A
nova economia: transformações no perfil do trabalho e futuro possível *
(Marcos Arruda**)
PONTO
DE PARTIDA: INDIGNAÇÃO
1. Segundo a física, o trabalho humano não é a única forma de trabalho. Máquinas, e os outros seres da Natureza, até mesmo seres inorgânicos, também exercem trabalho. Nossos ancestrais hominídeos de há três milhões de anos passavam grande parte do seu tempo buscando meios de sobreviver. Como estamos habituados a associar trabalho à mera luta pela sobrevivência, é fácil concluir que nossos ancestrais executavam trabalhos visando a sobrevivência. Eram os atos de coletar plantas e raízes e, de vez em quando, caçar. Mas eram também a criação de novas ferramentas e instrumentos de trabalho, novas formas de resolver os problemas ligados à produção e à reprodução da vida. Há menos de 10 mil anos, nossos ancestrais mais diretos inventaram uma forma revolucionária de trabalhar a terra: o arado, primeiro de madeira e empurrado por uma ou mais pessoas, depois de metal, puxado por animais de tração. E esta técnica prevaleceu na Europa Central e Ocidental até o início da idade moderna!
2. A metamorfose do trabalho ao longo da história se desdobra de modo contraditório, e avança ou recua de mãos dadas com o progresso tecnológico. A forma mais brutal de exploração do trabalho humano se deu – e ainda se dá – no trabalho escravo: dedicação total e exclusive ao trabalho em benefício de outro, sem qualquer recompensa e sem a liberdade de escolher outra atividade. Mas até mesmo o capitalismo contemporâneo nas suas formas mais modernas convive com o trabalho escravo. E os trabalhadores e trabalhadoras que trabalham com salários no limite da sobrevivência também experimentam formas agudas de exploração e opressão. Não carecem apenas de salário adequado, mas também de acesso ao conjunto de fatores indispensáveis ao trabalho genuinamente livre e ao desenvolvimento integral deles próprios e da suas famílias.
3. Vivemos hoje no Brasil uma profunda mudança no perfil do emprego e do trabalho. O contexto destas mudanças são as opções de política econômica e social dos governos e das elites que dominam o Estado. Seu caminho é o da integração subordinada e acrítica na globalização neoliberal. Esta globalização está centrada numa intensíssima competição dos grupos muito capitalizados pela introdução de tecnologias capazes de reduzir os custos de produção e aumentar sua competitividade. O primeiro custo que escolhem reduzir é o ser humano: demitir trabalhadores e substitui-los por máquinas sempre mais inteligentes e ágeis. Por um lado, as novas tecnologias têm o potencial de economizar energia e tempo de trabalho humano. Mas, na verdade, já que as empresas precisam apropriar todo ganho de produtividade para aumentar sua própria competitividade nos mercados sempre mais globalizados, a tendência é que aqueles benefícios se concentrem nelas, em prejuízo tanto dos trabalhadores que são demitidos quanto daqueles que permanecem empregados. É o que explica que nas últimas décadas o crescimento do produto interno da maioria dos países tem puxado, ao contrário do que acontecia antes, um aumento também do nível de desemprego.
4. No Brasil, os anos 80 trouxeram uma grave crise ligada ao sobreendividamento externo, que explodiu quando os Estados Unidos fizeram explodir a taxa de juros, levando os países empobrecidos e muito endividados à bancarrota. Os anos 90 foram iniciados com renegociações e adiamentos dos ônus da dívida externa, que tornaram os países, chamados “emergentes” – isto é, com maior potencial produtivo e maiores mercados – a atrair capitais estrangeiros e a retomar o crescimento econômico. Mas nem por isso as taxas de ocupação aumentaram. Até 1995, os países altamente industrializados obtinham taxas de crescimento entre 2 e 3% ao ano, mas, com pouquíssimas exceções, apresentavam taxas de desemprego altas (acima de 5%), como os Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, Suécia, Noruega, Austrália e Nova Zelândia, ou, altíssimas (10% ou mais) no caso de países como França, Itália, Espanha, Dinamarca, Grécia, Irlanda, Bélgica, Finlândia e Canadá.
