Cidade de Deus, do jeito que o diabo gosta

(Sérgio Domingues

O diabo do título acima é a burguesia. No filme de Fernando Meirelles ela não aparece. Cidade de Deus isola a miséria e violência. Os pobres se matam entre si, consomem drogas entre si e os ricos não têm nada a ver com isso. De quebra, o mal e o bem parecem ser mera questão de índole.

Pra começo de conversa, este artigo não pretende fazer uma avaliação estética de Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles. Até porque neste aspecto, confesso que achei o filme muito bem feito. Roteiro bem amarrado, fotografia condizente, atores magníficos etc. Mas não é isso que me interessa neste artigo e sim como o espectador vai interpretar o filme. Como vai entender o enredo e tirar suas conclusões. E aí é que acho que o filme tem complicações ideológicas.

Buscapé não tem vocação para o crime

Em primeiro lugar, o protagonista da história é um garoto que evita a todo custo entrar para o mundo do crime. Mas Buscapé Também não quer ser policial “porque tem medo de levar tiro”. Ao longo de todo o filme Buscapé faz um tremendo esforço para fugir às alternativas que a favela lhe oferece. Mesmo quando rende-se à lógica local, se mostra um completo desajeitado para o ofício de bandido e desiste.

A bondade e persistência de Buscapé poderiam ser explicada de várias formas. Se todo menino que nascesse na miséria inevitavelmente se tornasse um bandido, já estaríamos vivendo na mais completa barbárie há muitos anos. Ainda, repito, ainda, valores como o trabalho, a honestidade, o medo do castigo dos céus, pesam sobre a maioria da população. Até quando isso vai durar, não sabemos, mas pelo ritmo do massacre social, não deve estar longe o momento em que cada um de nós terá que providenciar seu tacape.

Mas não é isso que quero discutir. Estava dizendo que a resistência de Buscapé ao crime poderia ser interpretado como aquela exceção à regra que faz da miséria o caldo de cultura para surgirem seres humanos bestializados. Poderia ser um aviso do tipo, se um garoto que tem tudo para se transformar num bandido, resiste, então o caminho é dar oportunidades, dar educação, lazer, informação para todos os outros garotos que, por uma razão ou outra, não desenvolveram essa resistência moral. Buscapé é a evidência de que não podemos confiar nas características individuais de cada um para evitar que o crime cresça. Temos que investir de modo a evitar que a grande maioria lance mão da bandidagem. E para isso, temos que enfrentar a distribuição de renda injusta, as políticas de desemprego, a exploração capitalista que descarta seres humanos como peças desnecessárias etc etc etc.

O problema é que essa é a melhor interpretação para o caso Buscapé. A outra explicação é a mais simples e grosseira. Aquela que vê no garoto resistente a manifestação de uma índole boa. De uma alma incapaz de fazer o mal. Portanto, uma ovelha branca no meio de um rebanho condenado pelo atraso mental e cultural. Um atraso que poderia ser explicado, quem sabe, pelas características biológicas dos habitantes da Cidade de Deus. Negros, em sua grande maioria. Nordestinos, muitos. Taí um prato cheio para uma interpretação racista. Algo que mereceria uma solução social-darwinista: deixem que se matem e os que sobrarem vão se ver com a polícia, o exército, esquadrões de extermínio, seja lá o que for. Taí um argumento em cores e movimento a favor da redução da maioridade penal.

Ainda criança, Zé Pequeno mata e dá risada

Do outro lado, o oposto de Buscapé. É Dadinho, ou Zé Pequeno, como ficou conhecido no fim da adolescência e início da carreira de chefe de bando. Zé Pequeno é a própria encarnação do mal. Recém entrado na adolescência mata a sangue frio e sem motivos várias pessoas num motel. O menino atira e dá risada. Já adulto, é capaz de matar quem com ele esbarrar na rua. Seu sangue-frio e desprezo pela vida alheia o torna o maior traficante do Rio. Posição a que chega simplesmente eliminando as bocas de drogas concorrentes espalhadas pela Cidade de Deus.

Não duvido que crianças e adolescentes tenham cometido crimes terríveis como os atribuídos a Zé Pequeno. As páginas dos jornais exageram os fatos. Dão a impressão de que a maioria dos crimes violentos são cometidos por menores de idade, o que de forma alguma é verdade. Mas, o fato é que realmente cada vez mais jovens se envolvem com o crime. No entanto, não vejo nestes crimes (ou em qualquer outro) a evidência de que certas pessoas nascem com um caráter maligno incurável. Que, portanto, não tenham chance de recuperação e que não lhes resta outro destino que a punição mais severa.

