A
base social de uma ditadura
Por Gustavo Barreto, especial para o NPC, 16/11/2005
Em vez de comemorar, muitos setores ditos "progressistas" da sociedade correram para se agarrar ao inciso IX do artigo 5 da Constituição Federal (CF), que diz que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença". Hoje, ao ser ameaçado o status quo, o inciso IX do artigo 5 o é a nova Bíblia do povo do "não é bem assim". O irritante grupo do "não é bem assim", em geral jornalistas que ficam sempre em cima do muro – tendo, portanto, escolhido o lado dos mais fortes. Devemos colocar, desta forma, pingos nos 'i's: nenhum princípio da CF pode ser sobreposto. A liberdade de expressão não está acima das outras liberdades e direitos do cidadão. Basta assistir o programa de João Kleber com a CF na mão e o leitor achará pelo menos cinco motivos por hora para iniciar uma ação pública, com base na defesa da pessoa humana, do direito das minorias, do respeito às diversidades. Mas sempre haverá advogados que usarão palavras bonitas para dizer que João Kleber é "liberdade de expressão". Alguém acredita nisso? Quem é perseguido neste país? As emissoras de TV? Essa pega até mal, mas é a velha tática SCC (se colar colou), conhecida no meio jurídico. É uma pena que a defesa enfática do "direito de resposta" que João Kleber certamente merece não tenha sido feita em relação ao outro lado da história (os grupos ofendidos) quando, antes de qualquer ação jurídica, Kleber fazia o que bem entendia, cego aos apelos que recebeu da sociedade civil organizada em incontáveis momentos. Leitores perguntam: e a Globo? Bem lembrado, principalmente se estivermos falando de irregularidades. Nunca é demais trazer à tona: está na justiça 42ª Vara Cível, em São Paulo, processo que os herdeiros da família Ortiz Monteiro movem contra o espólio de Roberto Marinho e a TV Globo Ltda, com objetivo de retomar o controle da antiga TV Paulista, hoje TV Globo de São Paulo. Os autores da ação alegam que Roberto Marinho assumiu o controle da emissora utilizando documentos falsificados. Assim, se for reconhecida a inexistência do ato jurídico (a suposta venda das ações majoritárias da TV Paulista a Roberto Marinho), a propriedade da emissora terá de ser devolvida à família Ortiz Monteiro. Segundo o laudo pericial do Instituto Del Picchia de Documentoscopia, todos os documentos usados por Roberto Marinho para assumir o controle da emissora, que foram anexados ao processo pelos próprios advogados do espólio e da TV Globo, são espúrios, com datas fictícias e conteúdo contraditório, tendo sido grosseiramente falsificados. Diante dessa constatação do Instituto Del Picchia, os autores da ação denunciaram formalmente a falsidade dos documentos, e a técnica Denise Gonçalves Rivera foi então nomeada para atuar como perita judicial no processo. Como jamais poderá ser aceita judicialmente a alegação de que Roberto Marinho comprara a Rádio Televisão Paulista S/A usando os documentos já declarados falsos, os advogados do espólio do jornalista e da TV Globo vivem mudando de versão – e o caso, coincidentemente, de juiz. Estamos falando da TV Globo de São Paulo, responsável por mais de 50% do faturamento da rede. Desde sua criação até hoje, a empresa é um poço de irregularidades – possui, por exemplo, 20 emissoras próprias, apesar da lei permitir no máximo dez concessões, sem contar as "afiliadas". Críticas oportunas Ainda sobre a RedeTV!, surgem sempre críticas oportunas que demonstram o grau de hipocrisia da sociedade brasileira. Falam, por exemplo, que o ato "autoritário" não foi acompanhado de audiências públicas, ou outro instrumento qualquer de consulta popular. É a memória seletiva, que só lembra daquilo que interessa. A consulta já acontece. A Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional iniciou uma campanha chamada "Ética na TV" (www.eticanatv.org.br), que tem a parceria de centenas de organizações da sociedade civil. Devo ser honesto: não agüento mais escrever sobre esta campanha, de repetir seus benefícios, de mostrar sua representatividade. Os moralistas de plantão sugerem que o público participe, mas o maldito público já participa. Opina por telefone, por correio eletrônico, via Correios, sugere classificações para a TV, critica