A TV precisa de um contrapoder


Entrevista concedida por Pierre Bourdieu a Leneide Duarte e publicada no Caderno Idéias do Jornal do Brasil. O sociólogo morreu no dia 25 de janeiro de 2002, aos 71 anos. 

Pierre Bourdieu, titular da cátedra de Sociologia do Collège de France, é um dos mais lidos e citados sociólogos do mundo. Com seu livro "Sobre a televisão" (Jorge Zahar Editor), ele abriu uma nova e polêmica frente de discussão ao estudar a cultura mediática e fazer uma crítica definitiva ao meio de comunicação mais controvertido da atualidade.

Bourdieu acha que pouca coisa pode ser dita num veículo que impõe o assunto, o tempo irrisório e que tem interesses econômicos invisíveis e, muitas vezes inconfessáveis.

Para ele, a tela da televisão tornou-se hoje "uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica no qual querem se mirar os intelectuais (filósofos e escritores) mediáticos", do qual fogem os eruditos e pensadores, evitando uma mídia extremamente superficial, própria a "fast thinkers".

Tudo isso faz da televisão, segundo Bourdieu, um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica.

"Há imensos obstáculos ... Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana".

Suas idéias foram criticadas tanto na França como em todo o mundo onde o livro foi publicado. Por isso, Bourdieu escreveu uma espécie de réplica, não por acaso intitulada "Contrafogos".

Como a discussão está longe de acabar, no mês em que a TV brasileira comemora seus 50 anos, Bourdieu volta para discutir seu tema mais polêmico: a mídia televisiva.

Bourdieu afirma ainda que a construção deste contrapoder só pode ser feita com a cumplicidade e a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas.

JB - O jornalismo é importante demais para ser deixado nas mãos de jornalistas?

Bourdieu - Se eu disse alguma coisa assim, em algum lugar, foi unicamente pelo prazer de fazer uma boutade. E é preciso evitar fazer tiradas sobre assuntos sérios: e o jornalismo é um assunto sério, muito sério mesmo. Porque o jornalismo, hoje, é efetivamente muito importante.

O que eu quis dizer é que não se pode deixar unicamente aos jornalistas a total e inteira responsabilidade do trabalho jornalístico. Era o que queriam alguns jornalistas que pensam que são suficientemente grandes para se controlar e se criticar e têm sempre à mão, pelo menos na França, a referência à "deontologia".

O jornalismo - que pensa como um "quarto poder", mas crítico - é sem dúvida alguma um poder, que pelo fato das pressões de todas as ordens que pesam sobre a atividade jornalística, sobre os jornalistas, portanto, não tem mais muita coisa de crítico e contribui muito para reforçar as forças mais conservadoras da economia e da política.

JB - O senhor pode dar um exemplo?

Bourdieu - Os jornalistas econômicos, que na sua maioria estão longe de ser grandes economistas, e os grandes editorialistas não cessam de retomar e orquestrar os argumentos mais deformados da vulgata neoliberal sem submetê-los à crítica mais elementar.

Por acaso eles se perguntam, por exemplo, o que significam as taxas de emprego dos EUA e da Inglaterra e se a relação, freqüentemente lançada contra os defensores do Welfare State, entre a proteção social e o desemprego não repousa sobre um jogo com as definições, tanto da proteção social, quanto do desemprego e do emprego etc.?

Os jornalistas influentes gostam de dizer que são escutados, temos de lhes dar razão. Quando se trata de economia, eles falam todos praticamente a mesma língua.

JB - O jornalismo da TV é pior do que o da imprensa escrita dita séria?

Bourdieu - Eu não colocaria a questão nesses termos. É verdade, para simplificar, que o jornalismo da TV (sobretudo nas grandes redes, de grandes espetáculos e grande público) está submetido a pressões (a da urgência, principalmente, ligada ao medo de entediar, isto é, de perder telespectador), uma coisa da qual o jornalismo escrito, o dos grandes jornais ditos "sérios", está livre. Mas, de fato, a concorrência no campo jornalístico - incluídas todas as mídias - faz com que as pressões e interesses que pesam sobre a televisão pesem também, por intermédio da televisão, sobre a totalidade dos jornais, mesmo sobre aqueles mais preocupados com sua autonomia.

Patrick Champagne fez essa análise, num dos últimos números da revista Atos da pesquisa em ciências sociais, sobre a evolução da retórica jornalística do jornal Le Monde: Os títulos da primeira página, por exemplo, estão sendo cada vez mais dedicados à política nacional e aos aspectos mais anedóticos dessa política - por exemplo, as relações de coabitação entre o presidente da República e o primeiro-ministro. (No Brasil a redução às estripulias do "juiz Lalau", na tentativa de descaracterizar a rede de cumplicidades e corrupção palacianas do Caso EJ Caldas

E tudo o que os americanos chamam de "agenda" - os assuntos sobre os quais é preciso falar, os temas que devem ser debatidos - é imposto, cada vez mais, pela televisão.

Ou então, os grandes jornalistas se empenham em ter um programa de TV ou em aparecer num, o que é bom para eles próprios, para sua notoriedade e seu ego, mas também para seu jornal e para as vendas.

E isto tem como efeito contribuir para a unificação da problemática em curso no campo jornalístico e, ao mesmo tempo, ao fechamento deste campo sobre ele mesmo, totalmente centrado nos pequenos problemas de um pequeno número de pessoas que, do debate televisivo ao coquetel de imprensa, não cessam de se encontrar e de trocar suas pequenas idéias.

JB - Em seu livro "Sobre a televisão", o senhor diz que a crítica da TV pelo discurso não é senão um último recurso, menos eficaz do que seria a crítica da imagem pela imagem. Pela reação da mídia, o senhor acha que se enganou?

