O sangue seco de Veja

(Gilson Caroni Filho)

Uma publicação que negligencia a apuração factual para reiterar uma petição de alinhamento incondicional deve ser tratada como produto jornalístico? Reportagens editorializadas, ocultando fatos, distorcendo dados, sempre na defesa canina dos donos do poder mundial merecem ser objetos de análise? A resposta é afirmativa, posto que, mais que a doxa da redação, importam as tendências que ela expressa.

Desdenhando movimentos sociais e suas demandas legítimas, impondo a visão dominante acima da reflexão crítica, os senhores da Abril, semanalmente, produzem a versão "tostines" das revistas semanais: Veja é uma promessa de outdoor ou um outdoor que ameaça virar revista? Qual o segredo da contrafação que tanto apraz a classe média sôfrega por informações de superfície? Tentarei responder a algumas dessas indagações analisando o tratamento que a edição 1.794 (de 19/3/03) dispensa à matéria de capa: "O erro de Bush – Tratar essa guerra como uma cruzada do bem contra o mal".

Com os pomposos títulos "Uma potência isolada" e as "Armas dos EUA para fritar Saddam", a publicação dos Civita vai à luta. E o faz desfigurando o cenário internacional, embaralhando fatos e retrabalhando conceitos. Prestidigitações que se pretendem relatos jornalísticos de um momento histórico, os textos nada mais são que pobres peças ideológicas dos pardais tupiniquins. O imperialismo é condenado por seu deslize "tático", mas a nobreza da motivação belicista é plenamente justificada.

Ao repercutir, como algumas publicações americanas, o arrazoado protofascista de Washington, Veja vive o delírio de fazer parte de uma força-tarefa imaginária. Andando na contramão da maioria da mídia brasileira, a revista-outdoor tenta mostrar serviço ao improvável assinante que mora no oeste do Texas e, ansiosamente, aguarda suas opiniões sobre o mundo.

Bem resolvida graficamente e com uma linha editorial deplorável, a revista tem o perfil nítido de um freqüentador compulsivo de academia. Formas bem delineadas e um imaginário indigente. No fundo, sonha com o green card, mas habita algum lugarejo empoeirado da fronteira mexicana. Qualquer semelhança com as aspirações de parcela da classe média brasileira terá sido mera afinidade eletiva. Coincidência, jamais.

Inspeção de armas

Muito do que foi exposto acima consta no artigo "Artefatos ideológicos e impudência da direita", publicado na edição 167 deste Observatório [remissão abaixo]. O dado novo, alvissareiro, que justifica esse texto é a atual solidão de Veja.

Justiça seja feita: não falta qualidade à cobertura que a maioria da imprensa brasileira tem dado aos momentos que precedem a ofensiva americana contra o Iraque. Matérias analíticas, opinião de articulistas de distintas orientações político-ideológicas e vasto material sobre a origem das conflagrações no Oriente Médio têm proporcionado ao leitor um bom jornalismo em que não faltam diversidade e abrangência. Os pardais da Avenida das Nações Unidas (vejam que ironia) estão sozinhos no vôo rasteiro. De lá elaboram seu pasquim doutrinariamente patético.

Vejamos alguns trechos em que a história é, quando não distorcida, solenemente ignorada. Observemos como o viés "psicologizante" se sobrepõe a uma análise macropolítica. E, acima de tudo, como o descaso com o leitor faz com que um documento misterioso seja a base para afirmações supostamente incontestes. Categorias e conceitos que nos são caros correm pelo ralo do jornalismo de homologação das ambições imperiais. "Veja errou" era expressão do reconhecimento de um deslize factual da publicação nos anos 70. O tempo passou. Hoje, Veja é um erro.

Em uma "Potência isolada", a revista despreza qualquer possibilidade de se considerar a invasão do Iraque expressão de uma vontade absolutista que pode levar à barbárie. O lamento recai sobre o pretexto escolhido. Parece lamentar que a junta petrolífera tenha pouca familiaridade com análises combinatórias mais producentes. Leia-se o trecho abaixo:

"Há várias razões certas para investir na derrubada da ditadura de Saddam Hussein, no Iraque. O presidente americano George W. Bush escolheu a errada: ele resolveu fazer uma guerra contra um país inteiro, o Iraque, sob o pretexto de que está conduzindo uma cruzada do bem contra o mal, da democracia contra a ditadura, de Deus contra Satã."

Muito bem, Veja é axiomática. Há várias razões e ponto final. Quais são e o como se expressam essas razões múltiplas o texto prefere ignorar. Enunciado o princípio, segue-se um pedido de licença à lógica formal. A questão de fundo, que talvez merecesse capa de uma publicação mais séria, é o que está acontecendo na sociedade americana para que seu presidente possa brandir o fundamentalismo cristão como arma. E ter respaldo da opinião pública estadunidense.

No rastro de um instigante artigo de Clóvis Rossi ("A serpente", Folha de S.Paulo, 8/3), em que é registrado o receio dos estudantes da Universidade de Columbia em falar mal do governo, restaria investigar o que foi feito da casca do ovo. O fascismo latente da sociedade americana tem chamado a atenção de quem se preocupa com a sobrevivência da democracia representativa. Sem sombra de dúvidas, há várias razões para investir na derrubada de um governo que se assenta nos valores da direita religiosa raivosa aliados aos interesses da indústria bélica e dos setores petrolíferos. Ainda mais num país que não permite inspeção de seu vasto estoque de armamentos químicos e biológicos. Soa absurdo? É apenas um desdobramento lógico das "razões certas" de Veja. Muda-se apenas o alvo.

Confronto de patologias

A prestidigitação acima aludida volta a ser empregada quando o objetivo é transformar o indefensável em algo apenas adiável. O parágrafo abaixo é instigante pelo que insinua e oculta.

