O
povo brasileiro não precisa de tantos inimigos
(Elizabeth
Lorenzotti)
Duas jornalistas do Jornal da Tarde partem para uma
reportagem investigativa. Salve, salve, uma novidade na imprensa tão burocrática.
Mas o que pretende investigar essa pauta? Corrupção? Contas fantasmas no
exterior? Os 150 milhões de hectares de terra inexplorados no País, ou coisa
assim?
Não! Marinês
Campos e Marici Capitelli se dispõem a passar por pessoas sem teto no
acampamento do terreno da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, para pôr a nu
a terrível saga dos excluídos, manobrados por aproveitadores.
Vestidas de
pobres, elas entrevistam gente que diz estar guardando lugar para outros, e
descobrem que esses outros já têm casa. A matéria é publicada também por O
Estado de S. Paulo,sob o título “Roupa usada e R$ 16: o preço para virar
sem-teto”.
Elas se assustam, pois ninguém perguntou o que estavam
fazendo ali. Chama atenção delas a solidariedade dos excluídos.Afinal, quem
está acostumado com solidariedade? Apontam a “desideologia” deles, por mais
que o acampamento seja povoado por faixas como nomes como Che Guevara e Rosa de
Luxemburgo. A reportagem leva, naturalmente, à conclusão de que os sem-teto são
massa de manobra e muitos deles são gente malandra. O clima também reproduz
aquele diagnóstico que se costuma ouvir por aí, como escutei dia desses de uma
dona de casa de classe média: “São muito bem vestidos para o meu gosto, estão
lá pra aproveitar”.
O Estado de S. Paulo reserva espaço cativo na primeira
página para chamada sobre o MST. Mesmo que não exista notícia, há de se ter
um destaque na capa. É só verificar, no dia-a-dia. Por exemplo, no domingo 19
de agosto “Dissidentes do MST pregam a luta armada”(Roberto Godoy), chamado
para a matéria “PF investiga risco de guerrilha entre acampados”.
Outras matérias: “CPT e MST perdem prestígio entre
bispos” (Roldão Arruda). E depois “PM apura fornecimento de armas a
acampados”, isso em MG.(Edson Luiz)
Na mesma linha a Folha de S. Paulo apura, em 10 de
agosto, junto à CNBB, que é hora de intensificar os movimentos populares. Uma
apuração forçada, pois o representante da CNBB não diz isso literalmente em
nenhum trecho da entrevista, apenas a repórter Gabriela Athias. Esta é a sua
abertura:
“O presidente da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil), dom Geraldo Majella Agnelo, diz que é hora de intensificar as
manifestações populares para pressionar o governo a atender às reivindicações
dos mais pobres.No entanto, ele ressalta que todas as manifestações devem ser
pacíficas e ordeiras.
“Folha - Há uma espécie de consenso entre as pastorais de
que é necessário intensificar as manifestações populares para que os pobres
ganhem sua fatia num governo marcado pela disputa de interesses. Como o senhor vê
isso?
Dom Geraldo Majella Agnelo - A manifestação do povo é
importante na democracia, mas não se pode aceitar que isso parta para a violência.”
O Estadão em um desses domingos, fala da tática de
guerrilha nos acampamentos (Lourival Sant’Anna). Eu me lembrei de uma matéria
de uns três anos atrás, da mesma repórter Gabriela Athias, que hoje milita na
FSP. A matéria dominical era sobre as escolas do MST nos estados. Dizia a
jornalista, em meio a tantas pérolas, que lá os professores ensinam a palavra
“utopia” às crianças sem-terra, e indignava-se com tamanho absurdo. O título
era algo como “MST forma guerrilheiros do futuro”.
No dia seguinte, para o que se chama suíte da matéria (que
normalmente reafirma, por meio de entrevistas, a linha editorial adotada na
reportagem anterior), o Estadão não conseguiu encontrar, entre
especialistas, alguém que fosse contra a proposta de educação do MST.Pela
primeira vez no Estadão—e talvez mesmo na história da imprensa...-- uma suíte
desmentiu a matéria. (Eram os tempos da chefia de redação de Antonio Pimenta
das Neves, aquele que assassinou a namorada jornalista Sandra Gomide e hoje, sem
julgamento, vive livre no litoral norte de São Paulo, como foi constatado em
reportagem de televisão.)
Estes são exemplos apenas do desempenho de alguns
jornalistas dedicados a cobrir questões sociais. Uma pesquisa em outras
editorias talvez chegue a constatações muitíssimo piores.
Mas a linha do Estadão é conhecida há mais de cem
anos. As de outra publicações, como a da FSP, ainda deixam algumas pessoas em
dúvida, o que é muito pior do que assumir explicitamente o papel ancestral
dessa imprensa inimiga do povo.
Um ex-integrante do governo tucano, um dos responsáveis
pelas desastradas e obscuras privatizações dos serviços públicos também tem
uma revista, chamada Primeira Leitura, na qual em uma edição recente põe
João Pedro Stedile na capa e diz que o MST não existe. Pontifica que não há
terras improdutivas a distribuir, porque o latifúndio brasileiro é um sucesso
de exportação. Como muito bem analisa Carta Capital — a única
revista semanal legível – a publicação demonstra que, se um movimento
contraria sua linha editorial, ele não existe.