Bourdieu - Sim e não. É verdade que o discurso que eu desenvolvi para a televisão teve bem menos efeito do que transcrição publicada sob forma de livro. Mas trata-se de uma crítica pelo discurso (e que foi ao ar em horas de audiência muito baixa, à noite) e não de uma crítica pela imagem como eu poderia ter feito com a ajuda de profissionais de cinema como Pierre Charles, autor de um filme intitulado "Pas vu à la télé" (Não passou na TV), que teve um enorme sucesso onde foi exibido -, ou simplesmente se eu tivesse podido mostrar na TV as imagens que eu comentava no meu discurso, ou construir todo um filme com exemplos de coisas vistas na televisão.

Seria, pois, preciso servir-se dos recursos da televisão (e mesmo de todo o talento que certos publicitários desenvolvem a serviço da venda de produtos) para desmontar e criticar os abusos do poder cometidos a cada dia na televisão, não necessariamente de maneira intencional ou perversa, mas, mais freqüentemente, por ignorância ou por inadvertência.

Você me dirá que, na televisão mesmo (não sei se vocês têm isso no Brasil) há programas que fazem isso.

De fato, é uma falsa crítica, que não toca em nada de sério - a prova é o fato de que o filme de Pierre Charles, que questionava a integridade dos grandes responsáveis da televisão e sobretudo suas conivências com os políticos, foi proibido na TV. Este simulacro inofensivo de crítica é destinado, uma vez mais, a criar audiência dando satisfação a uma demanda confusamente sentida pelo público.

JB - O senhor escreveu que a TV é um lugar de exibição narcísica. Os intelectuais mediáticos não são bem vistos por seus pares? Os eruditos e ensaístas devem fugir da telinha? O senhor participa de programas de televisão?

Bourdieu - É preciso esclarecer tudo isto. Infelizmente, o julgamento dos pares (falo dos eruditos sobre os eruditos, dos escritores sobre os escritores etc.) está cada vez mais ocultado e confundido pela interferência do julgamento dos ignorantes que são chamados a opinar, e estão em situação de expor julgamentos dotados de visibilidade e, daí, de uma certa autoridade sobre os profanos.

Por exemplo, a gente verá vários jornalistas franceses apressarem-se em elogiar tal livro sobre jornalismo, que balança entre o banal e o medíocre e que tem como principal virtude, a seus olhos, dizer do jornalismo aquilo que os jornalistas ele próprios, ou ao menos os mais conformistas e os mais satisfeitos entre eles, diriam. Isto com a esperança de barrar (num sentido de censurar) todas as tentativas para falar cientificamente desse universo.

JB - Seria preciso, por esse motivo, intervir na mídia?

Bourdieu - É uma questão muito difícil. Os editores, mesmo os mais rigorosos, avançam com toda sua força, e nós podemos compreendê-los. Recusar a televisão não é apenas comprometer o sucesso de obras que merecem atingir um público maior; é também deixar espaço aos intelectuais mediáticos, que contribuem para mistura da qual eu falava há pouco propondo obras do kitsch cultural (e penso no Sartre de Bernard-Henri Lévy) e que não podem se defender contra os questionamentos de que são objeto (apesar da extraordinária solidariedade de todos os intelectuais beneficiários), atacando, muitas vezes da maneira mais sórdida, os que resistem a seu domínio sobre a imprensa e a edição.

JB - Explique melhor esses personagens.

Bourdieu - Não sei se vocês têm como nós na França personagens que dominam, ao mesmo tempo, grandes órgãos de imprensa, como Grasset ou Gallimard, jornais (como o Magazine Littéraire, L' Express ou L' Événement du Jeudi) que são capazes de desencadear verdadeiras campanhas de publicidade em defesa de seus produtos ou dos de seus amigos; e também, em casos mais excepcionais, campanhas de difamação contra os que se recusam a entrar no jogo ou que, mais simplesmente, têm a insolência de descrevê-lo.

Volto à sua pergunta. É preciso fugir da telinha? Penso que seria preciso que artistas, escritores, eruditos e pensadores lutassem individualmente e sobretudo coletivamente para conquistar a possibilidade de ter acesso à TV em boas condições, isto é, quando eles têm algo a dizer que merece atingir uma audiência maior e quando se lhes oferecem a oportunidade e o tempo necessário para dizê-lo.

Creio que seria possível inventar novas formas de ação pela televisão que sejam capazes de envolver públicos mais vastos em torno de assuntos mais difíceis e mais importantes (como o futuro da economia mundial), mas sob a condição de mobilizar verdadeiramente todas as capacidades inventivas dos escritores, dos eruditos e, sobretudo, dos artistas, e especialmente dos cineastas.

É este o tipo de tarefa na qual deveria se empenhar o intelectual coletivo tal qual o imagino.

JB - Hoje, o que não aparece na TV corre o risco de não atingir a sociedade, tanto no bom quanto no mau sentido?

Bourdieu - Efetivamente. É por isso que todos os que desejam agir sobre o mundo, ao menos o suficiente para contrabalançar ou combater a ação dos que o dominam, devem se questionar seriamente sobre a questão do bom uso da mídia.

Não é o caso de recusar as mídias, mas de se perguntar como utilizá-las sem se deixar usar por elas. É preciso os pesquisadores irem à televisão, mas dentro de suas conveniências e suas condições. Há imensos obstáculos, que não enumerarei para não desencorajar ou desesperar os que tentam lutar.

Penso que já seria importante que os intelectuais tomassem consciência de que, em sua relação com a televisão, e mais genericamente, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e a todas as mulheres de todos países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana.

A construção deste contrapoder só pode ser feito, evidentemente, com a cumplicidade ou mesmo a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas.

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