Um
sonho chamado Saramago
Por Rosângela Ribeiro Gil, de Santos, 1º de novembro de 2005
Mais de mil pessoas acompanharam as palavras do prêmio Nobel de Literatura de 1998, no anfiteatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, no dia 27 de outubro último. Estávamos lá, representando o NPC, quase na fila do gargarejo. Mas Saramago estava totalmente “inviolável” ao assédio da imprensa, do público e dos fãs. O escritor tomou assento à mesa no centro de um palco totalmente negro. Ele também de preto, como se estivesse de luto. Bem comportado, o escritor português falou para o público por mais de 30 minutos. Fez o público rir. Foi aplaudido várias vezes. E, ao final, foi aplaudido de pé por um público rendido ao ídolo. Levantou-se, cumprimentou mais uma vez o público e sumiu por de trás do palco entre as cortinas negras. Em frações de segundos. Não deu tempo nem de chegar perto do palco. Saramago já havia sumido. Fez a sua intermitência. O público deu meia volta. E, como numa procissão, bem devagar, e com certa paciência, seguiu por escadas rolantes até chegar a uma pequena rampa onde aguardou o início da noite de autógrafos. A fila era imensa (será que todos esperaram a sua vez?). Saramago chegou à mesa de autógrafo logo depois das 22 horas. Com o seu terno preto impecável, andar calmo e firme, ainda consegui parar por alguns segundos o escritor e entregar a agenda “A Comunicação dia-a-dia 2005” do Núcleo Piratininga de Comunicação. Balbuciei algumas palavras...”um presente para o senhor”. O segurança ao lado já logo olhou e fez o caminho ser seguido. Ainda deu tempo de Saramago fazer um gesto de agradecimento com a mão direita. No mais, aquela noite era para os fãs, mesmo à distância. A imprensa apenas pôde fotografar e filmar. A entrevista coletiva seria no dia seguinte, às 10h30, também no Sesc Pinheiros. No meio de uma frustração, já que queria trazer em primeira-mão uma entrevista exclusiva para os leitores do Boletim NPC, acabei pensando numa alternativa para brindar os nossos amigos. Foi daí que surgiu a idéia de transcrever a apresentação de Saramago naquele dia 27 de outubro. Saramago escreve sobre um dos temas mais caros para a humanidade. Objeto do pensamento ocidental ao longo da nossa História, a morte, ou a vontade da eternidade, está na ciência, na arte, na filosofia, na literatura. Assunto recorrente, a morte estará nas páginas bíblicas, nos versos de Ilíada e da Odisséia. Enfim, em tudo. Estará em toda a nossa vida. Heidegger, Spinoza, Hegel, Sartre, Platão e tantos outros vão tratar, de uma forma ou de outra, do significado da morte, ou do seu reverso, a vida. “Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que amo: pois eu te amo, ó eternidade!” (1) , assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Para Saramago, a morte também é feminina. Não
podemos deixar de mencionar o gesto carinhoso com o qual José Saramago
se despediu do público naquela noite paulistana. Cruzou os dois
braços à frente do seu peito como num abraço bem apertado
e próximo do coração.