a violência e a banalização do corpo da mulher e trocentas outras coisas, tudo registrado pelo Congresso Nacional... e os moralistas de plantão, especializados na Constituição Federal dos Bons Costumes, não estão nem aí. É tudo solenemente ignorado, como um pai que diz a uma criança que acabou de fazer um desenho bonitinho: "É isso aí, filhão, ficou muito bom. Agora vá brincar com seus amiguinhos". Deus nos livre da ignorância Destaco outra crítica oportuna ao controle social dos meios de comunicação que costumo ouvir muito. Dizem, com um respeitável ar de indignação, que a Rede Record é outra notória burladora da lei e dos bons costumes, já que faz campanha para partidos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A Revista Consciência.Net já produziu centenas de notas mostrando que a Rede Globo faz campanha declarada, diariamente, para o projeto tucano-pefelista de poder. Outras dezenas de pessoas escreveram centenas de textos mostrando isso, com dados, vídeos, estatísticas e o todo o aparato disponível de comunicação. Mas, insistem os moralistas de plantão, é a Rede Record a grande vilã. Por que só ela? Bispo não pode, mas latifundiário pode? Até as pedras de Salvador conhecem os vínculos do clã de Antonio Carlos Magalhães com a Globo, do clã dos Sarney com a Globo, dos clãs diversos deste país com a grande irmã. E é o Crivella o grande anticristo?! Neste momento, recolhem-se os moralistas de plantão, resignados com a vitória do Corinthians. Uma lógica que funciona Programas como os de João Kleber, Sergio Malandro e companhia são evidentemente muito piores que o conjunto de programas da Globo – não escrevo isso com muito certeza. Essa afirmação faz com que, por comparação (e infelizmente), a Rede Globo se livre de um julgamento maior. "É ruim, mas tem pior". No entanto, é urgente ressaltar que movimentos sociais como os sem-terra e grupos como os negros e indígenas possuem muitos motivos para reclamar do conjunto de TVs abertas (incluindo a Globo) e fazer o mesmo que fizeram no caso João Kleber. Ocorre que o poder da grande irmã é absolutamente incrível. É a maior ditadura dos nossos tempos, juntamente com a ditadura financeira. Mesmo em faculdades de formação de comunicadores, são isoladas as vozes que questionam esse poder. E, para piorar, você ainda é obrigado a ouvir de repórter do Jornal Nacional que "jornalista que fala mal da Globo é porque tem inveja e queria trabalhar lá", ou ainda "se você começar a criticar muito, nunca vai conseguir um emprego por lá". Você tem que ouvir coisas essas. Meu neto dirá: "Então quer dizer, vô, que uma organização privada, sem o mínimo controle público/governamental, tinha a atenção diária de pelo menos 90 milhões de brasileiros, dizia o que deveria ser discutido e o que deveria ser esquecido e ainda ganhava 50% de toda a publicidade que circulava na TV – incluindo as verbas públicas – para fazer isso?" Uma pergunta a ser feita Isso deve soar radical para alguns da mesma forma que a crítica aos fascismos de nossa história – feita pelos sindicatos e organizações comunistas de outros tempos – soava radical. Devemos urgentemente nos perguntar se não estamos nos comportando da mesma forma que se comportaram as pessoas que achavam que as denúncias de tortura durante o regime militar eram coisa de gente que queria desestabilizar o belo trabalho do Delfim Netto à frente da economia brasileira. É algo que não nos perguntamos com freqüência, mas deveríamos. Morrem hoje centenas de milhares de trabalhadores(as) assassinados(as) em chacinas nas quais poucos dão o devido destaque, apesar de as comunidades locais seguirem denunciando e, de certa forma, tendo que aprender a conviver com elas. O pau comendo na periferia, centenas de crianças em ruas abandonadas sendo mortas, com escola precária, com saúde precária, com a família dissolvida pelo tráfico. Enquanto isso, o jornal das sete informa que tudo vai se resolver muito em breve, já que a apresentadora ruiva diz "muita paz" no final do telejornal. Domingo tem Faustão, mais uma vitória do Corinthians, dois mil e seis tem copa do mundo. Se Deus
quiser (e os Marinho permitirem), a realidade de nossos netos haverá
de ser outra.
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