Que a chamada grande imprensa brasileira (ou, como bem define
o jornalista e professor Hamilton de Souza, a imprensa burguesa comercial
brasileira) sempre foi o retrato acabado da defesa dos interesses de latifúndio,
das grandes empresas, do capital internacional, do sistema financeiro, enfim da
casa grande, e sempre combateu qualquer manifestação organizada da senzala, não
é novidade. Só para comprovar, um trechinho do editoral do Estadão sobre a
matéria de Marinês Campos e Marici Capitelli, as duas jornalistas sem-teto por
um dia, certamente esfuziantes de felicidade por terem sido citadas em página tão
nobre do jornal:
“Entende-se, portanto, por que grande parte dos "invasores" que se retiraram pacificamente do terreno da Volkswagen, na 5.ª-feira, se sentiu traída por seus líderes. Não fosse a enviesada, estreita e retrógrada visão ideológica da quase totalidade das lideranças dos movimentos sociais em atividade no Brasil, ou melhor, se essas lideranças não violassem a lei ao promoverem as manifestações dos que reivindicam apenas o direito a uma vida mais digna de ser vivida, a força desses movimentos acabaria se tornando irresistível. “
No dia 27 de julho, a colunista social da Folha de S.
Paulo, Mônica Bérgamo, fez uma matéria interessantíssima,
verdadeira reportagem investigativa, que poderia aliás estar publicada na
editoria Brasil. Ela revelava o valor dos casamentos da elite brasileira, algo
entre R$ 500 mil e R$ 5 milhões, “o custo estimado do casamento de Michele
Kamkhagi com Jacob Safra, filho do banqueiro Joseph Safra, em 2001. Tudo depende
dos serviços contratados. Os Safra trouxeram de Paris Alain Raynaud, que fez os
palácios de Valentino na Europa, para erguer o cenário da festa.” Só as
flores, numa cerimônia dessas, podem custar R$ 150 mil.
Esta matéria mereceria estar na editoria Brasil, ao lado de
outra,no mesmo domingo, muito estranha, assinada por Rafael Cariello com o título
“MST constrói "universidade" de R$ 7 milhões”.
Em qualquer país democrático, uma iniciativa dessas de um
movimento social seria louvada. Mais ainda deveria ser no nosso país, com todas
as carências que enfrenta seu povo. Mas não no Brasil, não pela imprensa
brasileira. A matéria dedica-se a ressaltar, além dos custos, o que chama de
“turismo
ideológico”, ou seja, a colaboração de pessoas de outros estados e de
outros países, que vão participar do mutirão para construir a escola.
Se as duas matérias estivessem editadas lado a lado,
comporiam um painel exemplar do nosso rincão de desigualdades: um casamento
custa R$ 5 milhões, uma “universidade” popular, apenas R$ 7 milhões. E a
FSP estaria, assim, absolvida de muitas de suas más intenções.
O que assusta, neste século 21, em que não existe mais
guerra fria, e portanto morreu o perigo comunista. Em que alternativas ao modo
de governar, de viver, de sobreviver são pensadas e experimentadas. O que
assusta é o enorme, o imenso atraso de elites de uma sociedade como a nossa,
agarrando-se a preconceitos ideológicos centenários.
O que assusta é a mais perfeita tradução dessa elite, a
grande imprensa, ainda contar com material humano jovem para cumprir sua missão
de desinformar e deformar.
Mas está claro que, em ideologia, a idade não conta. Aos 18
anos o elemento pode fazer parte de um tal Partido Feudal na arcadas do largo de
São Francisco, em São Paulo, tendência que disputa o centro acadêmico que
acaba de completar 100 anos. O cara se diz apolítico e apartidário. Mas sua
“precocidade” é festejada quando chega em casa, nos Jardins, pelo pai, após
ter atirado uma galinha preta na prefeita da cidade, exatamente na festa de
comemoração da vasta história do C.A.11 de agosto. Que se não foi sempre
exemplar, teve participação decente em muitos momentos da luta pela
democracia.
Bem, talvez seja assim que se criem bem nutridos jovens que
desfrutam da escola pública, enquanto os de classes menos favorecidas pagam bem
caro as faculdades de fundo de quintal. Este é o corolário bem-sucedido do
movimento iniciado em 1968 com o chamado acordo MEC-USAID, que deu a largada na
privatização do ensino. (Aliás, este argumento é maquiavelicamente utilizado
para engrossar o cordão dos defensores da política de total privatização,
para que todos paguem o ensino.)
Talvez sejam estas as famílias que passem seus preconceitos
de classe de tal forma que os filhos se sintam arrogantes o suficiente para
queimar mendigos e índios, os pais emprestem os carros aos filhos menores, sem
carta de motorista, para atropelar e matar pedestres--no dia 16 de agosto foi
registrado mais um desses incontáveis casos: um menino de 15 anos atropelou em
São Paulo uma criança que corre risco de morte, e fugiu, assim como o pai que
não havia sido encontrado naquele dia).
E o que isso tem a ver com jornalistas jovens e nem tão
jovens que vendem a alma a preço de banana? O medo do desemprego, dirão
alguns.O carreirismo, dirão outros.O sucesso a qualquer preço. Tudo isso
junto? Tudo isso e muito mais, numa era de valores trocados e de altíssima
manipulação de idéias e da linguagem.