“As Intermitências da Morte”, o livro, por José Saramago INTRODUÇÃO O violoncelista é um homem tímido... Completamente ultrapassado por uma situação que não compreende, que não percebe, que não sabe porque é que se passa. Está a se ver que já está enamorado por esta mulher. Ela brinca com ele, mas brinca perigosamente, porque pode acontecer que ela venha a enamorar-se dele. Então teremos uma situação aparentemente absurda que uma morte, ou, a Morte que ama um ser humano e um homem, um violoncelista, um músico, que ama essa mulher, sem saber que ela era a Morte. Situação um pouco delicada, que vocês saberão como se resolve quando chegarem ao fim. Este livro, como já vimos, como todos sabem, chama-se “As Intermitências da Morte”, o que parece bastante estranho uma vez que a morte quando aparece aparece definitivamente, aparece só uma vez para cada um de nós e não tem necessidade de voltar. Ela é suficientemente eficaz... para não dizer “falhei da primeira vez, vou tentar uma segunda”. Mas neste caso a morte é realmente intermitente. A morte está e um dia deixa de estar. Eu não vou contar o livro porque senão depois não mo compram. Obstante dizer umas quantas coisas para se entende-lo. Em primeiro lugar, como é que nasceu. O livro nasceu numa ocasião em que eu estava a ler um livro de Rainer Maria Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge” (2) . Há uma passagem em que um suposto narrador, ou um suposto diarista, que escreve uma espécie de diário, narra a morte de uma pessoa extraordinária... E fiz uma pergunta bastante parecida àquela que tinha feito quando do Ensaio sobre a Cegueira. Pergunto, quando do Ensaio sobre a Cegueira, e se nós ficássemos todos cegos? E nesse caso a pergunta foi: E se nós não morrêssemos? Parece uma pergunta tonta uma vez que não há outro remédio, mas também é certo que sempre o ser humano sempre alimentou a esperança de uma imortalidade. E essa esperança é tão forte que a própria Igreja se encarregou de nos prometer a vida eterna. A vida eterna para depois, não para agora. A Igreja pode muito mas não pode tanto. A ILUSÃO Então todos nós aspiramos essa ilusão de que um dia talvez o homem, o ser humano seja imortal. Quando nasci numa aldeia em Portugal, a esperança de vida era de 35 anos, não é que não houvesse pessoas idosas, mas as crianças morriam cedo...Então a esperança que de vida média era de 35 anos. No entanto, dentro de três semanas estarei com 83 anos, portanto já é quase como ter entrado numa eternidade...pelo menos em relação a essa idade e a esperança obtida já é praticamente 50 anos de ganho... Agora imaginemos que a morte vai embora, que a morte nos deixe finalmente em paz depois de nos ter atormentado a existência durante milênios, desde que o homem descobriu que era um ser mortal. O que é que aconteceria? Num primeiro momento, uma euforia total. As pessoas se sentiriam finalmente cumpridos todos os anseios e todos os sonhos de uma comunidade que vivia sob a ameaça da morte e agora já não podia mais morrer. O CAOS Ocorre que será um desastre, um caos. E por razões que são algumas delas muito práticas, muito óbvias e que curiosamente se manifestam já na preocupação dos governos perante, enfim, digamos, o alargamento da vida, o alargamento da existência média, com o grave problema do pagamento das pensões. Todos já lemos notícias nos jornais dizendo o governo está preocupado, preocupado porque os fundos de segurança social não vão agüentar até o ano de 2015... Pois está, a situação que eu mostro para vocês quem é que iria pagar as pensões? E o pior é que acabariam por pagar as pensões de forma completamente inútil, porque as pessoas a quem essas pensões seriam pagas não poderiam renunciar a elas, isso é facílimo de demonstrar. Se com o desaparecimento da morte também o tempo, o tempo parasse... Porque cada um de nós, no momento em que o tempo parasse, ficaria para todo o sempre com a idade que tem. Para os jovens, dos 18 ou 19, 23 ou 24, bem, seria uma sorte. Para os idosos, bem, enfim, se tivessem saúde também não seria mal. Para as criancinhas, criança acabada de nascer que tem três dias poderia ficar com três dias eternamente. São situações evidentemente absurdas, nunca nada disto acontecerá. Mas a imaginação humana é capaz de pôr tudo no lugar do nada. E aquilo que aconteceria, digamos, por parte dessa idéia que o tempo pararia, vamos ficar só com essa decisão da morte de não matar mais. Como o tempo não pararia, então as pessoas iriam ficar cada vez mais velhas. O resultado seria: teríamos de viver todos, nos encontraríamos todos numa situação de velhice eterna, porque não iríamos ficar jovens, o tempo passa, o tempo condiciona, o tempo faz crescer, depois faz decrescer, faz