5. O Brasil teve um percurso lamentável no período do Plano Real, mas particularmente dramático no que se refere a taxas de desemprego (medidas pelo Dieese/Seade). Era de 8,02% no início do governo Collor (1990), 13% no ano da renúncia de Collor, 13,5% em 1995, primeiro ano do governo FHC, e 19,5% em 2000. O empobrecimento daí decorrente fez inchar aceleradamente o setor informal da economia. No início de 2001 calculava-se que cerca de 55% dos ocupados não possuíam carteira assinada. Quanto ao rendimento médio do trabalhador, as perdas ao longo da década dos 90 revelam uma classe de cidadãos em crescente depressão da sua capacidade aquisitiva e das suas condições de vida. Quanto ao Índice do Desenvolvimento Humano, do PNUD, o Brasil, 10o país em produção bruta de riqueza, era o 69o colocado! (O Globo, 10/7/01). Mas a pobreza abrange uma parte muito maior da população que a revelada pelos indicadores oficiais. Se considerarmos que quem tem uma renda inferior a cinco salários mínimos não pode comprar o essencial para levar uma existência digna, temos que quase 120 milhões de brasileiras e brasileiros vivem hoje na pobreza ou na indigência. Vergonha, para um país com a fartura de território e de recursos naturais que possui o Brasil!
6. A economia mundial neste início de século não apresentou sinais de melhoramento. A ameaça de recessão nos Estados Unidos levantou nuvens escuras no céu de todas as nações da sua esfera de influência, em particular a América Latina. Os atentados de 11/9/01 foram, neste sentido, um sopro de alívio para o angustiado presidente da nação mais rica e poderosa do mundo. A crise gerada pela agressão terrorista parece ter vindo a calhar para que George W. Bush recobrasse sua imagem, deteriorada pelo obscuro processo que o elegeu e por suas gafes insistentes. A nova conjuntura é de reaceleração da economia dos EUA via produção de armamentos, que envolve uma constelação ampla de setores industriais e de serviços. A previsão para os povos, inclusive o norte-americano, contudo, é de carência de investimentos sociais e mercantilização crescente das suas necessidades básicas. Acena-se também com um aumento do intervencionismo do Estado, utilizando fundos públicos para tirar da crise alguns dos maiores setores e grupos econômicos. O ambiente sociopolítico tende a agravar-se com o predomínio da ideologia da segurança nacional, hoje globalizada.
BUSCANDO
NOVOS CAMINHOS
1.
É neste contexto que desabrocham, contra a corrente, inúmeras
iniciativas econômicas marcadas pelos valores da cooperação e da
solidariedade. Elas tomam quase unanimemente como referência principal o
trabalho humano revalorizado, redefinido como muito mais do que atividade
voltada para a mera sobrevivência material dos indivíduos. Visto por este ângulo,
o trabalho é o próprio modo de existir, expressar-se e relacionar-se do ser
humano. Associado ao saber e à criatividade, o trabalho humano é o principal
fator da construção do mundo e de nós próprios. Ele, e não os objetos que
ele produz, deve ser o referencial de valor da economia e da própria cidadania.
2.
Um novo paradigma desponta, que relaciona a economia com sua função
original, a “gestão da casa”, referida aqui a todas as casas em que
habitamos nesta existência, desde o nosso corpo até o planeta terra, passando
pelas comunidades que nos situam, o município, o estado, o país, a macro-região,
o continente. O desenvolvimento humano é visto como o objetivo maior da
atividade produtiva e criativa. O novo paradigma propõe que a propriedade e a
gestão dos bens produtivos sejam atribuídos aos que neles trabalham. A dimensão
politicamente inovadora deste paradigma está em conceber cada pessoa, cada
cidadão ou grupo de cidadãos como o sujeito potencialmente ativo e criativo do
seu próprio desenvolvimento. Seu empoderamento econômico, político e cultural
passa a ser o objetivo principal dos sistemas de decisão e da atividade
educativa (desde a educação básica até a universidade). As cadeias e redes
comerciais e relacionais se reconstroem, então, de baixo para cima e de dentro
para fora. Os valores da cooperação, do respeito à diversidade, da
complementaridade e da solidariedade passam a prevalecer sobre o da competição
e do egocentrismo. Um mundo do trabalho emancipado, das necessidades de cada um
e de todos sendo continuamente satisfeitas por cada um e por todos, passa a ser
possível. A relação com a Natureza deixa de ser marcada pela confrontação e
pela destruição, substituídas pelo conhecimento, pelo respeito e pela
colaboração. O Estado passa a estar subordinado a sociedades organizadas e
conscientes dos seus direitos e deveres – transforma-se, enfim, em Estado
democrático, e dedica-se à sublime tarefa de orquestrar a diversidade e zelar
pelo bem-estar e felicidade de toda a coletividade. Numa tal ordem de coisas, é
possível visualizar a paz, não mais como uma abstração, mas como fruto da
justiça e da fraternidade entre os cidadãos e entre povos.
