Carlos Dorneles *
desvenda artilharia da guerra manipulada
(Entrevista do
jornalista Carlos Dorneles concedida à BR Press)
Por
que o livro chama-se Deus É Inocente (A Imprensa, Não é o subtítulo)?
Carlos Dorneles - Porque quando vemos alguém que
usa um turbante e reza no chão é mais fácil inferiorizá-lo. Mas isso é
invenção dos homens e Deus nada tem a ver com tanta discriminação. Na
verdade, o título do livro é uma frase de José Saramago.
Por que escrever um livro desses, que denuncia negligências
de sua própria categoria?
Carlos Dorneles - Sempre tive essa
vontade de falar dessa característica da imprensa - de achar que o leitor é
idiota, que ele não acompanha os fatos. A mídia fabrica teses impunes,
contraditórias, de que tudo pode ser dito. Com o 11 de setembro, achei que era
uma grande oportunidade. A manipulação ideológica acontecia de maneira ainda
mais fácil.
Na sua opinião, é crescente a parcialidade - quando não
unilateralidade -- na cobertura de conflitos contemporâneos?
Carlos Dorneles - O que está em
cheque é a relação da imprensa com o poder -- ainda mais com o poder
avassalador norte-americano. A imprensa tem feito o jogo do poder. Nas guerras o
controle da informação é maior. E acho que essas guerras recentes
transcenderam quaisquer outras em censura. E a imprensa se superou em conivência,
passividade e aceitação de uma só verdade - a dos EUA.
Essa aceitação é fruto de tempos em não há tempo
para os questionamentos?
Carlos Dorneles - A versão do mais
forte é a aceita -- o jornalista também é vítima do massacre das informações,
como qualquer cidadão. Mas o profissional da informação é também muito
passivo e acredita ideologicamente naquilo que é dito, talvez até
inconscientemente. Cada vez os jornalistas ficam mais na defensiva. Desde o
Iraque achamos que não veríamos nada mais censurado. Eis que veio o Afeganistão.
Por que os EUA fazem guerras com tanta desenvoltura?
Carlos Dorneles - Porque não tem mídia
vigilante e nessas guerras não há praticamente baixas entre norte-americanos
-- só dos "inimigos". É muito fácil para os EUA fazerem isso. A
receita da guerra norte-americana é bombardeio pesado a grandes altitudes, para
evitar qualquer tipo de possibilidade de atingir os aviões. Ações no solo
quase nunca acontecem. Os EUA correm risco mínimos. Para tanto, terceirizam as
guerras, como fizeram com os soldados da Aliança do Norte - foram eles que
pegaram no pesado no Afeganistão, para depor o Talebã.
E a imprensa brasileira, que não tem tradição em
coberturas de guerra? Como driblar o cerco dos generais e assessores ligados ao
poder que patrulham as informações?
Carlos Dorneles - Como um país periférico,
o Brasil fica totalmente dependente das notícias que recebe de fora,
basicamente de agências internacionais. A primeira solução é o jornalista
debater mais suas práticas - ele se acostuma a ser "testemunha" dos
fatos e sua arrogância não permite o questionamento. O jornalista não se
critica e não gosta de criticar. A imprensa é muito prepotente. Apesar disso,
há excelentes profissionais na mídia brasileira. O jeito é não aceitar e
tentar contornar a censura, mesmo que de maneira low profile. Jornalista deve
oferecer resistência -- mas não dá para bater sempre de frente.
Você sofreu censura em seu trabalho na Guerra do Golfo?
(Dorneles não conta experiências pessoais no livro)
Carlos Dorneles - Sim, não só eu
como a BBC, a CNN e todo mundo que estava baseado em Jerusalém, onde estavam
caindo mísseis Scud mandados pelo Iraque. Na produtora onde gerávamos e editávamos
as matérias para mandar para o Brasil haviam censores militares -- dois
oficiais. Eles queriam que todos os jornalistas mostrassem o material antes de
enviar para as respectivas emissoras. Era assim mesmo, na cara dura. Um dia,
consegui driblar e mandamos cenas de bombas nucleares israelenses. As imagens
foram censuradas pelo Ministério do Interior de Israel. Um censor me chamou e
disse que esse tipo de coisa não podia acontecer. Achei que eu ía ser
deportado. Mas eu disse a ele que, como jornalista, minha obrigação era
mostrar os fatos como eram. Ficou nisso.
Por que você só falou da mídia impressa e não
incluiu a eletrônica no seu livro? Algum desconforto com a TV Globo, para a
qual trabalha?
Carlos Dorneles - Não incluí TVs
porque não existem arquivos independentes de imagens no Brasil, como existem de
material impresso, como o Arquivo do Estado de São Paulo. Eu não estava
trabalhando na Globo quando escrevi esse livro.
O que você achou do papel da TV Al Jazeera, com sede no
Catar, durante a Guerra do Afeganistão?
Carlos Dorneles - Achei muito
interessante. A Al Jazeera expôs a fragilidade de nossa imprensa ocidental. A
CNN sempre atuou sozinha - com suas imagens de luzinhas na Guerra do Golfo e só.
Ninguém nunca viu imagens do massacre dos civis iraquianos, nem afegãos. De
repente, aparece uma TV mostrando sangue e dando voz para os perdedores, os
miseráveis. Depois de acusarem a emissora de ser "terrorista", até
bombardearam a sede da Al Jazeera em Cabul. Mas ela conseguiu ter seu papel e se
reerguer (recentemente a emissora assinou um contrato de distribuição com a
BBC).
Será que precisamos de uma Al Jazeera em cada país? É
possível que a cobertura ocidental de conflitos no Oriente Médio seja menos
tendenciosa?
Carlos Dorneles - O início da atitude
para melhorar a qualidade e confiabilidade da informação é escancarar para o
público saber que ela vem sendo totalmente manipulada. Depois, falta a imprensa
ir ao front e não ficar só no hotel. Mas também não basta só estar presente
- só ver não adianta, é preciso refletir sobre os fatos. Ser testemunha de
fato é o primeiro passo.
Você acredita numa nova Guerra contra o Iraque?
Carlos Dorneles - Não sei. Há uma inédita
oposição da opinião pública e dos aliados. É a primeira vez que os EUA são
contestados em uma iniciativa bélica.
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O autor: Gaúcho de Cachoeira do Sul, Carlos Dorneles nasceu no dia 2 de janeiro
de 1954. Formou-se em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC)
do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, trabalhou nos jornais Folha da Manhã e
Zero Hora e na RBS TV. É jornalista da Rede Globo de Televisão desde 1983,
sendo correspondente internacional da emissora em Londres (1988-1990) e Nova
York (1991-1992). Deus é Inocente é seu primeiro livro.