diminuir e traz perda de força, de energia, de capacidade mental e todas essas coisas que são obra do tempo. Então teríamos uma outra humanidade que não poderia realmente pagar as pensões, mas também teríamos velhos reduzidos a qualquer coisa de inenarrável, estavam vivos, seriam vivos, mas seriam cada vez mais velhos de um milhão d´anos. E um milhão d´anos não é eternidade, é só um milhão d´anos. Eternidade é outra coisa. Bom, isto é só um exemplo do desastre que seria se a morte desaparecesse. Portanto, confiemos que ela não desapareça. Roguemos, por favor, não se vá embora. Porque a única condição que a espécie humana tem para continuar a viver é morrendo. Parece um pouco violento isso, mas no fundo é assim que as coisas são. São assim... Nós não gostamos muito que nos falem de morte, por outro lado a morte banalizou-se completamente, invade os lares todos os dias e todas as horas. Enfim, pela televisão, por exemplo, morre-se constantemente, porém aquelas mortes são fictícias evidentemente. Quando a cena enfim acabou, o ator levantou-se, tomou um copo de uísque e está pronto para morrer outra vez. Bom, então, creio que no fundo nós aceitamos que temos de morrer. Porque depois levantam-se outros problemas. Uma família que tem uma pessoa doente, enfim o avô, é sempre o avô que calha estar doente, e muito mal, e aqui como nós dizemos em Portugal um velho ditado “nem nosso pai morre, nem a gente come o caldo”, quer dizer, aquele está para morrer mas a gente quando está assim não vamos comer o caldo, se ele morrer você iria claro comer o caldo, mas como ele não morre, não vamos comer o caldo. Ficamos aqui à espera não se sabe de quê. O ESTORVO Pode parecer então que, bem, que esta (a vida eterna), que era uma maior exigência da nossa época, acaba por tornar-se um estorvo. O velho acaba por tornar-se um estorvo. Então pode ser que isto apareça no livro, estou a falar do livro, embora não esteja a citar situações da página tal ou da página tal, estou a falar do livro. Pode acontecer que as famílias tentem de todo modo livrar-se daquele estorvo. A família estava dedicada com coração, alma e tudo que tem para acompanhar, enfim, passo difícil que estão por ter de viver. Mas há outras que, enfim, as tais famílias que irão livrar-se daquela pessoa (para tomar o caldo). A morte não é só uma. Há morte dos seres humanos. Há morte dos animais. Há morte dos vegetais. As mortes não podem confundir-se umas com as outras, cada uma tem o seu segredo. E a morte total, a única que pode escrever o nome com maiúscula, Morte, bem grande assim. As outras não, podem escrever com letra pequena. Mas o que aconteceu com a Morte, enfim, que deixaram, digamos, depauperada, aconteceu num país. Isto acontece só num país. Nos outros países ao redor continua a morrer-se. Portanto, já devemos imaginar que a princípio aquele país é objeto da ambição e da inveja de todos os outros países. “Ali não se morre, e nós continuamos a morrer, que horror”. Rapidamente, como já disse, chega-se à conclusão que o melhor é continuar a morrer. Então aparece uma instituição, que aliás não a inventei eu porque está inventada a muitos anos, chamada máfia, que se encarrega de resolver o problema dos velhinhos que não querem morrer ou não podem morrer. Há que se dizer que esta máfia se escreve com “ph”. É “eme, “a”, “pê”, “aga”, “i”, “a”: Máphia. Eu perguntei-me porquê, para distingüir-se das outras. Distingüir-se da máfia clássica, essa continuará a se escrever como sempre se escreveu. Concluindo, não vou dizer mais sobre ele (o livro), nesse particular, enfim, começa a ....no fundo é como se eu tivesse proposto unicamente o que é que aconteceria se a morte deixasse de matar. E, como já vimos, por dois exemplos, seria um caos. Ou melhor, como já também estamos entendendo todos, é que ela mate. A CARTA Mas a morte considero que realmente não tem sido simpática com a espécie humana. Esta coisa de morrer sem avisar é uma brutalidade. Ela decide a passar a dar um prazo às pessoas para que ficassem ou fiquem prevenidas, que têm oito dias de vida. E venham a dedicar esses oito dias de vida a resolver seus problemas, fazer o testamento, pagar as dívidas, atualizar os impostos, fazer as pazes com algum inimigo. Portanto, entrará, digamos, no “não ser” com a consciência completamente em paz. Isso resulta muito complicado porque o fato vai ter um sentido contrário: ter uma carta em casa, tudo isso se faz com cartas, carta cor de violeta, que é cor própria para uma situação dessas, quem recebeu e leu uma carta que tem oito dias de vida não é uma carta, é uma maneira de estar........ no globo da morte. Acontece que uma dessas cartas que a Morte envia é devolvida. E não é devolvida uma vez. É devolvida uma vez. Duas vezes. Três vezes. Quatro vezes. Razão porque a carta é devolvida não se saberá nunca. A única coisa que se sabe é que não chega ao seu destinatário. E a Morte pode imaginar, ou nós imaginamos, no seu lugar, que mecanismos levam a esta carta...ou um efeito qualquer que faz com que aquela carta volte para trás. Então, a Morte não vê outra solução senão se apresentar mas não numa figura de um esqueleto. E assim ela (a Morte) põe tudo aquilo que lhe falta e fica uma pessoa. É
