Invasões Bárbaras é um filme bonito, sensível e pessimista. Pessimista como só a classe média pode ser quando descobre que tornar o capitalismo civilizado é como querer fazer as barbas do demônio.
O
filme é uma continuação de "O Declínio do Império Americano"
(1986) também do diretor Denys Arcand. Quase 20 anos depois, o mesmo elenco
repete os personagens de “O Declínio”. Reencontram-se para consolar os últimos
dias de Rémy, vítima de um câncer.
O
filme de 1986 falava de um império em declínio. Qual império? A produção é
canadense mas refere-se à sociedade norte-americana, incluindo o vizinho
estadunidense. Fala de uma sociedade que tem um alto nível de civilização.
Educação e saúde públicas de alta qualidade, distribuição de renda,
seguridade social, baixa criminalidade, cidades arborizadas e tranqüilas,
cercadas por belos campos. Apesar de tudo isso, os homens e mulheres mostrados
no filme estão às voltas com suas obsessões sexuais, rancores pelas traições
sofridas e arrependimentos pelas não cometidas, medos, angústias. Enfim, todo
o conforto material não foi capaz de diminuir os conflitos existenciais de
pessoas inteligentes, bem-sucedidas, maduras e sensíveis. Taí a crise do império.
Tanta civilização só tinha que dar em decadência, diria Luis Fernando
Verissimo.
Depois
do declínio, os bárbaros
Tudo
bem. Mas o que vem depois do declínio de um império? Os bárbaros. É o que
nos ensina a história quando nos fala da passagem do império romano para o
feudalismo. E quem são os bárbaros do filme de Arcand? A frase “invasão dos
bárbaros” aparece numa cena em que a tevê do hospital mostra um comentarista
falando sobre o ataque às torres gêmeas de Nova Iorque. Mas, segundo a visão
de Rémy, a barbárie não está apenas nos ataques externos ao império. Os bárbaros
têm aliados como seu próprio filho, Sebástien. O rapaz não se interessa por
livros e discussões acadêmicas e políticas. É um executivo de uma corretora
que assume enormes riscos financeiros e, por isso mesmo, fatura rios de
dinheiro. Ganha em um mês o que o pai não chega a ganhar em um ano.
Educado
nesse mundo de enormes riscos, o jovem vem em socorro do pai. Rémy está em um
hospital público pouco melhor que os que conhecemos em terras brasileiras.
Faltam leitos, os exames são demorados, quartos exclusivos, nem pensar. Sebástien
é o bárbaro que chega empunhando dinheiro e não um machado. Compra a
administração do hospital e o sindicato local. Manda construir um quarto numa
ala abandonada do prédio. Paga exames caríssimos, banca a viagem dos amigos e
suborna alguns alunos do pai para que venham ao hospital demonstrar uma comoção
que não sentem. Aconselhado a oferecer heroína ao pai para diminuir o
sofrimento, dá um jeito de obter a droga. Primeiro, tenta junto à polícia,
mas seus integrantes não concordam porque temem ser uma armadilha da mídia,
nada mais. Então recorre diretamente aos traficantes com a ajuda de uma amiga
de infância, usuária da droga.
No
lugar do machado, o dinheiro
É
como se fundamentalistas islâmicos e neoliberais se merecessem. Claro que Sebástien
não é o vilão do filme. Apenas mostra a seu pai como se lida com um mundo de
pernas para o ar. Os serviços públicos que seu pai tanto defendia só
funcionam à base de corrupção. O sindicato está nas mãos dos mafiosos. A
polícia teme a mídia, mas o policial admite que concentra a repressão nos usuários
e não nos traficantes. A barbárie ganha terreno fácil. E Sebástien circula
com desenvoltura nesse terreno para dar a seu pai um fim digno.
Por
outro lado, há uma cena em que Rémy e seus amigos falam dos vários
“istas” que já foram. Desde monarquistas até existencialistas, passando
por maxista-leninistas e maoístas. Na verdade, representam uma classe média
que vê a luta de classes mais ou menos de camarote. São bem intencionados,
progressistas, odeiam a pobreza e a injustiça, mas vão tocando suas vidas
entre a academia de letras e a academia de ginástica. As conquistas de que essa
classe média se orgulha são aquelas obtidas pelas reformas. Reformas para
melhorar os serviços públicos, para distribuir melhor a renda, tornar a vida
menos dura e miserável.
Nada
contra. Reforma e revolução não são incompatíveis. O problema é que
reforma e capitalismo também não são. A burguesia, quando obrigada a isso, até
que aceita umas reforminhas. Mas somente até que elas não façam a água bater
no seu traseiro gordo. Aí, passa a valer a contra-reforma. Bastou a crise econômica
atingir os impérios (americanos ou não) para que o Estado de Bem-Estar-Social
começasse a virar passado. Aí, o hospital público canadense passou a se
parecer com o hospital brasileiro, argentino, sul-africano. Aí, aqueles que
acreditaram que a sociedade justa chegaria gradualmente, pouco a pouco. Pedindo
licença aqui, dando uma cotoveladinha ali na burguesia. Esses sentiram todo
peso da frustração.
O
filme não se reduz a isso. É bonito. Fala de amizade, amor entre pais e
filhos, solidariedade. É triste como deveria ser, e engraçado como não se
esperaria. É sensível e deve ser assistido por todo mundo (leve uma caixa de
lenço). Mas também parece de um pessimismo classe média. De alguém que não
conseguiu ver que os bárbaros nunca foram embora. Estavam à espreita. Prontos
para contra-atacar. E não são os que tombaram as torres de Manhatan.