3.
Mas o desafio é construir na prática este novo paradigma, a partir
exatamente do mundo de desigualdades, injustiças e violência que hoje
predomina no planeta. Este é o único ponto de partida, mas certamente não é
o único ponto de chegada! E são muitos milhões os que acreditam que um outro
mundo é possível, que uma globalização cooperativa e solidária está ao
nosso alcance, se acreditarmos nos nossos melhores sentimentos e nos dedicarmos
a juntar nossas forças e energia criativa para construí-la.
4.
No plano micro-social as unidades são o lar das famílias, a escola, a
empresa e a comunidade. Nestes espaços começam a desenvolver-se sistemas de
organização da vida e do trabalho relacionados com as necessidades, mais que
com o mercado. O método de organização e tomada de decisões capaz de
construir unanimidades na diversidade e progresso na caminhada comum se chama
autogestão. Esta só existe em ambiente onde as diferenças são bem recebidas,
pois são fonte potenciais de enriquecimento mútuo e de complementaridade, e o
outro é acolhido como ser essencial para o desenvolvimento de cada um. O modo
privilegiado deste tipo de relação é o diálogo e a colaboração solidária.
5.
Neste contexto, a tecnologia deixa de ser um fim em si e volta a ser um
meio para o progresso coletivo e humano. A riqueza já não é vista apenas como
mera acumulação de bens materiais, mas sobretudo como a disponibilidade de
tempo para o trabalho que realmente importa, que é o de cada um desenvolver
suas dimensões e potenciais especificamente humanos, os sentidos da ética, da
estética, da comunicação, da convivialidade e da amorosidade. A educação
passa a ser a atividade permanente de fazer desabrocharem estes potenciais em si
e em cada outro.
6.
No plano meso-social, as redes de indivíduos e empreendimentos
consumindo, produzindo, comercializando bens, serviços, conhecimento e
afetividade de forma cooperativa e solidária permitem que só se extraia da
terra e do planeta aquilo que se necessita e que o planeta pode oferecer de
forma sustentável. Uma economia do suficiente, da frugalidade, da partilha
substitui a atual economia do crescimento ilimitado, do consumo excessivo e da
produção ilimitada de lixo e poluição.
7. No plano macro-social, as nações recriam suas relações visando o intercâmbio justo e a satisfação compartilhada das necessidades dos seus povos. Renuncia-se à compulsão de dominar e subjugar o outro por ter recursos materiais a explorar ou mesmo por ser diferente. O trabalho de tecer redes solidárias internacionais tende a reinventar as instituições multilaterais e a redefinir suas funções. A planetarização de uma Humanidade enfim libertada da barbárie da exploração, da opressão, da violência e das guerras deixa de ser um sonho impossível.
Marcos
Arruda
pacs@pacs.org.br
Rio de Janeiro, novembro de 2001
* Esboço da apresentação no 3o. Congresso Brasileiro de Tecnologia e Educação, organizado pelo SENAC. Recife, 26/10/2001. Revisado para apresentação no Simpósio Nacional “O Futuro do Trabalho na Sociedade Brasileira”, promovido pela Pastoral Operária, Setor Pastoral Social/CNBB, Cepat e Ibrades, São Paulo, 16/11/01. (Voltar ao topo da página)
** Economista e educador do PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro, e sócio do Instituto Transnacional, Amsterdam. (Voltar ao topo da página)