essa pessoa, ouviram-na aqui (referência à atriz Leona Cavalli
que interpretou a Morte na apresentação de um trecho do diálogo,
por telefone, com o músico, interpretado pelo ator Dan Stullbach)
dialogando com aquele a quem a carta não chegou nunca. Esse músico,
esse violoncelista, esse moço não consegue tocar, enfim,
consegue, mas com muita dificuldade, uma parte complicadíssima do
prelúdio da Suíte nº 6 de Johann Sebastian Bach e virá
um dia tocar a suíte toda ela completa, tendo como único
assistente a Morte. (Na apresentação do Sesc, a suíte
foi brilhantemente tocada ao Cello por Johannes Gramsch)
Agora a pergunta que se faz é esta: por que é que você (José Saramago) anda a brincar com a morte? Direi, não ando a brincar com a Morte. Ela apresentou-se. É um livro extremamente infantil. É um livro em que o leitor sorrirá muitas vezes. Alguma vez pode acontecer que solte até uma gargalhada. É um livro sobre a Morte, e, portanto, é um livro sobre a vida. Entretanto, há algumas questões, como por exemplo, quando a Morte decide não matar. Aí é que a Igreja promove uma campanha nacional por orações para que a morte volte, porque a questão aí é claríssima: se as pessoas não morrem para que serve a Igreja? Já não se importam ter a vida eterna as pessoas, porque elas já a têm. Então é absolutamente lógico que a Igreja lance uma maré de orações e vigílias a Deus para que, por favor, faça a Morte regressar. Mas, por outro lado, e agora aqui mais seriamente, também os nossos filósofos se encontram numa situação difícil porque o que eles fazem no fundo é “filosofamos porque morremos”. O mestre (Michel) Montaigne (3) , com suas mensagens e seus livros totalmente geniais, diz “filosofar é aprender a morrer”. Então, os próprios filósofos também aparecem no livro. Eles vão ao encontro dos representantes das várias igrejas e chegam todos a mesma conclusão: isso não tem solução, o melhor é que a Morte regresse. Só que a morte só regressará quando lhe apetecer. Entretanto, vão acontecendo quantidades de coisas, agora já começo a entrar em território fechado, reservado. E pronto. Há um livro que se chama “As Intermitências da Morte”. O livro está aí. Deu um prazer infinito escreve-lo. Há passagens, sobretudo na parte final, que eu posso dizer com uma intensidade poética que vai além do que é normal. Porque é realmente uma situação, enfim, poética. O encontro entre a Morte e o Ser. A Morte e uma pessoa, que vão encontrar-se, vão olhar-se nos olhos, com a diferença de que um não sabe que o outro é a Morte. E não saberá nunca que ela é a Morte. A FÁBULA O final é bastante desconcertante, ou não é desconcertante. É o único final possível. É uma fábula, não aconteceu, não acontecerá......Nada disso se dará, mas, enfim, podemos sonhar com coisas que não acontecerão. Todos os meus livros partem de uma situação improvável ou então impossível. Todos eles. Todos, todos, todos sem exceção. E isso eu descobri há pouco tempo. Creiam naquilo que estou dizendo. Descobri isso há pouco tempo, talvez dois anos. Não é Pillar? (pergunta para a esposa que está sentada na primeira fileira da platéia). Não sei se escreverei outro livro, mas posso ter a certeza já de tratar-se de algo improvável ou impossível. Porque se algum talento tenho é de tornar o improvável, provável; e o impossível, possível. Que no fundo nada disso possa vir a ser pelo menos enquanto o romance estiver a ser escrito, e enquanto estiver a ser lido acontece. E vamos todos acreditar que um dia a Morte deixou de matar e depois tornou a matar. Por isso é que a morte é intermitente. Vem e vai. Vem e vai. E até que chega a última página em que tudo fica explicado. E o leitor, então, fará o seu juízo. Alguns dirão, este homem é louco. O nosso
verdadeiro instrumento chama-se a razão. A razão tem um arsenal
de instrumentos vários que se chamam sensibilidade, emoção,
intuição. Se nós pegássemos a razão
como um bloco, como uma coisa fria, que está ali, digamos quadrada,
mas a razão não é isso; a razão é uma
coisa quase impalpável. Teremos que discutir isso mais tarde. Quero
que gostem deste livro por duas razões: porque ele merece e porque
eu mereço.
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