Zé pequeno é para mim aquela criança que todos nós já vimos pelo menos uma vez na vida, cuja capacidade de fazer coisa maldosas é maior do que a média. Aquele famoso “pestinha” que aparece em toda família normal. O problema é que vivendo em um meio que lhe ofereça resistências, como a família, a moral, a escola, a religião, tal criança acaba por ter que reprimir sua predisposição maior à agressão, ao insulto, ao desrespeito. Faz parte do processo que transforma uma criança em um adulto, passando pela dura e complexa fase de ajuste da adolescência.

Zé Pequeno não enfrentou as tais resistências da família, da moral, escola, religião... Ao contrário, Dadinho conviveu com exemplos contrários a qualquer controle sobre os impulsos agressivos. Mais do que isso, a quadrilha de Cabeleira que o introduziu no mundo do crime tinha uma certa ética. Evitava matar, roubava fora da favela etc. Mas Dadinho foi fundo na lógica do crime. É válido roubar, e para roubar é quase inevitável matar. Então é melhor matar logo. Impor a lei do mais forte. A lei do fuzil e da pistola.

Portanto, Zé Pequeno também é resultado da miséria e da exploração. Só que ele é o que há de pior. Ele é o que a maioria cada vez mais tende a ser. Não porque a maioria tenha queda para o mal. Mas porque o mundo em que vivemos, principalmente no Brasil, está cheio de exemplos de que fazer o bem, respeitar as regras, ser solidário, é coisa de otário. Um jovem morador de favela quer consumir as mercadorias que vê nos outdoors, nas vitrines, na TV. Talvez queira apenas uma máquina fotográfica, como Buscapé. Mas é cada vez mais difícil que esse jovem acredite que trabalhando, poupando, fazendo sacrifícios ele vá conseguir satisfazer seus sonhos de consumo.

Mais uma vez, e agora de forma mais aguda, é mais fácil acreditar na imanência do mal ou do bem na alma das pessoas, que buscar a complexa e difícil explicação sociológica.

O que piora todo esse quadro e definitivamente tende a levar a maioria dos espectadores a interpretações racistas e fascistas para o crime é o fato de que os verdadeiros causadores de toda essa tragédia não aparecem no filme. Em nenhum momento, há, pelo menos, um ensaio de explicação sobre os motivos que levaram o tráfico de drogas a substituir o roubo na cena do crime.

Quem consome tanta droga? Os próprios traficantes, dá a entender o filme

Qualquer pessoa bem informada sabe que os grandes consumidores das drogas vendidas nas favelas pertencem, em sua grande maioria, às classes média e alta das grandes cidades. Mas, pessoas bem informadas não são exatamente uma regra no Brasil. Muito menos num planeta em que a maioria acredita ser o Brasil um país que tem como capital Buenos Aires, em cujas ruas desfilam mulheres nuas em meio a macacos saltitantes. Este filme vai ser exibido no mundo todo e o que vai prevalecer no imaginário desses milhões de espectadores será a estranha façanha de que aqueles que vivem de vender drogas são, na verdade, seus maiores consumidores. Pois é isso que o filme mostra o tempo todo. Os próprios traficantes consomem o produto de seu comércio. Um caso único, no capitalismo, de atividade econômica em que produtores e consumidores são as mesmas pessoas! O máximo que o filme mostra é a corrupção policial. Ainda assim, os policiais parecem mais uns pobres diabos, sem eira nem beira.

Que tal uma pequena e sutil cena mostrando uma festinha na zona sul regada a muita cocaína, heroína, etc etc? Uma festinha cheia de empresários, socialites, artistas globais? Ajudaria ou não a entender de que divindade surgiu o inferno que é a vida dos habitantes da Cidade de Deus?

Ajudaria, mas aí, como é que fica o financiamento da Globo? A possibilidade de um Oscar de melhor filme estrangeiro? Uma pena, porque o talento dos realizadores do filme poderia ter servido a outras causas, que não a do mercado de entretenimento.

Uma última consideração. Infelizmente, não li o livro homônimo de Paulo Lins, que deu origem ao filme. Provavelmente, o filme é fiel ao livro e este não aborde as causas do crime, do tráfico de drogas, nem forneça uma explicação sociológica para as escolhas opostas de Buscapé e Zé Pequeno. Mas como não li o livro, não posso dirigir minhas críticas a ele. Além disso, o livro é outra obra, com outra linguagem e alcance. O fato é que o Cidade de Deus que vai prevalecer na cabeça de milhões de pessoas será o da imagem, sons e cores do filme.

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