurado que a CIA tinha entregue importante quantia de dinheiro para a empresa de Edwards, considerado “o mais importante canal de propaganda anti-Allende”.
Os documentos revelam que, antes mesmo que Allende tomasse posse, Edwards foi a Washington examinar com a CIA “o momento adequado para uma possível ação militar” para que Allende não assumisse o cargo. No livro O Preço do Poder, Seymour Hersh já havia relatado que Edwards dissera, um dia antes das eleições, ao então embaixador dos EUA no Chile, Korry, que “durante anos havia investido todos os seus recursos em novas indústrias e em processos de modernização e que, se Allende fosse eleito, se arruinaria”. Korry o tranqüilizou, dizendo que outro candidato – apoiado por El Mercurio – seria o verdadeiro vencedor, o conservador Jorge Alessandri.
O
preparo de um golpe
Assim que Allende venceu, Edwards pediu ao chefe da CIA no Chile, Henry Hecksher, que organizasse outra reunião com Korry, estritamente privada, fora da embaixada. Korry relatou posteriormente que “Edwards disse que queria me fazer uma única pergunta: ‘Os Estados Unidos estavam dispostos a fazer alguma coisa no plano militar, direta ou indiretamente?’ “ Korry diz que contestou: “Minha resposta foi não”.
Pouco depois, Edwards viajou aos EUA, onde se valeu de toda a influência que tinha entre amigos e altos funcionários próximos ao presidente Nixon. Em Washington, segundo relata Kissinger em seu livro Anos na Casa Branca, Edwards se hospedou na casa de Donald Kendall, presidente da Pepsi-Cola, um dos amigos mais próximos de Nixon e também um dos principais contribuintes de suas campanhas eleitorais. Com essa intermediação, Nixon ordenou que Kissinger e o fiscal geral John Mitchell se reunissem com Edwards.
Em 15 de setembro, os três se reuniram e Edwards os informou sobre a ameaça que Allende significava. Kissinger chamou o diretor da CIA, Richard Helms, e lhe pediu que se reunisse com Edwards. O memorando divulgado agora revela que Edwards queria orientar as operações encobertas dos EUA para um golpe militar que impedisse Allende de assumir a presidência. Segundo o decidido, a CIA subornaria deputados chilenos para que elegessem Alessandri no Congresso, dado que Allende não havia obtido 50 por cento dos votos e dependia de confirmação parlamentar. Alessandri renunciaria, o que levaria à convocação de novas eleições, em que seria candidato o presidente que terminava o mandato, Eduardo Frei.
Nixon ordenou a Helms, em 15 de setembro, no escritório oval da Casa Branca, que promovesse uma ação militar no Chile para impedir a posse de Allende, como alternativa preferida. “Talvez haja uma oportunidade em dez, mas salvemos ao Chile!... Não importam os riscos... Há 10 milhões de dólares disponíveis e mais se for necessário. É preciso trabalhar em tempo integral, com os melhores homens disponíveis”, conforme se lê nas notas manuscritas do diretor da CIA transcrevendo as instruções de Nixon.
El
Mercurio entra no jogo
Apesar dos esforços prévios, Allende foi ratificado pelo Congresso depois que fracassou uma tentativa de seqüestro do comandante-chefe do Exército chileno, que resistiu e foi assassinado, numa ação que se pretendia atribuir à esquerda, mas que o MIR descobriu ser de direita. Três dias depois, Nixon convocou o Conselho Nacional de Segurança para discutir uma estratégia global para prejudicar Allende e, nas palavras de William Rogers, subsecretário de Estado, “derrubá-lo”. No mesmo mês ainda, Kissinger apresentou a Nixon um plano de cinco pontos relativo a operações da CIA desenhadas para desestabilizar Allende. Seu quarto ponto propunha: “Ajudar determinados jornais e utilizar outros meios de comunicação no Chile para que falem contra o governo de Allende”.
Antes mesmo da posse de Allende, o embaixador dos EUA havia pressionado um dos credores norte-americanos de El Mercurio, o First National Bank (NCB), para que se mostrasse indulgente diante das dívidas de Edwards. “Eu lhes disse que não gostaria de ter de informar à Casa Branca acerca de um estranho procedimento que só poderia ter como resultado amordaçar a única voz livre do Chile.” O gerente respondeu que “imediatamente mudaria sua forma de tratar a El Mercurio”.
Em setembro de 1971, um emissário de El Mercurio visitou o escritório da CIA em Santiago para pedir apoio financeiro. Dia 8 de setembro, a CIA apresentou uma proposta de dez páginas ao Comitê 40 – o grupo secreto interagências, dirigido por Kissinger, que supervisionava as operações encobertas –, afirmando que El Mercurio “necessitava pelo menos 1 milhão de dólares para sobreviver durante um ou dois anos”. A CIA dizia que o jornal, “sem esse apoio financeiro, se veria obrigado a fechar antes do final de setembro”.
Uma"ajuda"
para o jornal
Os recursos foram sendo liberados porque El Mercurio era “considerado essencial” na ajuda que a CIA devia prestar aos candidatos de oposição nas eleições parlamentares de março de 1973. “El Mercurio é importante. É um espinho cravado nas costas de Allende. Ajuda a manter alta a moral das forças opositoras”, segundo escreveu um auxiliar de Kissinger, William Jorden. Acrescentando que, se por acaso o jornal fracassasse, seria “um excelente caso de liberdade de imprensa para ser usado lá e no hemisfério”.
O total de ajuda a El Mercurio subiu então para 1,95 milhão de dólares, além de recursos dados pela principal empresa colaboradora da CIA no Chile, a ITT, depositados numa conta de Edwards na Suíça. Num memorando “Secreto/Só para ser lido”, a CIA diz: “A assistência dada a El Mercurio tinha como objetivo que o jornal independente pudesse sobreviver como um porta-voz efetivo a favor da democracia chilena e contra o governo da UP”. Em 1972, num resumo sobre a atuação do jornal, a CIA informava que ele “está publicando quase diariamente editorais em que critica o governo de Allende” e “está dirigindo e atuando como centro de agrupação para a oposição”. “El Mercurio lançou uma extensa campanha para colocar em destaque a responsabilidade do governo de Allende nos males econômicos do Chile”, quando as sabotagens internas à produção por parte dos empresários e o bloqueio econômico externo eram os responsáveis por esses problemas.
Depois do golpe de 1973, El Mercurio seguiu sendo o principal porta-voz da direita, agora no poder, com Pinochet, continuando a receber recursos liberados diretamente pela CIA ou através de grandes empresas norte-americanas, contentes com o trabalho feito pelo jornal em favor do regime de terror instaurado no Chile.
Os materiais completos que atestam essa “compra” da “imprensa livre” chilena pela CIA podem ser encontrados aqui: www.cjr.org/issues/2003/chile-kornbluh.asp.