"Guerra é um assunto sério e, quando se mostram inevitáveis, as guerras precisam ser travadas. Nesta, pronta para ser desfechada contra o Iraque, o governo Bush está movendo o Estado americano para o conflito armado que deixará vítimas e poderá ter reflexos dramáticos em toda a região do Oriente Médio. Esta guerra é pelo menos adiável – mas os caubóis do governo dos EUA resolveram tomar a iniciativa de partir para o duelo sangrento a qualquer custo. A natureza de uma democracia verdadeira é a de não ser jamais a parte agressora. Caso contrário, ela estaria descendo ao patamar do inimigo, o que de certa forma está acontecendo com os EUA".

Primeiro, a revelação bombástica. O conflito armado deixará vítimas!!! Como é que ninguém, à exceção dos editores de Veja, não pensou nisso? O que se segue é de uma ambigüidade extrema. "A natureza de uma democracia verdadeira é a de não ser jamais a parte agressora". A publicação da Abril estaria insinuando que, desde o Vietnã, a democracia deixou de ser verdadeira nos Estados Unidos? Ou estamos diante de uma construção vazia de sentido? O que significa "descer ao patamar do inimigo", ainda mais quando ele é descrito nos termos abaixo?

"Saddam, além de presidir uma ditadura familiar e tribal que se mantém no poder à custa de tortura dos opositores, do assassinato e até mesmo do genocídio, é também psicopata e sádico. Segundo um levantamento, o regime de Saddam Hussein torturou e matou cerca de 200.000 iraquianos".

Em nome da tão propalada objetividade jornalística, duas perguntas se fazem imperativas: em que laudo psiquiátrico Veja se baseia? E que levantamento é esse que fornece os números aterradores do extermínio levado a cabo por Hussein? Não que os julguemos improváveis, mas soa a total ausência de limites falar em crimes contra a humanidade a partir de "um levantamento".

E se o víés psicologizante for estendido ao outro lado? Segundo The Observer, em matéria reproduzida na edição de 12/2/03 da revista Cart Capital, George W.Bush teria participado de ritos sádicos de iniciação na vida acadêmica, sofrido com a rejeição paterna e caído no alcoolismo, do qual só saiu após ter visto no espelho seu rosto manchado de vômito seco. "Caiu implorando a ajuda de Deus", informa a publicação. Veja certamente não ignora essa faceta do líder republicano. E, afinal, não estamos num confronto entre patologias individuais.

Adiando o indefensável

Ou, pensarão os notáveis editores, só um tipo de loucura nos importa. O grande equívoco é usar perfis psicóticos ou esquizóides para justificar a trajetória de desmandos de uma liderança política. Absolve mais que condena.

A reportagem se desenvolve como uma ligeira admoestação ao governo americano que teria abdicado da diplomacia para fazer valer sua incomparável superioridade militar. Três linhas sobre o esvaziamento da ONU são o réquiem oferecido pela revista ao fim de um mundo multipolar. Mas o desfecho trai qualquer veleidade de conversão ética. Vejamos como a matéria é concluída:

"Bush poderia esperar uma conjuntura mais favorável para atacar. Resolveu, ao contrário, ir até o fim, num exemplo do comportamento prepotente e imperial que tantos países enxergam e denunciam nos EUA. O debate internacional sobre a ameaça representada por Saddam Hussein transformou-se numa discussão sobre a falta de limites da hegemonia americana. Isso é ruim porque, em todo o mundo, inocentes e maliciosos participam de uma pressão contra os EUA na qual se tende implicitamente a dar como fato que o sanguinário Saddam Hussein é apenas uma vítima – quando na verdade ele é um tirano perigoso. Se Saddam cair rápido e os iraquianos sofrerem um mínimo aceitável nas circunstâncias, os americanos desfrutarão um enorme trunfo político, mais saboroso ainda pelo gosto de revanche, pelo ar de ‘viram só como estávamos certos?’ A parte do mundo que condenou a guerra os aplaudirá, finalmente, ou ficará com mais raiva ainda?"

O que motiva a condenação ao ataque militar é finalmente revelado. "Em todo o mundo, inocentes e maliciosos participam de uma pressão contra os Estados Unidos"? Veja teme a vitimização de Saddam e o antiamericanismo. Não poderia ser mais prestimosa ao Grande Irmão do Norte.

Os desdobramentos da ofensiva devem trazer um mundo mais hostil aos estadunidenses, lamuria a revista. Ou, hipótese desejável pela publicação, um enorme trunfo político, mais saboroso ainda pelo "gosto de revanche" de uma racionalidade que se comprovará a posteriori.

Quanto ao título "Armas dos EUA para fritar Saddam", salta à vista o verbo empregado. E se alguém tivesse o gosto duvidoso de afirmar que o atentado perpetrado pelos seguidores de bin Laden "fritou" milhares de pessoas que estavam nas torres gêmeas? Certamente não seria elogiado pela elegância do estilo. Os signos saltam e revelam a nudez de nobres e súditos.

Ao se referir ao aparato bélico, a matéria de Veja repete o famoso fascínio pela tecnologia de destruição já verificado na mídia desde o conflito do Golfo. Nada de novo. É a versão editorial do velho fetichismo da mercadoria. Confirmação da assertiva de Marx segundo a qual "na esfera de circulação de mercadorias, os homens se coisificam e as coisas se humanizam". Ademais, as loas ao armamento são o primeiro passo para transformar o conflito em espetáculo. E seus algozes em celebridades.

Talvez Veja venha a ser um dia uma publicação séria e democrática. Talvez precise de uma guerra para isso. Quem sabe seus proprietários e editores não necessitem de um espelho mágico? Aquele que finalmente mostre seus rostos manchados de sangue seco. Sem truques de edição.

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