Carlitos: a solidariedade em meio à fome, ao desemprego e à exclusão social
Por Flávio Amaral, do Repórter Social, nov/2005


De chapéu coco, bengala, paletó, calças largas e sapatos furados, Carlitos vaga pelas ruas tentando sobreviver. O personagem criado por Charles Chaplin é certamente o mais célebre da história do cinema. Em algumas dezenas de filmes, entre curtas, médias e longas-metragem, nenhum outro personagem do cinema mundial teve tanto êxito ao abordar a exclusão social. Miséria, desemprego, exploração do trabalhador, preconceito social, injustiças da sociedade, perseguição e fome foram algumas das dificuldades que Carlitos teve que enfrentar nas suas aventuras cômicas pelas telas do cinema.

O personagem nasceu por acaso. Em um dos primeiros filmes protagonizados por Charles Chaplin, o curta "Corridas de automóveis para meninos", de 1914, o produtor pediu que ele se vestisse de um jeito engraçado. No filme, uma câmera de cinema filma uma corrida de automóveis. Carlitos descobre a câmera e faz de tudo para aparecer, para desespero do cinegrafista. Em cinco minutos, começava de forma simbólica a carreira do personagem. Nessa época, as câmeras de cinema ainda estavam mais preocupadas em registrar fatos e cenários que pudessem interessar aos espectadores. A ficção cinematográfica começava ainda a engatinhar. Carlitos, no curta, atrapalhava o registro da corrida, fazendo de tudo para se tornar o centro das atenções. E assim foi. Nos anos seguintes, tornaria-se o foco principal das atenções do cinema norte-americano.

Nos primeiros anos da carreira de Carlitos, o humor era a preocupação quase exclusiva de seus filmes. A vida miserável do personagem e as questões sociais que cercavam essa realidade eram meros coadjuvantes para a diversão. À medida que o sucesso crescia, Chaplin tornava-se mais preocupado em ampliar o universo de reflexões que seus filmes pudessem provocar.

Nascido na Inglaterra, Charles Chaplin conheceu de perto a miséria e a fome antes do sucesso. Sua mãe, Hannah, uma cantora de espetáculos populares, foi abandonada pelo marido, também cantor, com dois filhos. Após um problema na laringe, ela abandonou a carreira e, desempregada, passou a trabalhar e morar em um asilo para pobres. Com problemas mentais, Hannah é internada e seus filhos vão morar com ela no manicômio. Ainda criança, Chaplin teve várias atividades e acabou sozinho em um orfanato. Aos 8 anos, começou a trabalhar como ator, passando a ganhar o suficiente para sua sobrevivência. Os anos de dificuldade foram fundamentais em sua carreira. Daí vieram não apenas a inspiração de Carlitos, mas toda a fundamentação ideológica de seu trabalho.

Apesar de ser acusado de comunista nos tempos do macartismo, tendo inclusive que abandonar os Estados Unidos e voltar a morar na Inglaterra, os filmes de Chaplin não tinham esse viés ideológico. Sua preocupação não era disseminar uma filosofia política, mas criticar as injustiças da sociedade. Através do humor, Chaplin zombava do capitalismo industrial, denunciava a exploração da mão-de-obra e ridicularizava a sociedade burguesa. Mas seu foco não era a mobilização contra as opressões. Em seus filmes, honrava o humanismo e a solidariedade. Apostava que a solução para a exclusão estava no próprio ser-humano.

Carlitos era ingênuo, divertido e amoroso. Praticava pequenos golpes, tinha um certo cinismo nas relações com outras pessoas, mas tinha um grande coração. Em "O Garoto", de 1921, por exemplo, o personagem acha uma criança que havia sido abandonada pela mãe, que não tinha condições de criar o filho. A princípio, Carlitos faz de tudo para se livrar do menino, mas tudo dá errado. Acaba se afeiçoando à criança e ganha um companheiro para vagar pelas ruas.

Carlitos é capaz de atos de solidariedade até mesmo em momentos extremos. No filme "Em Busca do Ouro", o personagem está isolado em uma cabana do Alaska em meio a uma grande tempestade de neve junto com um desbravador que caçava um jazida de ouro. Famintos, no auge do desespero, Carlitos cozinha sua bota e a divide com o companheiro de isolamento. Em uma das mais célebres seqüências da história do cinema, a bota transforma-se em uma apetitosa refeição, dividida fraternalmente. Para substituir a refeição, Carlitos passa a usar panos enrolados no lugar do sapato, como se não fizesse nenhuma diferença. É o mais completo desprendimento dos bens materiais.

A solidariedade também é a questão central em "Luzes da Cidade", de 1931. No filme, Carlitos conhece e se apaixona por uma florista cega e faz de tudo para ajudá-la. Precisa evitar que seja despejada e arranjar dinheiro para uma operação que permitiria que ela voltasse a enxergar. Consegue o dinheiro, mas é preso injustamente. Quando é solto, reencontra a mulher que ama. O filme acaba sem que fiquemos sabendo se os dois ficarão juntos.

O final incerto, mas feliz, de "Luzes da Cidade" deixa claro que a preocupação principal do diretor não é a felicidade amorosa de seu personagem. O que importa, de fato, é a felicidade de Carlitos ao ver que seus esforços para ajudar a florista foram bem-sucedidos. E a surpresa dela ao descobrir que o homem que a ajudou era um sem-teto, contrariando a ilusão criada por ele de que seria um milionário.

Desse final, tira-se a base da ideologia de Charles Chaplin. O capitalismo e a industrialização do início do século XX tiravam o humanismo do centro da sociedade. O dinheiro e o status passavam a ser mais importantes que as relações humanas. A satisfação pessoal prevalecia sobre o senso de solidariedade. A esperança não vinha dos burgueses nem das instituições, que não só eram insensíveis ao sofrimento, mas injustas e discriminatórias. A esperança vinha de um personagem excluído da sociedade, vítima de preconceitos, relegado e perseguido, mas que ainda era capaz de deixar de lado suas ambições pessoais para ajudar alguém que estivesse necessitado.
 


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